terça-feira, 20 de agosto de 2013

Uma maratona chamada Escola


Hoje eu trouxe muitos dos meninos para casa. Vieram no meu pensamento. Viajaram por quase quarenta quilômetros comigo, me pedindo para estudar.

Às vezes me sinto cansada. Os meninos me revigoram. Por incrível que pareça, viver os problemas da escola me deixa feliz. Eles ainda mexem comigo, alteram meu humor, me tiram o apetite. Isto é um bom sinal para quem teme chegar ao ponto de não se abalar mais com as atrocidades que a escola comete. Escola, Educação, Sistema Público, Sistema Privado. Nada pessoal, nada particular. É o todo, é quase a vida!

Acontece que defendo há décadas que a vida escolar das crianças deve fluir sem maiores obstáculos, e que a Escola tem tudo a ver com isto. Jargão decorado, bonito. No entanto, uma frase não move uma vida. E, de jargão em jargão, vamos eliminando do nosso convívio as situações problemáticas que podemos eliminar, no intuito de evitarmos aborrecimentos.

Eu estou triste. Peço desculpas ao leitor se houver troca de letras neste texto, mas quando escrevo triste, costumo escrever assim, com letras trocadas...

A foto escolhida para ilustrar o texto de hoje é proposital. Pesquisando no Google, certifiquei-me de que faz nove anos que o fato aconteceu. Daí, certifiquei-me de que faz nove anos que quero escrever sobre aquilo. Eis minha analogia:

O corredor, Wanderley, o aluno da escola pública (penso que agora já dá para incluir alguns casos de escola privada, também, infelizmente). Concentrado, obstinado, esforçando-se para chegar a um lugar. Feliz por perceber-se já na reta final, orgulhoso por avistar a linha de chegada, satisfeito por ver a torcida a seu favor. Pensando em tantas coisas durante o percurso! Na família, no emprego, nas contas a pagar...

Na transversal do circuito, o “escocês”, a quem eu chamaria Escola. Vestido num uniforme impecável, muito bem penteado. Escondido, capcioso, aguardando, sem que ninguém se desse conta, a oportunidade de “dar o bote”. Não pensa muito, não reflete. Seu objetivo é um só: retirar da competição – excluir! – aquele menino franzino que destoava dos demais corredores. Aquele menino magrelo, aquele menino obstinado demais.

Então, o escocês o faz: com um empurrão, destrói o sonho. E ainda que resistente, insistente, Wanderley pouco tem a fazer, depois que vê passar à sua frente seus concorrentes que há minutos estavam tão longe! As pessoas mais próximas tentam ajudá-lo a se recompor, mas Wanderley não consegue. Seu emocional já está todo tomado pelas perguntas que faz a si mesmo a respeito da origem daquele homem. Nada mais há que se faça. Nosso herói está expulso.

Nossa louca escola – porque aquele “escocês” o era, certamente! – anda praticando esses erros, mesmo depois de nove anos. E aquele choro meu, de desespero, de angústia, de dor ao ver o menino brasileiro fora da maratona chega-me de assalto quando trago para casa, nos meus pensamentos os meninos excluídos, por causa escola, da maratona da vida.

Julgamento? Não nos cabe. Saber se o menino vai adiante, se tem condições de concluir os estudos, se prestará atenção nas aulas, se evadirá, se ocupará a vaga de outro à toa...

Nas quatro paredes que cercam uma escola não se pode ter pensamentos assim. Escolas – sobretudo as públicas! – devem dizer “sim, há vagas!”, devem dizer “vem, eu lhe acolho!”, devem sorrir, segurar a mão, apontar a linha de chegada, oferecer a água na hora em que o corpo sedento tomba e esmorece. Mas eu olho para os prédios, e tudo o que eu leio nos cartazes é “não”.

E tudo o que pensei hoje, no caminho de casa, refazendo minha trajetória que iniciou com o exercício da profissão de Professora em troca da isenção da mensalidade do Curso Normal, tudo o que pensei recordando de que no meu primeiro ano de Magistério, depois de formada, lecionei em troca de vales-transporte, tudo o que pensei depois de chorar a queda de todos os Wanderleys que testemunho quase diariamente, foi que ainda há esperança.

Minha esperança mora no coração de Professores que enobrecem a profissão. Mora naquele Professor que conhece o aluno pelo nome. Naquele Professor que preenche a sala de aula com a sua presença, ainda que em suas mãos carregue apenas giz e apagador. Minha esperança mora naquele Professor que olha seu aluno nos olhos, que reconhece um dia atípico, uma dor, uma tristeza, uma carência...

Ainda tenho esperanças, embora me seja tão difícil ver um aluno deixar o balcão de uma secretaria de escola diante da negativa de vaga. Porque, na verdade, o que me instiga é saber o que o aluno foi buscar lá. Sinto necessidade de saber o que eles ainda esperam daquele uniforme quase escocês!

Estou triste e, confesso, confusa.

Mas queria compartilhar com vocês a minha dor. Esta dor que me alegra, porque, como disse no início, temo um dia não sentir. Há uma gente que não sente mais, nas nossas escolas. Que não se aflige mais, que não se importa mais. São pessoas para quem não fez a menor diferença o susto de Wanderley diante do louco, lá.

Pode parecer estranho, mas eu vim até aqui para curvar-me diante do Bom Professor (ou a melhor expressão seria Verdadeiro Professor?). Esses poucos que teimam em insistir, em ousar, em realizar o milagre da boa aula, do convívio saudável, do servir-se de exemplo para uma juventude atordoada, de quem foram tirados os limites por culpa não se sabe de quem. Bons Professores são a certeza de um mundo melhor. São seres abençoados, em que Deus põe, eu diria, quase a mesma confiança que deposita no ser humano cada vez que o choro de uma criança anuncia a vida nova!

Um homem cabisbaixo voltou para casa hoje sem escola para estudar. Um Professor voltou para casa hoje orgulhoso da aula do dia, do rendimento – retorno! – da turma. Um aluno voltou para casa hoje feliz, porque aprendeu que multiplicação não é um monstro e, sim, uma forma mais rápida de se realizar somas sucessivas. Um pai voltou para casa hoje ansioso por ver as notas no boletim do filho. A vida é uma rotina atrás da outra, e segue – e acaba! – e independe da escola e de seus inúmeros “escoceses” para acontecer.

Eu agradeço a Deus por bons Professores existirem. São os instrumentos dEle para os destinos que se desenham na infância, na juventude. São o último amparo, se procurados na velhice.


Escola é lugar de “sim”, de “vem”. E eu me orgulho daquele Professor que faz da estada do seu aluno na Escola uma maratona onde se avista a linha de chegada, e se consegue chegar lá.