terça-feira, 1 de julho de 2014

Santoro


Deus não me faz acordar todas as manhãs à toa. Não, Ele tem sempre um propósito. Hoje sei qual foi o propósito de Deus, quando me mandou o Sol pela janela quebrada – que finalmente caiu, desta vez! – do quarto: Ele quis que eu viesse até aqui, e quis que eu escrevesse sobre Santoro.

Para isto, Deus usou o facebook. E, logo assim que acordei e liguei o celular, um sinal de que haviam marcado o meu nome numa publicação chamou-me a atenção. E foi ali que Deus me disse “escreve, Karla, que ainda não desisti”.

Deus ainda não desistiu. Não desistiu do mundo, das pessoas, de cada coração, de cada ser humano. Ele me repetiu isto várias vezes, enquanto lia o depoimento maravilhoso (porque emocionado) do meu amigo Santoro. E quanta emoção senti, ao ver que fui marcada por ele!

Santoro é cada um de nós. Quem é Santoro? Somos nós! Santoro existe: é um homem – o dono do retrato – simples, que conheci durante o tempo em que trabalhei em Iguaba Grande. Nossos caminhos se cruzaram em muitas idas e vindas da escola para casa, da casa para a escola, pelas ruas da cidade, em reuniões na Secretaria Municipal de Educação. Empatia instantânea, agora posso revelar recíproca. Muito quieto, homem de poucas palavras. Sujeito sério, admirável sob o meu ponto de vista. Santoro é Auxiliar de Serviços Gerais numa das escolas municipais por onde passei.

Em certa época, nos encontramos novamente, e daquela vez estávamos discutindo o Regimento Escolar, que sofreria alterações. Lembro-me bem de que nós dois defendíamos a possibilidade de que todo funcionário da escola, que fosse efetivo e que comprovasse conclusão de Ensino Superior atrelado à Educação, pudesse ser Diretor. Discussões calorosas acabaram por manter o Artigo como estava, atribuindo somente aos Professores tal oportunidade. Não gostei daquele resultado. Santoro também não gostou.

Na defesa, um cidadão. Um trabalhador. Um homem que por méritos próprios galgou empregar-se na Prefeitura através de Concurso Público, e o fez.

Santoro é cada um de nós.

Um Auxiliar de Serviços Gerais que enxergava a escola para além daquilo em que se resumia o seu trabalho. Que, durante a discussão, incansável, sobressaiu-se diante dos outros, aos meus olhos de professora: ali está ele, que pessoa interessante!

Fomos votos vencidos. E ali estava só começando a trajetória de Santoro, que teve uma de suas etapas concluídas há poucos dias: Santoro cursou História, e hoje é Professor!

O depoimento no facebook – desabafo do homem – fala por si:

“Depois destes três últimos anos de tensão, nervosismo, cansaço,  prazer, alegria, satisfação e amizades, consegui atingir meu objetivo, o de ter a LICENCIATURA ( HISTÓRIA ) para que pudesse realizar um sonho antigo ser PROFESSOR. Foram meses de muitos estudo e pesquisas, muita tensão, nervosismo, noites sem dormir, cansaço mas tudo com muito prazer alegria e satisfação, pois, adquiri conhecimentos e experiências antes não vividas, encontrei pessoas incríveis que levarei para o resto da vida.
Agradeço ao meu coordenador, professor e amigo Paulo de plena erudição. Cláudia por seus conhecimentos invejáveis, o tranqüilo e sensato não menos erudito Rafael, o muitas vezes incompreendido mas de uma inteligência incomparável Fábio. Não esquecendo outro grandes professores como: Wellington, Manuela, Monica e tantos outros. E também a pureza e sensibilidade da profª. Margareth. Que me capacitaram a ser futuramente um grande profissional do ensino.
Agradeço a minha esposa(...), agradeço também aos professores (...) pelas palavras de incentivo.
Mas agradeço muito aos meus inimigos e pessoas que torceram contra o meu sonho, seja, com empecilhos colocados no meu caminho ou duvidar de minha intelectualidade para tal,mas EU VENCI... e a você que acha que apoio não tem capacidade de ser um professor e quem sabe um diretor de escola, tai.
SOU PROFESSOR .....CARAMBA!!!!!
OBRIGADO, DEUS !!!!!!!!”

Fiquei encantada! E agradeci a Deus porque ainda me encanto com coisas assim. Tendo pedido a Santoro permissão para escrever o texto e citar seu nome, ele me respondeu afirmativamente, e completou a resposta dizendo da esperança de que o texto sirva de incentivo para outras pessoas. É ele!

