segunda-feira, 22 de abril de 2013

Sobre um “não” que eu não disse

(É uma confissão. Mas talvez tenha chegado até aqui por não ser só minha.)



Amanheceu um dia de sol lindo assim, como hoje, em 22 de abril de 1995. A única diferença para o dia de hoje é que era um sábado.

Não me lembro bem por onde comecei a organizar-me para a noite, mas lembro que fiz uma oração, meio rápida, agradecendo a Deus pelo dia.

Acho que tomei sol. Naquela época eu era cismada com isto, gostava de estar bronzeada. Na cadeira de praia, ali mesmo no quintal, “peguei” uma corzinha, para não parecer pálida demais à noite.

Depois de tomar banho fui ao salão de beleza. Fiz as unhas e um coque no cabelo. Muito gel para ficar arrumadinho. Muito gel para receber, horas mais tarde, a grinalda de flores naturais. Naquele sábado, 22 de abril de 1995, eu me casaria.

Nada de passar o dia num SPA, nada de rotina especial. O salão ficava na esquina da minha rua. Em menos de duas horas voltava a casa para fazer o restante. Almoçamos e meu pai seguiu para a casa da costureira para buscar o vestido. A única prova eu havia feito no dia 19. Uma única vez havia experimentado o vestido que usaria na noite mais importante da minha vida.

Cerimônia marcada para as dezoito horas. Tentei cochilar depois do almoço, mas a ansiedade não deixou. Preocupada em ficar com olheiras (o resto dos meus defeitos eu já havia garantido esconder com o modelo escolhido para vestir), comecei uma luta diante do espelho com o pó compacto. Não, não houve maquiadora. Eu mesma tratei de dar conta disto. E enquanto esperei papai chegar com o vestido, pus pó compacto na área dos olhos.

Bem, meu pai chegou com aquela lindeza de vestido! Tendo sido eu a desenhá-lo, fiquei extremamente satisfeita. A costureira, Dª Custódia, ainda entrou com seus detalhes experientes. Eu queria tudo muito simples, então, ela sugeriu-me cetim brocado, porque eu não queria renda. Acabei comprando um cetim brocado maravilhoso, num tom de branco envelhecido – pérola, talvez – e nunca vi coisa mais linda do que aquela! Aplicações de guipir em todo o decote (grudado ao pescoço) e na cintura deram um tom bucólico e romântico àquela noiva de 1,68m de altura e 55kg. Usei luvas de cetim de três quartos. E, com a magreza escondida sob o tecido, e a tristeza sob o pó compacto, surgi de dentro do quarto pronta para o casamento.

O motorista, um velho amigo do meu pai, que na época tinha um automóvel Santana muito bem cuidado, conduziu-me à Igreja de São Lourenço. Acho que, pelo retrovisor, via além do trânsito, pois me perguntava de vez em quando se estava certa de minha decisão. Quando estacionou no pátio da Igreja, virou-se, olhou nos meus olhos e me perguntou, com a liberdade de quem me viu nascer, se era aquilo mesmo o que eu queria fazer. E ofereceu-se para me levar de volta para casa, caso eu decidisse desistir.

As palavras do Sr. Brasil, o motorista, acompanharam-me durante todas as minhas horas. Até hoje, às vezes, pareço ouvi-las. Mas as ouvi incessante e fortemente em todos os passos que dei dentro daquela Igreja.

Eu sou pontual demais, e acabei chegando primeiro. Ficamos no carro, aguardando os convidados. Mas eu sou ansiosa também, e não esperei muito. Quando entrei, a Igreja estava vazia – todos contam com o atraso da noiva! – e foi difícil passar por bancos que não me diziam nada, de tão vazios!

O interior da Igreja não estava enfeitado. Eu não tive dinheiro para pagar a ornamentação. Depois de mim, casaria-se uma dentista que, diante da minha impossibilidade de dividir com ela a despesa da decoração, optou por esperar o meu casamento acabar para arrumar os enfeites para o dela. Pouco me importei: a Igreja era, por si só, linda demais. Quase ninguém percebeu a falta das flores...

Então, eu atravessei o corredor, braços dados com papai, e fui entregue por ele àquele que seria a partir dali o meu esposo. Sr. Brasil comigo, o tempo todo, sussurrando-me que dissesse não, se não quisesse fazê-lo.

