sábado, 27 de julho de 2013

Adeus, solidão.


Eu vivi sozinha por muitos anos. Vivi o que hoje julgo ser o pior tipo de solidão: aquele em que ao seu redor estão pessoas – às vezes muitas pessoas! – e, no entanto, não se tem ninguém ao lado. Não se vê ninguém, não se é visto. Não se ouve ninguém, não se é ouvido.  É uma solidão monstruosa, que se acomodou vagarosamente em minha vida e tomou posse dela. Eu permiti, não nego. Eu a chamava de ave (ave solidão). E a sentia, garras fincadas nos ombros, todas as vezes em que resolvia me fazer a quase inacabável visita. Foi palavra de presença certa nas incontáveis poesias e sonetos que escrevi na minha Remmington 22 aos pés da cama, na adolescência...

Eu rasguei tudo o que escrevi, na adolescência. Na verdade, minha adolescência – como tudo o que se deu comigo – estendeu-se um pouco mais, e eu ainda derramava lágrimas sobre o papel datilografado mesmo aos vinte e tantos anos. Foi tudo embora, numa tarde em que pus fim a uma história que não havia começado. Paradoxo? Só mais um em minha vida.

Naquela tarde muitas folhas de papel deixaram meu quarto com destino ao lixo em quarteirões bem distantes. Um medo sufocante de ser descoberta pelos meus pais na minha mais profunda intimidade – a de amar, amar, amar, e jamais ser correspondida – fez com que eu desse um basta naquela situação de dedos aflitos querendo confessar por que doía o coração. Tudo jogado fora: diários da infância, que se estenderam anos depois, papéis, papéis, papéis. Eu jogara parte preciosa da Karla no lixo. Fiquei lá, rasgada, a uns metros da casa onde morava. Hoje só me restam uma recordação distante e uma saudade que não passa, que chego a temer que seja arrependimento.

Bem, dei guarida à ave por muitos anos, como disse. No quarto da moça, móveis de cerejeira comprados num brechó (eu sempre gostei das coisas que não andavam “na moda”) e colchas, almofadas, cortinas e tapetes costurados num composê de corações em rosa e branco. Uma escrivaninha na medida certa da máquina de escrever e... da estadia da “solidão”.

Meu casamento não desfincou as garras da ave dos meus ombros. Por cinco anos dividimos, eu e ela, a casa nova, a vida nova, com o meu então marido. Não levei comigo a Remmington, ela pertencia a mim e à minha irmã, o presente nos havia sido dado em conjunto, não tínhamos condições financeiras de termos em casa duas máquinas de escrever. E, quando dei por mim, a solidão se fazia presente nas poesias que compunha. Mais velha, no entanto, não as rasguei. Desfiz o casamento, dilacerada, envergonhada, mas decidida e acabar com a presença daquela ave traiçoeira, que mais parecia uma sombra, sempre por perto, inclusive nos dias sem sol.

Moro em Iguaba há treze anos. Quando vim, quando Deus me concedeu a graça de refugiar-me, sofrer e renascer, trouxe a ave na mochila. Sim, ela não hesitou, quando me viu arrumar as coisas para partir. Aquietou-se, e ajeitou-se de tal modo que, sem ser percebida, chegou ao meu novo lar, meu novo mundo. Tomou posse. Fez o reconhecimento do local. Enraizou-se. Gostou de ficar.

Por seis anos fez-me companhia. Mesmo no período em que a inspiração me disse adeus, no período em que as palavras fugiam dos meus pensamentos e embolavam-se num balé ridículo, no período em que chorei a falta da Remmington, no período em que nada compus, ela ficou. Bateu ponto. Machucou-me a pele. Deixou feridas profundas.

Mas passados aqueles seis anos minha casa encheu-se de cor e de alegria: meu príncipe, meu rei, minha vida resolveu vir ao mundo para travar a batalha com a ave solidão, e afastá-la daqui. Chegou Antônio, nove meses depois de habitar no meu corpo!

Minha vida é completa, é feliz, é abençoada, é inteira porque tenho Antônio.

De tudo o que passei nos seus primeiros dias comigo, da incerteza da certeza de querer ficar sozinha com ele desde o início da sua vida, das descobertas que fomos fazendo um do outro, dos ensinamentos que trocamos, dos olhares, dos sorrisos, estabelecemos um código vital tamanho que mandou a ave para muito longe daqui. E por sete anos ela anda por aí, sorrateira e imunda, à espera de uma oportunidade de pousar em meus ombros novamente.