É ele, o menino que a escola excluiu, e eu nem sei do motivo. Sei, que excluiu. Não fosse assim, e já teria concluído seus estudos antes. E, ainda que alguém pense que ele pode ter terminado o Ensino Médio na época certa, e resolvido graduar-se depois, ainda assim julgo ser isto uma exclusão da escola. Exclusão pior, porque velada.

A escola exclui ao apresentar ao aluno o seu currículo oculto: aquele que seleciona, que desagrega, que unifica, que discrimina. Não precisa dizer nada. Age. É cruel. E, mesmo que consigam passar por ela até o momento de Certificado, saem de lá jovens que internalizaram que aquele é o seu limite. Que basta. Que “agora” é hora do mercado de trabalho.

Mas o desejo, o que fica no coração, ainda que adormeça, um dia acorda. Santoro permitiu dar vez aos sonhos do coração. Santoro rompeu barreiras, e agora é um Professor de História! Educador sempre o foi, posto que não dá para separar a ação de educar e designá-la somente aos docentes da escola. Todo mundo educa, uma vez que todo mundo é adulto naquele universo onde as crianças estão para aprender... Santoro, agora, é Professor!

Será um Professor “de primeira”, porque levará para a sua sala de aula, muito mais do que a história que pretende ensinar, a história da vida que o compôs. Levará para os meninos e meninas – seus futuros alunos – o testemunho vivo de que é possível sonhar, acreditar nos sonhos, ter uma meta na vida e alcançar bons resultados quando se luta para vencer. E tudo isto é possível de se conseguir com dignidade e, sobretudo, com humildade.

Deus ainda não desistiu. Deus espera de mim, espera de você, espera de Santoro. E Deus se agrada, quando vê, de lá do mais alto dos céus, um filho Seu sabendo aproveitar de modo bom a vida que lhe foi concedida.

O que dizer a Santoro?

Santoro, meu texto hoje é uma pequena homenagem a você. Escrevo, porque é o que mais amo fazer na vida. Não saberia fazer de outro jeito.

Fico do lado de cá, esperando ler sua publicação acerca do primeiro dia numa sala de aula. Fico na torcida, alegre por saber que vem gente boa por aí. Gente com sangue abençoado nas veias, gente que vem para fazer o bem.

Do lado de cá não está nada fácil, meu amigo. Mas quando você estiver por aqui, ficará tudo bem melhor!

Parabéns!

Karla Pontes.



domingo, 29 de junho de 2014

Descanso do Guerreiro


Chegou a hora! Para uma boa parte do grupo é amanhã, o grande dia! Que venham as férias!!!

Este texto segue carinhosamente para todos os queridos Professores: para os que irão descansar a partir de amanhã, para os que ainda enfrentarão uma quinzena “na lida”, e para aqueles que, desde que a Copa do Mundo começou, já estão em casa...

Bem, ajeitei-me na cadeira onde me sento para digitar as palavras ditadas pelo meu coração. É sempre a mesma cadeira, à mesma mesa, a mesma música de fundo (por acaso é esta que vocês devem estar ouvindo se ligaram o volume ao visitarem a página). Uns segundinhos de olhos fechados... Eu queria pedir a Deus por vocês, em oração...

Peço, então, que Deus os abençoe profundamente, carinhosamente, especialmente, se é que não é redundante pedir assim, deste jeito, uma bênção a Ele.

Desejo dias de paz, de descanso. Sei que muitos aproveitarão esse período para trabalhar – em casa, nos seus segundos empregos, em comunidades, enfim – mas, mesmo assim, meu desejo é de que estejam em paz.

Penso que Deus deve se orgulhar sobremaneira dos seus filhos que fizeram a opção de serem Professores. Sim, é verdade! Não foi também Jesus um verdadeiro Pedagogo? Não tivesse Ele, lá, Seus dons, e muita gente se dispersaria diante de Suas palavras...

Hoje é domingo, um domingo quase igual ao outros, não tem “cara” de férias. Mas amanhã, quando o despertador se calar ao passar por aquela hora que só vocês e ele conhecem, será sim, um dia especial: vocês virarão para o outro lado da cama, arrumarão seus travesseiros, cobertas, pijamas, maridos, esposas, filhos, gatos, cachorrinhos – cada um com seu parceiro! – e voltarão a dormir. Quinze minutos a mais, que sejam! Serão abençoados!

Acordar sem pensar no que fazer: oh, que maravilha! Passar dias, ainda que poucos, sem precisar pensar no que será do dia de amanhã.

Tudo é muito pouco na rotina de um Professor, e bem sei disto, Professora que sou. Nosso salário é pouco, nosso tempo é curto, nossos direitos são quase nenhum. São poucos os quinze dias de férias no meio de um ano letivo com duzentos dias. Mas é o que temos por ora, e importa que saibamos aproveitar cada minuto, porque essa paradinha, ainda que ínfima, pode ser revigorante para quem sabe usufruir dela.