Não, eu não quebrei protocolo algum, eu não fui criada para isto. Não encheria meus pais de vergonha, não me submeteria ao escândalo, não decepcionaria meu noivo, não entristeceria minha sogra. Não jogaria por terra o dinheiro gasto com o vestido e os custos da Igreja (festa não, porque não houve). Não, eu não seria uma transgressora, uma rebelde, uma maluca. E, perdida entre tantos nãos, disse sim ao Padre, ao noivo, aos convidados e morri ali mesmo, arrependida.

Em 1995 eu tinha vinte e seis anos. Pela forma como fui criada, encorpava a lista das “mulheres encalhadas”, e minha mãe nunca se cansou de lembrar-me deste detalhe. E tudo o que desenhei de história quando conheci o então pretenso-futuro-marido foi um atropelo de ações impensadas, imaturas e, hoje, imperdoáveis: Conhecemos-nos em agosto, neste mesmo mês começamos a namorar. Em novembro ficamos noivos e começamos a construir a nossa casa. Em abril nos casamos. Uma oportunidade imperdível, para uma moça velha de vinte e seis anos, que só o que sabia fazer na vida era trabalhar, trabalhar, trabalhar, estudar e passar os fins de semana trancada (trancada, não, minha mãe jamais permitiu que nos trancássemos!) no quarto escrevendo, escrevendo, escrevendo e ouvindo músicas de um estilo que ninguém naquela idade ouvia.

Hoje não sei se meu sim foi um não, ou vice-versa. Meu casamento não deu certo, e quando estávamos completando um ano e meio de vida em comum, descobri que a vida “em comum” havia acabado. Uma vida “incomum”, que ninguém merece viver. Apesar disto, de chegar a esta conclusão, mantive-me casada por cinco anos com um estranho a quem eu não conhecia. Até hoje não sei se meu marido mudara, ou revelara-se.

Vivo hoje com essa dor no meu peito, que não me deixa. Ela se parece com a alegria momentânea que habitou meu coração quando o Sr. Brasil estendeu as mãos e quis me levar dali. Pensei tanto em ir-me embora!

Olhando para a foto escolhida para ilustrar o texto, invejo a moça. Nada mais há que eu faça. Fiquei com o estigma impresso. Fui julgada e condenada, do mesmo jeito, pelas pessoas que o fariam lá mesmo, ainda dentro da Igreja. E ainda daria tempo de eu recomeçar a vida. Que pena que não disse não!

domingo, 14 de abril de 2013

Quanto antes, melhor... Pra quem?

(Sobre maioridade penal. Aí está. E não é nem um terço do que pretendia escrever... Como PROFESSORA, preciso acreditar que impunidade gera bandido e que dá certo prevenir. Mas, se a Copa do Mundo vem aí, que mais importa?)


Estou farta desta campanha em prol da redução da idade para se responder a crimes cometidos. Há pouco se falava em dezesseis anos, agora já ouço falarem em quatorze, um amigo dia desses me sugeriu treze... Ontem li uma reportagem onde alguém – com quem, finalmente, me identifiquei – propunha, ironicamente, seis anos, já que criminosos “já sabem se vestir nesta idade”.

Ao Estado não cabe nenhuma responsabilidade? Onde foi que guardaram a Constituição Federal?

Revolta-me discutir um assunto como este, porque sou professora. E não é demagogia o uso deste espaço. Eu já revelei minha vergonha de ser escola em mais de um texto por aqui. Já disse que me sento ao lado dos réus em seus bancos, como que me redimindo da parte que me coube quando, tendo aquele menino ou aquela menina diante de mim, dentro de uma sala de aula, nunca os percebi. Falhei, e minha falha somou-se às tantas outras que construíram o monstro julgado e condenado.

Mas hoje não quero colocar única e exclusivamente na minha conta, na conta do meu amigo professor, a violência que assola o país. Não. Quero desabafar o meu nojo pelo que vejo na mídia...

Brasília foi construída com o dinheiro dos meus pais. Deram o ouro que possuíam pelo progresso do país. Para que o Distrito Federal fosse erguido, muitos ficaram pobres. Todo mundo em uma época da história se esqueceu que havia um Brasil inteiro se refazendo dos resquícios das Guerras, e resolveu construir uma cidade. Simples assim. Construíram Brasília.