Hoje meu coração partido, ferido, entristecido, despediu-se de Antônio. Ele ficará por uns dias na casa da vovó. Ficamos trocando acenos até que o carro do pai dele sumisse na perspectiva. Eu, sem saber se chorava ou se sorria diante daquilo tudo que é meu, embora meça somente um metro e trinta e cinco centímetros.

Entrei em casa com o coração diminuído. Sentei-me no sofá. Estiquei as pernas. E ao primeiro sinal de chegada da ave, disse-lhe “não”.

Todas as vezes em que tive o corpo marcado por suas garras afiadas, fiéis aos meus ombros foi porque admiti sua presença. Uma fase de minha vida em que tê-la como companhia me causava até certo prazer. Mas foi uma fase em que, afastada do Deus Vivo, não me reconhecia no espelho, não me amava, só o que fazia era sentir pena de mim mesma.

Sinto muito, mas hoje sou feliz. E minha felicidade, embora tenha ido dentro daquele carro com destino a São Gonçalo, é tão grande que se desmembra, dissolve-se, reparte-se, e ainda sobra! Foi lá e, contudo, está aqui. Há brinquedos espalhados por toda a casa, há retratos espalhados em todas as paredes, há o cheiro, a presença de Antônio aqui nos quatro cantos, e onde Antônio esteve – ou está? – não há lugar para solidão.

Meu menino, meu herói, venceu mais uma batalha, e desta vez nem foi pela tela do notebook (a Remmington dele, eu espero!). Desta vez, ele nem sabe! Venceu a luta contra a minha mais forte inimiga, a ave solidão. E agora ela não há mais de voltar a rondar esta casa. Pois aqui mora a mais pura e sincera FELICIDADE.

Pode procurar outro endereço. Pode ir, e não voltar nunca mais. Porque onde moram mãe e filho que se amam na intensidade como acontece aqui em casa, não existe espaço para um sentimento tão cruel chamado solidão.



sexta-feira, 5 de julho de 2013

Saudades de Renato


Não era nenhum dia diferente. Deixei Antônio na casa da moça que toma conta dele, peguei a estrada cruzando o cinto de segurança no peito, e me ajeitando no banco. Troquei os óculos pelos de sol e, fazendo o sinal da cruz, pedi a Deus que me levasse e me trouxesse de volta pra casa.

É engraçado, porque sempre na hora em “me benzo” estou passando, justamente, pelo posto da Polícia Militar. Qualquer dia um policial mais atento vai me fazer parar o carro e me perguntar por que tenho tanto medo de passar em frente ao posto.

Depois que obedeci ao primeiro farol de 50 km acelerei, passei a quinta marcha e apertei o play: Legião Urbana 2, volume 35, batidinhas ritmadas no volante, abri as janelas do carro e Renato Russo me fez companhia até Cabo Frio. “A insegurança não me ataca quando erro”.

Eu segui cantando, voz alta, vento na garganta. Quando chega a sexta-feira já não me importo tanto com a cabeleira despenteada pelo vento na janela do carro. Meu cabelo já é despenteado por natureza, pouca diferença faz se fecho ou abro as janelas. Hoje fez uma manhã linda, impossível não sentir o dia! Sou “barco a motor” e nem sonho “insistir em usar os remos”... Vambora!

A vida é linda, e urge!

Eu fiz a viagem pensando em Renato. Que saudade! Que falta eu sinto dele! Como pôde ter isso embora assim, e ter-nos deixado aqui, órfãos das suas palavras, da sua poesia, da sua ode à juventude?! Quem canta, hoje, a felicidade do amor, de estar-se apaixonado melhor do que ele? Quem não sente o coração vibrando quando ouve, depois das batidas deliciosas das cordas do violão, o trecho “Tenho andado distraído, impaciente e indeciso. E ainda estou confuso, só que agora é diferente: estou tão tranquilo e tão contente!”? É como se sentíssemos o amor naquela hora, parece que nos apaixonamos de novo (e de novo, e de novo), cada vez que ouvimos a música. Aquela alegria da certeza após a dúvida: é amor! A sabedoria de dizer que “Já não sou mais tão criança a ponto de saber tudo”...  Ah, Renato, por que você fez isto com a gente?