Então, Professores, permitam-se! E, só de pensar em pedir a Deus por vocês, lá fui eu tendo algumas ideias: o que vocês podem fazer nesses quinze dias? Hum...


*    Visitem seus pais. Ou tios. Ou avós. Procurem alguém da família, aquele parente mais velho, mais distante, que não veem faz tempo! Certamente há muitas e longas histórias para ouvirem, e depois contarem, quem sabe até para seus alunos? Ah, e vocês podem buscar por fotografias antigas da família, e podem registrar essa delícia de encontro em fotos emocionantes, também.


*    Cozinhem. A internet está cheia de opções, desde as receitas mais fáceis, para os inexperientes, às mais inusitadas, que requerem tempo e paciência, coisa que andou lhes faltando nesses últimos dias, por conta da sobrecarga de trabalho, talvez. Experimentem o prato junto às pessoas que mais amam. Convidem!


*    Nadem. Piscinas aquecidas são a saída nesses tempos de inverno, mas nada se compara à beleza do mar. Há quanto tempo não dão umas braçadas? Esperem o dia certo, o Sol sempre faz o convite, ordenando que o mar se acalme. Sentem-se na areia. Sintam a areia. Conversem com as ondas. Peçam a Deus a permissão para entrarem. Mergulhem. Conversem com Deus. E não se sintam loucos, vocês não serão os únicos!


*    Vão à feira. Comprem frutas, legumes e verduras fresquinhos. Pechinchem! Barganhem com os vendedores, isto é extremamente divertido! Reparem bem em seus discursos, em suas defesas. Observem como está cheio de gente inteligente fora da escola. Vocês podem fazer o mesmo em qualquer lugar onde haja gente que pode não ter estudado como vocês.


*    Escrevam cartas. Escolham um, ou dois, ou três destinatários e façam esta surpresa maravilhosa. Bem, eu nem preciso me alongar explicando o que seria isto. Apenas peço que vocês se imaginem recebendo uma carta, escrita à mão, de um amigo. Dá para preverem a emoção, não dá?


*    Durmam. O corpo precisa de descanso, de sono. É fato que não recuperamos dias e noites mal dormidos, mas, se nessa quinzena isto lhes for possível, deem ao corpo o tempo de que ele precisa. Tirem aquele cochilo gostoso após o almoço, ou mesmo no meio do dia, quando sentirem vontade...

Bem, eu listaria aqui mais coisas, mas cada um sabe de si, de sua vida, dos seus projetos para as férias. Minha intenção única foi a de lembrar a vocês de algumas coisas que podem passar despercebidas nesses dias...

O mais importante é o meu desejo de que Deus esteja presente ao seu lado, em qualquer escolha que vocês façam. Que Ele lhes fale ao coração em cada momento de intimidade – seja na praia, na cama, na escrivaninha, ao fogão, na feira – e que vocês, com ouvidos atentos, ouçam e creiam, e se fortaleçam todos os dias, até chegar a hora do retorno às salas de aula, e que essa força em vocês permaneça.

Quinze dias passarão muito rápido, sabemos. Mas podem significar muito mais em suas vidas.

Agradeço a Deus por nossa escolha: Professores que somos, responsáveis por fazer valer os dias de nossos meninos e meninas. Por fazer valer cada dia dos nossos meninos e meninas, e por garantir – ao menos, permitir garantir – que seus dias tenham valor pelo resto de suas vidas.

Boas férias, Professores! E que Deus nos permita voltarmos às nossas escolas, às nossas salas de aula, aos nossos alunos, renovados de uma esperança que só Ele pode alimentar.

Amém?

Karla Pontes.
karlarodriguespontes@yahoo.com.br




segunda-feira, 16 de junho de 2014

Quando tem que acontecer



Só conheciam as vozes, um do outro. Uma ligação por engano – ele para a casa dela – fez com que os dois se ouvissem. E gostaram do que ouviram.

Ele realmente se enganou, desacostumado que estava dessas ligações em telefone fixo. Precisou atender a um pedido de retorno na secretária eletrônica. Pôs números a mais? Trocou pares por ímpares? Foram números a menos? Não sabe. Já não quer mais saber. Ela atendeu, e pronto.

Ela ainda pede desculpas pela forma rude com a qual atendeu à chamada dele: “O que é, agora?”, disse, com tom firme, pensando ser, novamente, ligação de outra pessoa. Ele prontamente desculpou-se, identificou-se e, tendo percebido o equívoco, sugeriu desligar o telefone. Ela, envergonhada, desculpou-se (ali foi a primeira vez) e sorriu. Ele retribuiu o sorriso. Pediu que se acalmasse. E, quando olharam o relógio, estavam conversando fazia alguns minutos!