Décadas depois sumiram com os mendigos do Rio de Janeiro quando resolveram que a Cidade Maravilhosa seria palco para a Eco 92. Até hoje não sei para onde foram os mendigos. As reuniões terminaram, e eles não foram devolvidos ao Rio. Outros vieram, obviamente, até por conta das despesas que a Eco gerou.

Agora, a bola da vez é a Copa. Lá está o Brasil, preparando-se para receber o mundo.

Vergonha e asco. Vamos reduzir para seis anos, então, mesmo, a idade para se punir o crime, porque não resta dúvida de que meninos e meninas de seis anos estarão no entorno dos hotéis e estádios, das orlas, pousadas e restaurantes, fumando crack e assaltando turistas e moradores locais.

Cadê a escola pública de qualidade? Cadê o hospital público de qualidade? Cadê as casas de reabilitação? Cadê a justiça? Cadê a punição? Cadê a vergonha na cara?

Isto ninguém procura. Compartilhamos o desejo de ver meninos presos naquilo que chamam de cadeia, mas não compartilhamos o desejo de ver educação verdadeira acontecendo do lado de dentro das escolas onde, por vezes, nós mesmos trabalhamos.

Ora, uma família que não sabe o que significa fazer três refeições por dia, que não sabe que estas refeições devem contar com, pelo menos o arroz e o feijão, uma família que não conhece o valor da palavra dignidade, não pode ser punida se gerou um assassino ou um ladrão, ou um traficante dentro de casa.

A mídia está lá: “compre, compre, compre, compre...” É quase como se dissesse: “se não tem o dinheiro para isto roube, roube, roube, roube...” Quase como se dissesse: “se precisar de mais dinheiro trafique, trafique, trafique, trafique...”

E quem é o pai ou a mãe que está ao lado de seu filho quando passa a propaganda? E, ainda que esteja ao lado do filho na hora da propaganda, quem é o pai ou a mãe que saberá como “desinfluenciá-lo”? Onde estão as palavras para convencer e ganhar a concorrência? O garoto está assistindo à TV porque não teve aula. O governo não paga um salário justo ao professor, é preciso que a greve se deflagre. O governo vem à mesma TV para dizer que o professor “ganha muito bem, porque só trabalha quatro horas por dia”. O pai e mãe, deseducados porque também vítimas da ausência da escola, concordam com o governo. Dão seus ouros, ficam dentro de casa até a Eco acabar, e esperam ansiosamente pela Copa do Mundo.

Não, gente, o pensamento não é este! Lá atrás a LDB previa escolas em tempo integral! Será que se o dinheiro que se investe nos bolsos nos políticos inescrupulosos fosse investido em reais condições de permanência da criança na escola por sete horas, não teríamos mudanças nos comportamentos da sociedade que preparamos enquanto educadores? Será que se a escola – a pública, a de qualidade – se debruçasse, com condições para isto, sobre a realidade da comunidade em que está inserida, e desenvolvesse um trabalho consciente, responsável e preventivo, não teríamos diminuído o número de réus nos bancos dos Fóruns?  Será que estou ficando louca?

Então, Karla Pontes está louca. Deixemos isto pra lá. Vamos colocar o tênis Adidas nos pés, quer seja trabalhando loucamente para comprá-lo ou assassinando o rapaz de dezenove anos no portão de sua casa. Vamos viver a “surrealidade” da vida, ainda que nos drogando para tal. Vamos aderir à moda e encher de piercings e tatuagens o nosso umbigo, pouco importando se o dinheiro para pagar a tatoo tenha advindo da carteira do nosso avô, morto na porta do banco no dia em que recebeu a aposentadoria.