Hoje os jovens estão lá nas ruas, com um movimento bonito, pacífico, pedindo justiça num país onde um símbolo de justiça cega confunde os interessados. Há uma gente lá fora levando tiros de borracha. Uma gente que nem lhe conheceu, Renato! Eu sinto tanto porque você não está ao lado deles, cantando suas canções! E, no entanto, viajo pasma, porque escuto você cantar (e que voz!) e sinto como se você tivesse acabado de compor a sua canção.

Na faixa três, “a” música: Acrilic on Canvas. E um pensamento nostálgico – uma saudade! – me toma o coração de assalto. Eu lembro como se fosse hoje que em 1986 fui testemunha de uma história de amor entre dois jovens que cursavam Belas Artes. Os dois, seus fãs. O menino, aprendendo a tocar violão, carregava para cima e para baixo as revistinhas com cifras das suas músicas. A menina, metida a cantora, combinava os acordes com o namorado. Foi assim, até que o namoro terminou. E a dor do fim foi gritada por você, Renato, no final da música feita para o entendimento de quem sabe de Artes. Acho que nem eu acreditaria na coincidência dos fatos, não tivesse eu mesma acompanhado aquilo tudo!

O céu azul de Cabo Frio, a despeito da cor que tem o céu de qualquer cidade vizinha traz a alegria: eu vivo! Eu respiro, eu sou perfeita, eu sou saudável, eu vejo, eu ouço! Dirijo no ritmo de Eduardo, atropelando os pensamentos, apaixonado por Mônica, sem saber o que fazer com aquele amor por aquela mulher tão poderosa, “nada a ver” com ele. E penso nos meus amores – cada tipo! – e concordo com você, mais uma vez: “Mesmo com tudo diferente, veio mesmo de repente, uma vontade de se ver”.

Aquela sensação de amar, maravilhosa, inexplicável, ganhou um defensor, um representante. E tudo aquilo que era difícil para os jovens dizerem foi dito nos discos, saiu da sua boca, foi cantado e dançado nos bares, clubes, festinhas...

Hoje, viajando, ouvindo você cantar, pensando nas cenas das manifestações no Brasil, alimentei-me de “Tempo Perdido”. E basta que balbuciemos suas palavras, basta que reflitemos um pouco sobre elas, e já nos dá vontade de viver mais, viver melhor, viver com força: “Somos tão jovens!” Ainda dá tempo de tanto! Impossível não lembrar de você dançando ao final da canção, num balé a que se podia chamar VIDA, num clamor para que prestássemos reverência ao dia que amanhece, e que observássemos “o sol da manhã tão cinza”... Por onde anda você, Renato?

A música que segue, a faixa sete, “Metrópole”, foi composta ontem, me parece. Não é possível que o descaso com a saúde pública esteja tão presente depois de tanto tempo.

O tom debochado – seu companheiro – na outra canção pede que se “faça do bom senso a nova ordem”. Eu ouço, contextualizo, rio. “Não deixe a guerra começar”. Será que você cantava para 2013, Renato? “Pense só um pouco, não há nada de novo. Você vive insatisfeito e não confia em ninguém. E não acredita em nada, e agora é só cansaço e falta de vontade, mas faça do bom senso a nova ordem”.

Um filme passa na minha cabeça, enquanto o violão o acompanha em “Música Urbana 2”. Estou já quase chegando à escola. Lá, as crianças também ainda aprendem a repetir a “música” que vomitam os PMs armados, as tropas de choque, os viciados, as antenas de TV, enquanto nascem mais algumas crianças. É 2013, faz mais de vinte anos que você compôs a música. Como pode ter sido assim?

Às vezes parecia que de tanto acreditar em tudo o que achávamos tão certo teríamos o mundo inteiro e até um pouco mais, faríamos florestas nos desertos e diamantes de pedaços de vidro... Até chegar o dia em que tentamos ter demais vendendo fácil o que não tinha preço”...

Nosso dia vai chegar, teremos nossa vez, não é pedir demais, quero justiça... Quero trabalho honesto em vez de escravidão... O céu já foi azul, mas agora é cinza, e o que era verde aqui já não existe mais”...

Quem me dera ao menos uma vez ter de volta todo o ouro que entreguei a quem conseguiu me convenceu que era prova de amizade se alguém levasse embora até o que eu não tinha”...

O que aconteceu ainda está por vir”.  Será que esta frase define sua aparição por aqui, Renato? Será que isto explica essa vida intensa que você levou, a ponto de mandar todos os recados às gerações futuras, às pessoas que não conviveriam mais com você?