Era noite. Desligados os aparelhos, os dois, simultaneamente, respiraram, sorriram de si mesmos, estranharam o acontecimento, levantaram-se do sofá e, enquanto jantavam o que havia no micro-ondas, tentavam imaginar a figura do outro da voz bonita...

Mas o pensamento não os deixou à mesa da cozinha. Há muito não conversavam com alguém tão agradável. Quanta coincidência! Que coisa mais esquisita! E, duvidosos – e estranhamente alegres – adormeceram em suas camas grandes demais para o tamanho de sua solidão.

Falaram-se durante toda a semana. Sempre no mesmo horário: às 20h15min, aquele mesmo horário da primeira ligação. Mas já não se tratava de engano algum: Era Carlos que ligava para Ana. Ou Ana, que surpreendia Carlos, discando primeiro.

Com quantos anos de idade se se apaixona? Sim, aquele amor bobo, de tremer o corpo ao ouvir um “alô” (como era costume dele) ou um “pronto” (como era costume dela)? Carlos já havia passado dos cinquenta anos. Ana tinha exatamente quarenta e seis. Ao final daquela semana, tendo sonhado, os dois, com as possibilidades do que seria o outro, tendo ouvido no rádio do carro as músicas que o outro sugerira, tendo perdido a hora no banho, nos sonhos, no café, à mesa da cozinha, no sofá depois de terminada a conversa, começaram a pensar nisto: em estarem apaixonados, um pelo outro. Coisa boa!

As conversas foram, pouco a pouco, tomando consistência: Carlos começou a confessar a ela das vezes em que o café esfriava sobre a mesa, das distrações ao volante – que perigo! – da sua curiosidade em saber como ela era. Ana retribuía-lhe o carinho da confissão: revelou pensar muito nele, também. Disse que acordava e dormia ao som da sua música preferida. Carlos sugeriu, então, um encontro.

Do outro lado da linha, uma Ana muda. Fingiu ter caído a ligação. Colocou o fone no gancho: “ele quer me conhecer”, pensou.

Ana já conhecia bastante de Carlos. Sabia que ele malhava na mesma academia de uma amiga dela (eles moravam a trinta quilômetros de distância, um do outro), que cuidava do corpo, que se alimentava bem. Carlos parecia ser, verdadeiramente, um homem bonito, elegante. Ela já havia dito a ele que não ligava para essas coisas, que estava acima do peso, que era descuidada em sua alimentação. E, diante do convite para conhecerem-se de fato, titubeou.

Até que ouviu o alarme de recado na secretária eletrônica. Era um recado dele, de Carlos: “Ana, quero o encontro, porque estou apaixonado por você. Mas respeito sua decisão. Durma com Deus.”

Ana afogou-se no meio das almofadas do sofá da sala. Chegou a hora de vê-lo de perto, de sentir seu cheiro. Ria, roía as unhas, olhava-se no espelho. Não, aquele não era o século vinte e um. Não, aquela história... Se contasse, ninguém acreditaria! Beliscou-se, com infantilidade: estava viva. Sim, estava viva, estava apaixonada – completamente apaixonada – e era correspondida! Dentro de casa, na pequena sala onde só cabia o sofá e a mesinha do telefone (para que mais?), pôde ter quinze anos outra vez: fechou os olhos e arriscou abraçar Carlos. E beijou-lhe o rosto, ainda que sua intenção fosse outra. Até que o apito da chaleira a acordou daquele sonho, que estava mais para plano de ação. Foi para a cozinha, preparou e tomou seu chá preferido, ajeitou-se na cama e dormiu.

Manhã de quinta-feira. Ana levantou-se num pulo só. E fez as contas do tempo que restava para ter Carlos ao telefone, novamente. Já não quer mais dominar-se: quer o encontro. Quer sentir o perfume de Carlos e tentar adivinhar qual é (Ana é boa nisto).

Carlos olhava-se no espelho, duvidoso entre fazer ou não a barba. Olhava os dois vidros de perfume sobre a bancada e decidia qual usar no sábado. Tentava imaginar a roupa que Ana usaria para o encontro, certo de que ela diria “sim”, que aceitaria o convite. Olhou o relógio e fez as contas do tempo que restava para ter Ana ao telefone.

O dia e a tarde se passaram arrastadamente: cada minuto contado, desatenção total no que se tinha que fazer aquele dia. Troco esquecido no jornaleiro da banca perto da casa dele, e no restaurante onde ela almoça. Quem lembraria? Quem estaria pensando noutra coisa, senão um no outro?

Carlos, a caminho dos cinquenta e um anos de idade, é um menino nervoso, ansioso e inseguro. Ana, aos quarenta e seis, está com taquicardia. Amor!