Quer saber? Políticos corruptos blindam seus carros. Pagam caro para isto. Resolvem o problema da insegurança de se viver no Brasil morando no exterior. Não assistem à TV, não acompanham as novelas. Isto eles deixam para o fruto da escola fazer. O pobre, o alienado, o que é mais fácil de deixar-se convencer. Aí, ele oferece uma escola particular um pouco mais em conta, para que você matricule seu filho lá, e esqueça a ideia de lutar pela melhoria de condições da escola pública onde seu filho estava. Aí, ele oferece um plano de saúde mais em conta, para que você o adquira, e esqueça a ideia de lutar pela melhoria de condições do hospital público onde levava seu filho. Aí ele embolsa o dinheiro, e oferece uma super, hiper, mega cidade ou apadrinha uma Copa do Mundo, para você se divertir.

Todo mundo tem culpa neste cartório chamado Brasil. Mas nós, cidadãos, contribuintes, temos menos culpa, diante daquele que elegemos e agora ri da nossa cara, com todos os dentes na boca, enquanto sorrimos desdentados para nossos alunos desdentados, também. Nós elegemos os fazedores das Brasílias de todos os dias. E elegemos quem disse sim à Copa no Brasil. Onde estão aqueles que prometeram, nos cinco minutos de propaganda eleitoral gratuita, olhar por nós?

Tudo poderia ser bem diferente. Sou professora, e o que não dá é para eu aceitar que sejam punidos, cada vez mais novos, aqueles para quem o Brasil vira as costas desde que nascem. Fácil, assim, não? Impunidade gera bandidos. Os exemplos têm vindo cada vez mais de cima. Só não vê quem não quer.

sábado, 13 de abril de 2013

Sangue abençoado

(Nas veias do Professor que honra o seu Diploma corre um sangue abençoado.)


Nas minhas veias corre um sangue abençoado: Há vinte e nove anos, por uma insistência de minha mãe para que eu fosse trabalhar, sou professora.

Aqui, neste meu diário virtual, os meus textos se completam. Mas como sempre há uma primeira visita – graças a Deus! – preciso às vezes recontar algumas histórias, para alinhavar meus pensamentos e, é claro, o do leitor, também...

Pois é. Um dia minha mãe obrigou-me a trabalhar. Eu, então, optei por fazer o Curso de Formação de Professores, para ter emprego logo. Iniciei aos quatorze anos, concluí aos dezesseis. E, menina ainda, adentrei salas de aula, com experiências incríveis que, costuradas umas nas outras, formaram o tecido que hoje reveste o meu corpo. Nas minhas veias, um sangue abençoado por Deus corre límpido, empolgado, pulsante. Meu corpo todo vibra educação. Ainda que eu tente fugir, algo me chama: “Vem!” e... lá vou eu!

Depois de ficar dezesseis anos trocando salas, alunos, amigos, escolas, experiências, erros, acertos, companhia e solidão, mudei de função. O trabalho de Inspetor Escolar permitiu-me a única coisa pela qual, depois de analisados perdas e danos, decidi deixar a docência: a flexibilidade nos meus horários de trabalho. Bem, agora dá para esperar o torsilax fazer efeito nos dias de dor de cabeça, dá para esperar a chuva passar, e já não choro se perder o ônibus...

Do lado “de cá” do balcão das secretarias, as histórias vão se perfilando na minha cabeça, aguardando a vez de serem escritas. Histórias de pais que vejo temerem seus filhos, histórias de filhos que vejo temerem seus pais. Histórias de abandono, histórias de apreensão de crianças, histórias de desistência, de persistência. Dentro de uma escola se vê de tudo. E eu, com esse meu olhar de poeta que vigia passarinhos coloridos para fotografá-los, crio meus textos à medida que vou fazendo a leitura da vida de cada um.

Hoje eu vi dar passos fortes professores que insistem em fazer o seu melhor trabalho. E percebi como eles se diferenciam daqueles que já entregaram as “armas” e desistiram da luta. Aí, na fila do refeitório, esperando que me fosse servido o angu, olhei um portador de sangue abençoado pisando firme nos corredores e fazendo a diferença. Eu sinto tanto orgulho em horas assim! É como se matasse a saudade do tempo em que eu dava passos firmes, incansável, em busca do melhor de cada dia. Carregava para casa bolsas de supermercado cheias de cadernos e livros dos alunos. Meu Deus, eu pegava dois ônibus para chegar à escola! Trabalhava pela manhã e à tarde, estudava à noite, e era incansável! Meus meninos, meus alunos foram meus amigos de verdade. A gente meio que travava um pacto em sala, éramos todos cúmplices, dava alegria sair de casa para trabalhar. Eu gostava de ficar no portão, para vê-los chegarem à escola. Uma vez ouvi um avô me dizer da paz que sentia quando deixava seu neto Diego no portão e escutava o meu “vá com Deus!”, quando voltava pra casa...