Que mistério será este, Renato, de ouvir você cantar para a juventude de hoje?

Que falta sinto de você, Renato! Que pena, que perda foi, para nós, a sua partida daqui.

Cheguei bem à escola, graças a Deus. Renovada de uma esperança que você depositou em mim. Trabalhei bastante e, quando voltei para casa, na estrada, um sol quentinho batia no vidro dianteiro e aquecia o meu coração. Uma sensação que ainda não havia vivido! Você cantava outra vez, e desta vez parecia ainda melhor!

E eu pedi a Deus que o abençoe.


Saudades sempre! 

segunda-feira, 1 de julho de 2013

Senhora Presidenta


Antes mesmo de começar a escrever já vou lhe pedir desculpas pelos erros de Português que a senhora encontrar nesta carta. Acontece que sou um velho mecânico aposentado, e não fiquei por muito tempo na escola. Na minha época, as palavras eram escritas de modo diferente, a gente colocava acento em flor (flôr) e amor (amôr). Hoje já não se usa mais isto. Foi difícil até pra eu conseguir escrever assim, aqui no computador.

Bem, eu sei que a senhora anda muito ocupada. Ora, uma Presidenta da República deve ter, mesmo, muitas coisas para fazer. Coisas bem melhores do que ler a carta de um homem como eu, que mal sei combinar as palavras, mas resolvi arriscar. Resta-me pouco tempo de vida, eu tenho visto umas estranhezas na televisão, gostaria de contar para a senhora um pedacinho da minha vida. Prometo não me alongar.

Meu sonho era ser médico. Mas a escola, com seus acentos circunflexos e tabuadas não me deixou ficar lá. As professoras, severas demais, me repetiram muito de ano (eu demorei a aprender a ler, trocava o “r” pelo “l”)! E meu pai, que tinha uma oficina de bicicletas, precisava de mais gente por lá para ajudá-lo. O Cicle do velho era uma tentação de bom, eu aprendi até a dirigir bem pequenino. Então, depois de me deixar tentar umas duas vezes na escola, papai decidiu que eu seria mesmo era “médico de carros”. Foi o que fui, até me aposentar.

Essa é uma história conhecida. Minha filha mais nova escreveu um texto uma vez, mostrou às amigas dela, depois colocou na internet, o negócio fez sucesso. Imagine, eu, fazendo sucesso, mesmo tendo sido tão reprovado na escola! Vai ver, se me tornasse médico, não seria tão famoso!...

É, minha filha adora escrever. Formei uma filha Professora, Presidenta! Que orgulho! A menina tinha dezesseis anos quando recebeu o Diploma! Isto foi em 1984 e, de lá pra cá, nunca mais largou o ofício. Tem o maior orgulho de dizer da profissão.

Eu vim até aqui, dona Presidenta, para ajudar a senhora a se lembrar da importância da profissão de PROFESSOR, porque eu acho que a senhora se esqueceu.

Eu nunca mais me esqueci de uma cena que assisti pela televisão: Era a posse de Lula, o ex-Presidente do Brasil. A primeira vez que tomou posse. Ele, no seu discurso empolgado e emocionado, falou que não havia precisado de diploma algum para chegar à Presidência. Eu fiquei pensando, caraminholando aqui...

Será que é por isso que ninguém dá valor ao Professor? Será que é porque não precisa ter estudado para sentar nessa cadeira macia de Presidente da República?

Olha, Presidenta, minha filha faz parte de uma legião de pessoas (palavra danada de bonita, esta: legião!) que estudou muito. Eu tenho na minha recordação as noites em que vi a menina ajoelhada aos pés da cama estudando para as provas, preparando aulas... Lembro bem de quando ela conseguiu o seu primeiro emprego, depois o outro e o outro... Lembro que ela resolveu fazer faculdade de Pedagogia e estudou bastante até conseguir passar para uma Universidade Federal. Mas passou, e se empenhou, e foi uma das melhores alunas da turma!

Naquela época, Presidenta, minha filha trabalhava dando aula pela manhã e à tarde, e estudava à noite. Eu a acordava às cinco horas da manhã, ela saía para trabalhar e só chegava em casa à meia-noite! Foi assim durante os quatro anos da faculdade.

Depois que se formou – outra alegria! – ela passou no concurso público e veio trabalhar numa escola municipal daqui da cidade, pertinho de casa. Foi um alívio! Mas o salário nunca dava para custear-lhe a vida, e ela prestou novo concurso, desta vez para o Estado, e passou. Voltou a trabalhar nos dois horários, mas já passava a noite em casa com a gente, graças a Deus.