Não preciso dizer que às 20h15min o telefone dos dois dava ocupado. Ela resolveu esperar um pouco, e foi só colocar no gancho, que tocou. Ela disse “pronto!”, ele disse “oi!”, ela respondeu “onde, e a que horas?”... Marcado o encontro, então, para a noite daquele sábado.

A sexta-feira não existiu. Haviam combinado de não se falarem aquele dia. Emoção acumulada – propositadamente? – para o momento de estarem pessoalmente um com o outro. Ana nem se lembra se trabalhou, aquele dia. Não lembra o que vestiu, o que lanchou, que chá tomou antes de ir dormir. Carlos não sabe com quantas pessoas esteve. Só se lembra de uns berros de uns motoristas nuns carros próximos ao seu, no trajeto de ida e volta para casa. Acha que fez algumas “barbeiragens”, perfeitamente perdoáveis, bem sabemos.

Quando Ana chegou ao restaurante, Carlos havia reservado a mesa: próxima da varanda, de onde se podia ver, ainda, o sol se pondo. O que Ana viu foi meio luz, meio Carlos. Ana gostou do que viu.

Percebendo Ana se aproximar da mesa, Carlos viu meio luz, meio Ana. E Carlos gostou do que viu.

Aquele sol se pondo fez a interseção do encontro dos corpos do casal apaixonado. E pôs-se a tempo, para que a lua viesse, e terminasse o serviço de embalar-lhes a noite. Carlos era, realmente, um belo homem: alto, esguio, de ombros retos e mãos grandes. Ana estava ainda mais bonita – porque feliz – com o novo corte de cabelo que havia experimentado.

Olhando Ana a falar nervosamente, Carlos não a interrompia. Naturalmente homem, reparava-lhe as curvas. Sim, Ana estava acima do peso. E ele nunca tinha estado com uma mulher tão interessante e bela! Podia fechar os olhos, já. Já a tinha decorado: linda, Ana! Ela falava, enquanto Carlos agradecia a Deus por ter esperado por ela.

Carlos falava pouco. Ana já lhe adivinhara o perfume. Ria em pensamentos. E agradecia a Deus por estar diante daquilo tudo que ela sempre desejou ter, bem diante dos seus olhos. Agradecia por ter esperado por ele.

Quando tem que acontecer, acontece. Só conheciam as vozes, um do outro. Agora, estavam ali. A lua perdeu a hora, velando os dois. O céu movimentou-se, para que o sol tomasse o seu trono de rei, novamente. O garçom fez uns barulhos estranhos, para que aqueles dois percebessem que o restaurante estava fechando. Já era domingo. Sorriram para o garçom, Carlos pagou a conta. Era hora de cada um ir para a sua casa e esperar o telefone tocar, às 20h15min.

quarta-feira, 16 de abril de 2014

Trinta anos


Trinta anos separados. Até que se reencontram. E cada um tem, de repente, trinta anos a menos, pelo menos por um dia...

Em trinta anos, ficaram adultos. Agora têm em seus rostos, além das marcas das espinhas da adolescência, rugas: viveram! Trazem os olhos cansados – já viram tanta coisa nesta vida! – e auxiliados, agora, por lentes de óculos que jamais pensaram em usar. Muitos cabelos brancos apareceram, embora ela ainda os disfarce numa tinta amarronzada.

Um casal de amigos. Muito amigos. E que só sabem que sempre o foram agora que a maturidade lhes permite saberes que não possuíam há trinta anos...

Um dia, depois de alguns anos dividindo brincadeiras, apelidos e boladas na hora do recreio, o destino os separou: era chegada a hora do “segundo grau”. Fizeram escolhas diferentes, um sem saber do outro. Tomaram rumos diferentes. No fim daquele ano ela recebeu dele, pelos Correios,  uma fita K7 com canções gravadas e um cartãozinho de Natal, com confidências de carinho. Ela riu. Jamais se esqueceu: “Alguém disse que te ama, adivinha quem fui?

Nunca mais se viram. Nunca mais se falaram. E trinta anos se passaram.

Trinta anos levaram embora uma menina sonhadora e um menino pra lá de tímido. Ele cresceu, conheceu o amor, casou-se. Ela cresceu, conheceu o amor, casou-se. Respeitando a ordem natural das coisas, tiveram filhos. Lindos filhos!

Enquanto deixavam de ser adolescentes e se tornavam adultos, Deus foi realizando Sua obra. Deu-lhes talentos afins: a poesia, a fotografia, a música, o romantismo, a fé. Deus desenhou naqueles dois o rascunho de almas boas, generosas, caridosas, fiéis.