Do lado de cá do balcão percebo tudo! A cara feia do professor que chegou querendo ir embora – querendo nem ter chegado! – mas, principalmente, a cara bonita daquele que chegou sorridente, com bochechas avermelhadas por um sangue abençoado. E quer saber? Penso que não sou a única que vejo essas coisas. Penso que os alunos enxergam muito, muito melhor do que eu.

Alunos sabem exatamente a quantas anda o coração do seu professor. Alunos percebem tédio, cansaço, desespero, desamor, tão bem quanto percebem amizade, carinho, afeto, prazer, felicidade. Numa sala de aula, a gente recebe o que dá, é só experimentar. Dá trabalho, é fato. Mas é compensador!

Nossa luta pela valorização da profissão passa pelas veias, e não avança naquelas entupidas pelo descaso. Só avança, só segue adiante em sangues abençoados que correm em veias de corpos que reagem à tarefa iluminada de ensinar! De nada adianta bater panelas ou pintar a cara na rua, sem fazer bem feito o que se faz quando se está dentro de uma sala de aula acompanhado por crianças.

Crianças são tudo! São seres divinos, são os verdadeiros escolhidos por Deus. Antes de julgar e desistir, antes de tomar a parte como todo, professores de verdade compreendem que muitos alunos são vítimas das circunstâncias em que vivem. Não há muita opção de escolha quando se vive um inferno dentro de casa, e não há como não reagir, não respingar nada durante as quatro horas que se passa na escola. O corpo fala, os hormônios gritam e muitas vezes não é por falta de limites ou educação, é pela necessidade de ser visto, ser ouvido, ser tocado.

Naquele corredor do refeitório, o professor passou brincando com os meninos que estavam na fila: fez cócegas em uns, bagunçou os cabelos de outros, apertou a mão do último, e ainda brincou: “Os últimos serão os primeiros!”, disse ele, sem medir o possível incomensurável peso de suas palavras.

Um mágico fez apresentações no aniversário de Antônio, meu filho de sete anos. Antônio não se lembra bem dos truques, das mágicas realizadas, mas não se esquece do conselho que Pepper lhe deu. O mágico disse a meu filho que ele não deve, nunca, desistir dos seus sonhos.

Vasco Moretto, professor experiente, renomado, em suas palestras sempre comenta que ficou inesquecível para um de seus alunos não pelas aulas de física que ministrou, mas, sim, por ter um dia conversado com seus alunos sobre o que pensava ser a morte.

Hoje Antônio sonha em ser Prefeito e super-herói. E militar, e ninja, e chinês. E sempre que eu cometo a besteira de dar a minha opinião diante de tantos desejos, ele me cala relembrando o conselho do mágico.

Nossos meninos e meninas estão sentados nos bancos das salas de aula, cada um com seu sonho. Uns vão longe, outros se satisfazem com muito pouco. Interessa que sonhem, e professores de verdade alimentam sonhos, não os destroem.

Hoje o último menino da fila do refeitório tornou-se o primeiro. Graças a um professor de passos firmes e sangue abençoado. Hoje até eu me repensei quando vi aquele movimento de alegria.

Deus abençoe absurdamente a vida dos professores que fazem do seu ofício prazer para todos os que dele compartilham. Deus lhes abençoe o sangue, para que inunde o organismo de maneira tal, que impregne de sentido a vida daquele menino que muitas vezes chega morto à escola.

Hoje senti um orgulho diferente, um orgulho que há tempos não sentia. E tive certeza de que nem tudo está perdido, como insistem em clamar os pessimistas da classe. Há luz, e ela nem está tão no fim do túnel assim. Obrigada, Senhor!

quinta-feira, 11 de abril de 2013

Libertar-se

(Experiência compartilhada com você que anda querendo libertar-se daquilo que lhe faz mal.)


Há quem diga que existe certa permissão do oprimido, em relação ao opressor. Isto é horrível de se ouvir, quando nos diz respeito. Há uns dias isto vem dizendo respeito a mim. E resolvi me libertar.