Isso faz tanto tempo, Presidenta, e, no entanto, não consigo ver melhoras na vida dos Professores de hoje em dia. Contando no calendário, percebo que lá se vão vinte e nove anos que minha menina decidiu optar pela profissão mais nobre e, mesmo assim, continua tendo que trabalhar dobrado, porque senão o dinheiro não dá. E não é só o dinheiro, não. Eu a ouço reclamar das questões de segurança, de salubridade (taí outro nome bonito que aprendi com ela!)... Ela conta que na escola não tem ventilador, que os banheiros são quebrados, que tem quase quarenta alunos numa sala só! Tem dia que nem folha de papel tem, para dar prova para os meninos!

Talvez seus filhos, Presidenta, tenham estudado em escolas boas, caras, até fora do Brasil. Essas escolas pagam bem aos seus Professores, lá eles devem ter conforto, segurança... Mas, Presidenta, quem carrega o Brasil nas costas não são os seus filhos, não!

A senhora me desculpe a franqueza, mas eu sou um bom exemplo disso, um velho exemplo: se os carros importados estão por aí nas ruas, se os ônibus circulam levando toda a gente para o trabalho e para a escola, é porque os mecânicos existem. Se os pãezinhos chegam fresquinhos à sua mesa no café da manhã, é porque o padeiro existe. Se a sua casa está brilhando de limpa, é porque existem as empregadas domésticas. Se seu cachorrinho está alimentado, é porque alguém cuidou dele, e eu duvido de que tenha sido a senhora, com todo o respeito.

Todo mundo precisa de todo mundo, dona Presidenta. A coisa não é do jeito que a senhora está pensando! Já esteve na escola? Teve um PROFESSOR, então. Teve quantos, dona Presidenta? Seus filhos tiveram quantos? Quantos terão os seus netos?

Professor é uma profissão por demais importante, Presidenta! E eles estão lá nas ruas, agora, pedindo respeito! São rapazes, moças, homens e mulheres que batalharam muito para chegar às salas de aula. Gente que estudou de madrugada aos pés da cama, que passou em concurso para ter uma vida digna. Eles não querem mudar de profissão porque estão ganhando pouco, Presidenta, eles querem fazer o que gostam de fazer, que é ensinar, educar, formar os jovens que serão o futuro do nosso Brasil!

Custa tanto assim prestar atenção nisto? Quantos Presidentes e Presidentas sentarão na cadeira macia e fecharão os olhos para a profissão que forma tantos outros profissionais? Eu fui um bom mecânico, é verdade, e me orgulho muito disso. Mas teria sido um mecânico bem melhor, se a escola tivesse tido um pouco mais de paciência comigo. Hoje vejo engenheiros criando peças que quando eu era moleque já imaginava construir. Já pensou? Já pensou quantos meninos e meninas vivem por aí inventando coisas? Imagina essa garotada escolada, dona Presidenta! Imagina uns meninos desses dentro de escolas onde os Professores são valorizados, recebem salários de gente? Que baita investimento, hein? Ah, só de pensar, já me arrepio todo! Vontade de voltar ao passado e me matricular, ser aluno de minha filha, poder sonhar, fazer planos...

Hoje eu sou só um velho mecânico aposentado, senhora Presidenta. Mas não parei de sonhar. E peço a Deus que faça com que essa carta chegue às suas mãos, e que toque o seu coração profundamente. Não precisava nada disto que está acontecendo nas ruas hoje, dona Presidenta, se o povo brasileiro fosse tratado com mais respeito.

É respeito. É só isso o que essa gente quer. Quando falta respeito, Presidenta, falta tudo, vai-se embora tudo.

Muito obrigado pela sua atenção. Apesar do salário baixo (minha filha ganha quase o mesmo que eu!), a Professora aqui de casa ainda se orgulha do que faz. E faz bem feito, Presidenta, ela não mistura as coisas, não.

Na quinta-feira passada ela deu aula pela manhã e à tarde. No final do dia, pintou o rosto de verde e amarelo e foi para o Centro da Cidade. Meu coração ficou na mão, mas, a senhora quer saber? Eu senti o maior orgulho dela! (Hoje ela está com mais de quarenta anos, mas, para mim, ainda tem dezesseis.)


Fique com Deus. E me desculpe o incômodo.