Enquanto deixavam de ser adolescentes e se tornavam adultos, o homem aprimorou a robótica e a cibernética. E um belo dia, trinta anos depois de um histórico escolar separar os dois amigos, a Internet os encontrou – ou eles encontraram a Internet – e eles encontraram-se, um ao outro.

As emoções se sobrepõem ao tempo. No primeiro (re)encontro, os treze anos de volta. E, diante do espelho que revela a verdadeira idade, aquela saudade de tudo o que foi vivido!...

Trinta anos não são nada quando o adeus não é dito.

E hoje, gratos a Deus pela Inteligência do homem, de vez em quando os dois amigos trocam seu “bom dia”. De vez em quando um ajuda o outro, um socorre o outro, e muito mais vezes um se alegra com a alegria do outro.

Talvez um dia o reencontro presencial se dê. E o abraço aconteça. O abraço que nunca existiu, posto que, crianças, nunca deram importância a isto. Crianças e adolescentes não sabem a falta que um abraço faz. Enquanto este dia não chega, conforto-me com sua voz em gravações que tenho, com suas palavras de carinho. Vamos acompanhando, um ao outro, através do “Sr. Google”, este que, se bem utilizado, pode aproximar tantos destinos que se perderam!...

Cada vez que estou com ele, sou uma menina. Do outro lado, sua foto no “chat” me revela o garoto. Que é o tempo, afinal? Este senhor das horas que reduz nosso prazer no banho, nosso sonho na cama, nossa viagem no carro, nossa alegria na vida se, diante de uma emoção que se sente, é capaz de parar por trinta anos?

Bem-vindo à minha vida virtual, querido amigo! Poetas que somos – você infinitamente melhor do que eu – fomos agraciados com o dom de não temer o vibrar do relógio. E não me resta dúvida de que nossa afinidade em perceber essência em coisas que a maioria das pessoas despreza, faz-nos sentir o calor do abraço, ainda que estejamos geograficamente tão distantes!

Hoje meu texto é pra você.


domingo, 6 de abril de 2014

Diferentes lições de três vidas


Ele renasceu. Renasce todos os dias. Bravo, guerreiro, forte. Depois da primeira cura, a rotina de saber se venceu cada batalha, se o inimigo desistiu de pregar-lhe os sustos. Não se rende, embora o medo – sentimento possível de existir em qualquer pessoa normal – às vezes o tente: “homem não chora”, dizem-lhe as tentações. Prende o choro, respira fundo. E segue a vida, ora alegre, ora triste, como a vida é vivida. Ah, Pedro, também não vivemos nós assim?

Pedro é pedra, é rocha. Sua mãe decidiu dar-lhe o nome ideal, instintivamente. Pedro é firme. E Deus está provando isto: todos os que convivem com ele percebem...

Um outro se chama Victor. Ainda não nasceu, mas já é vitorioso. Surgiu como um milagre, ainda que sua mãe não se lembre do momento do sussurro dos anjos. E como milagre “vingou”, e descansa junto com sua mãe, aguardando a hora de conhecer o mundo. Enquanto ficam os dois juntos, dia e noite, noite e dia repousando, Victor vai ensinando à sua mãe coisas sobre a paciência, a resignação, a força de vontade: que fraco pode ser vencedor?

Aqui em casa possuo o inestimável, o que não tem preço: do meu ventre, saiu Antônio! Hoje, aos oito anos de idade é, ainda, meu professor. Um professor de sentimentos. Antônio controla-me os impulsos (“calma, mãe, se concentra!”), diz-me coisas de Deus. Na ingenuidade de criança, é o meu porto seguro, e nem sabe! Inestimável é o significado do nome Antônio.

Nossos filhos nos ensinam sobre a vida. Vêm ao mundo para isto, cada vez creio mais! Pedro, Victor, Antônio, que seríamos de nós, suas mães, sem eles? Nada saberíamos sobre esperar.

Vida de mãe é vida de culpa, de dor, de espera. Foi assim desde Maria: depois do “sim”, que lhe restou, senão obedecer, aceitar, calar, esperar?... Mas Deus, conhecedor de cada coração, deu Pedro à pessoa certa, e assim o fez com Victor e com Antônio. Obrigada, Senhor!

Hoje, na rotina da minha vida, convivo com essas três experiências. Vejo um homem, resultado da presença de sua mãe em sua vida, reagir diante do que se imagina incurável... Onde encontra a fortaleza? E, embora fuja muitas vezes dela – talvez para amenizar-lhe o sofrimento – sabe, perfeitamente, visceralmente, onde encontrá-la: (a)braços de mãe, chão. E sabe que, ainda que um papel lhe diga não, o sorriso nos lábios de um rosto com olhos tristes lhe dirá, para toda a vida “sim”. Que há de melhor e mais sublime do que um “sim” de mãe?

Neste tempo em que passam juntos – nunca tão juntos! – Victor vai descobrindo a mãe que tem, e não o contrário. Não, não somos nós a descobrirmos as façanhas de nossas crias. Muito antes disto, eles nos conhecem perfeitamente. Victor segue, pondo por terra todos os planos de rotina de trabalho, de obras, de idas e vindas de sua mãe. Victor revela que o importante é ele, que a prioridade é ele, e que se sua mãe dedicar a ele as vinte e quatro horas do seu dia, terão todo o tempo do mundo para fazer o resto! Victor ensina sua mãe a amar, incondicionalmente. E aquela impaciência de mulher de outrora cede espaço para a mãe que, aconchegada na cama, espera a vinda do conquistador...

Eu tinha trinta e sete anos e achava que já sabia de quase todas as coisas. Sabia tanto, que nem pensava em ser mãe. Mas uma maravilhosa “rasteira” divina me mostrou num papelzinho escrito POSITIVO quem é que sabe de todas as coisas. E hoje, quando olho para Antônio, saudável, cheio de energia, inteligente, sagaz, humano, bom, generoso, agradeço muito a Deus, porque jamais imaginara ser, aos olhos do Senhor, digna de um filho assim.

Eles são. Pronto. Pedro, Victor e Antônio são. Estão aí, estão no mundo, enviados por Deus a cada lar já predestinado. São filhos dEle, do Amor maior de Deus por nós. Delegadas fomos, por Ele, a cuidar para que se tornem pessoas do bem. Fazemos nossa parte, com toda a culpa, a dor, a espera de sermos mães. Nossos filhos são nossas alegrias! Com eles aprendemos verdadeiramente a viver! Amadurecemos com cada sofrimento, com cada cansaço – e que cansaço! – com cada noite mal dormida. E Deus nos estende a mão em cada tropeço, porque se alegra de nossa perseverança.

Pedro se curou e se cura todas as vezes em que sua mãe, numa intimidade que só as mães têm com Deus, pede por ele. Victor está no ventre de sua mãe, aguardando a hora de sua chegada, só porque sua mãe pediu a Deus por ele. Da mesma forma, Antônio é o que é na minha vida porque, em todos os momentos entrego a Deus o filho que gerei para Ele.

Que Nosso Senhor abençoe nossas crianças – eis o que há em comum nos três – e as crianças de todas as mães que se encontrarem nesta história. Que prossigamos com força, com fé, com coragem, com discernimento, com amor, cuidando de nossos filhos, e que lhes sirvamos de exemplo para a condução de suas vidas.

Eu queria falar de Amor. De Gratidão e de Fé. Espero ter conseguido.


Amém.

domingo, 9 de fevereiro de 2014

Um rastro de sonhos


Amanhã será o seu primeiro dia de aula. Ora, por que será que quando ouvimos a expressão “primeiro dia de aula” nos remetemos somente aos alunos? Absolutamente! Se você entende que a aprendizagem acontece em todas as vias de comunicação, amanhã será, sim, o seu primeiro dia de aula.

Antes de ir dormir, escolha sua melhor roupa. Verifique se seus sapatos estão limpos. Acerte o despertador, de modo que ele lhe acorde num horário adequado, não se esqueça de que você tem coisas importantes a fazer: precisa barbear-se, precisa passar a camisa, precisa tomar um bom banho frio – se possível demorado! – para “acordar” seu corpo. Precisa sair cedo de casa, abastecer o carro, verificar os pneus, água e óleo, precisa chegar à escola cedo, conhecer seus novos colegas de trabalho, abraçar os antigos. Você precisa estar lá, porque seu aluno vai chegar!

Na sua sala de aula, depois do sinal vibrante tocar, estarão trinta e cinco alunos. Trinta e cinco ansiedades que, somadas à sua, darão conta de trinta e seis corações batendo descompassados... Quer uma sugestão? Antes de adentrar aquele espaço sagrado – sim, ainda estou falando da sala de aula – faça uma breve e íntima oração. Peça ao Deus que é seu, que lhe atende nos momentos mais particulares, para entrar com você, para ficar ao seu lado, para segurar-lhe a mão.

O primeiro dia de aula não é só seu: aquele professor da sala ao lado, aquele mesmo, o que está prestes a aposentar-se, estará, assim como você, estreando, também.

Será o primeiro dia de aula, também, para aquele menino que, no ano passado, foi suspenso tantas vezes! Aquele que pulou os muros da escola tentando fugir, aquele que agrediu a cozinheira, que arranhou seu carro, embora você nem tenha sido seu professor, à época.

Amanhã será o primeiro dia de aula para todos, na escola.

Bem, o domingo está lindo – prometendo! – e no meu coração, uma preocupação, uma ansiedade (pode contar o descompasso do meu coração, também), um desejo de dizer a você, professor, de um caminho que se faz, quando se ensina. Meu caminho, já o faço há trinta anos. E, no entanto, quase sempre penso que estou diante do primeiro dia de aula...

Um conselho? A cada passo que der, olhe para trás. Porque o que fica dessa nossa profissão abençoada, é um rastro de sonhos, que vão nos dizendo se valeu a pena ou não. De posse da avaliação que fazemos do rastro que deixamos, podemos – devemos! – mudar os passos, tomar novos rumos. Porque, se olharmos atentos para o rastro que deixamos, é-nos possível saber se será seguro continuar a caminhada de onde paramos.

Os sonhos ficam, luzindo, marcando os passos que demos... Sonhos nossos, sonhos dos nossos colegas de profissão, sonhos dos nossos meninos e meninas. Sua responsabilidade, professor, é acender mais e mais, a cada passo, os sonhos do seu rastro.

Seus alunos chegarão à escola sem saber lhe dizer por que lá estão. Mas, se você não perguntar, jamais descobrirá. Pergunte. Você verá que uns estão na escola porque seus pais lhe obrigam. Muitos pais obrigam seus filhos a estarem na escola não pelo valor que dão ao diploma, mas pelas infinitas “bolsas” que recebem por manter a frequência deles por lá. Verá que alguns estão na escola porque não querem estar em casa: fogem do serviço doméstico, ou de um trabalho mais pesado. Verá que uns poucos estão na escola por opção própria, por acreditar que somente através da escola poderão “ser alguém na vida”. E verá também, professor, quantos deles se refugiam na escola do inferno de suas vidas.

Amanhã será o primeiro dia de aula: seu primeiro passo na estrada. Quando o dia acabar, quando o sinal vibrar lhe avisando que já pode retornar a casa, seus passos de volta ao lar deixarão no chão da vida seus primeiros rastros. Posso dizer a você, professor, que essa marca é a mais importante de todas, porque tudo se define nos primeiros passos. Portanto, esteja atento, não aos conteúdos, aos pré-requisitos, ao conhecimento que seu aluno trouxe consigo da série anterior. Esteja atento aos olhares...

Nos olhos de seus alunos estará a “chave” para um bom ano letivo: saiba ver, olhe com intencionalidade. Saiba tocar-lhes o coração, afeto é tudo! Permita-se ser tocado pela magia da emoção, também. Ali não estará o problema, estará a solução. Apresente-se limpo, disposto, com aquela camisa bonita e bem passada, com a barba feita, com os cabelos cortados. Mostre a eles que você se preparou, que se perfumou para eles, que valoriza o momento em que passa ao lado deles. Seja firme nas atitudes, não permita o que você não suportará mais tarde, fale em voz baixa, imponha limites, estabeleça “combinados” com a turma, use um vocabulário correto, evite gírias, preste atenção no uso correto da nossa língua portuguesa, os meninos não sabem falar, não aprenderam a falar, a mídia não ensina, os “funks” e demais músicas ouvidas por eles não colaboram, também. Mas você é a escola, e é lá que se ensina.

Valorize-se. Encante. Não há quem resista ao encanto de um professor!

E impregnado da magia de ser professor (um professor abençoado) faça o seu melhor, ciente a todo tempo de que para além de alunos, diante de você há seres humanos, há gente, há histórias, há vidas! Ciente de que seu rastro você não marca sozinho: todos os meninos e meninas que conviverem com você marcarão sua passagem pela sua estrada. Ciente de que trinta e cinco corações descompassados esperam tudo de você, e eles nem sabem ainda, posto que são tão jovens!

Nós somos os adultos. Sabemos o que há lá na frente. Você sabe exatamente o que, lá na frente, espera um menino que vive “causando problemas” na escola. Sabe o que espera aquela menina com aquele determinado comportamento à frente de sua geração. E sabe que não é nada bom...

Amanhã, professor, sua presença na sala de aula poderá mudar destinos. Pode ser até que o dia de amanhã seja suficiente para que suas palavras mudem destinos. Só depende de você.

Eu não sei qual a oração que você fará no portal da sala. Não sei qual é o seu Deus, tampouco se você acredita em um. Não sei qual é a sua crença, mas desde já tomo a liberdade de pedir, em oração, por você.

Abençoados sejam todos os professores pela escolha da profissão. Que sejam iluminados e conduzidos pelo bem, e que possam deixar, ao longo deste ano letivo de 2014, um rastro de sonhos realizados pelo caminho.


Que Deus abençoe o seu primeiro dia de aula, todos os dias, professor. Amém.