Libertar-se não é tão fácil. Exige discernimento, responsabilidade e, sobretudo, coragem. Verdadeiramente, às vezes estar-se preso é mais cômodo.

É que eu tenho esta característica, que muitos dos meus amigos chamam de defeito: vivo a preocupação de não ser incoerente. Temo pelos exemplos que dou. Controlo a todo o momento se o que faço testemunha o que digo. Não, ainda não é na metade da vida que se aprende isto. Talvez mais à frente eu já saiba perceber isto melhor, e aí, ou me torno ação da minha palavra ou desisto de provar as coisas que prego por aí. Com meus setenta, oitenta anos, realmente, não estarei tão preocupada assim.

Deste pensamento é que surgem as dúvidas. Alimentamos-nos bem para morrermos sãos? Vivemos para aprender a viver à beira da morte?

Quem me conhece sabe o quanto amo viver, o quanto me orgulho da profissão que tenho, com quanto amor e responsabilidade realizo meu ofício de educadora. Mas quando a gente percebe que a vida pessoal está interferindo na profissional, ou vice-versa, é hora de libertar-se. Nada que se adie. A hora é agora!

Hoje um sentimento de alegria invadiu meu coração. Hoje senti orgulho de mim mesma. Hoje optei por viver, e o que é melhor, ser feliz! As coisas hoje em dia nos levam à depressão muito rapidamente. As vitrines piscam produtos que nunca conseguiremos ter – e nem sei se precisamos deles! – e então nos endividamos, inconsequentes, para adquirirmos algo para um prazer tão instantâneo e célere! Juros altos no final do mês nos cobram, no boleto do cartão de crédito, por um produto que já está fora de moda até que a fatura chegue.

Há certa permissão do oprimido, sim, diante do opressor.

O mundo nos diz que não somos capazes de ter, de ser, de fazer. O mundo nos gerencia. O poder nos gerencia, e as pessoas que eventualmente ocupam as cadeiras hierarquicamente superiores tentam se apoderar das nossas ações. Quando nos damos conta, estamos subjugados a pessoas incompetentes, inconvenientes, imaturas, intolerantes e sequer questionamos isto. Obedecemos. Ponto.

Não quero crescer assim, embora saiba que já passei do tempo de crescer. Evoluir é todo dia. Eu quebrei umas correntes hoje. Eu disse não. Eu escolhi ser um pouco mais feliz.

Hoje quero ser rápida por aqui. Vim só dar o meu testemunho, porque sei que há muita gente querendo tomar decisões na vida – tanto pessoal, quanto profissional – com o objetivo único de se libertar. Então, vim aqui dizer que o gosto é ótimo! E quando andava pelas ruas pela manhã, o vento bateu-me à cara como em 1995...

Em 1995 atrasei-me cinco minutos para chegar à escola onde trabalhava. Eu tinha que chegar às 7h25min e cheguei às 7h32min. Entrei na sala dos professores e a diretora – dona da escola – estava nervosa, e começou a dizer que já estava preparando uma aula para os meninos, que eu deveria ter avisado do atraso, e blá, blá, blá...

Acontece que eu andava insatisfeita naquela escola, e todas as manhãs eram um suplício pra mim, já havia um tempo. Eu acordava às 5h para poder chegar às 7h25min, nunca havia me atrasado antes. Todos os dias ensaiava o pedido de demissão. Acabava deixando pra depois, por conta de gostar demais dos meus alunos. E naquele momento, aquela mulher mexendo a boca (eu já nem ouvia mais o que ela dizia) só me convidava à liberdade. Uma professora entrou, e eu pedi a ela que retirasse minha bolsa da sala da quarta série. Nem entrei. Deixei a escola, mesmo depois de ver a diretora chorando, arrependida. Ela até poderia estar. Eu, nunca. Aquele foi um dos dias mais felizes da minha vida. Vento na cara, como o de hoje, embarquei no ônibus de volta a casa e dormi, de tão leve!

Umas e outras falas fizeram-me quebrar as correntes, também, ao longo desses meus vinte e nove anos de trabalho. E dou, sempre, graças a Deus por cada oportunidade!

Então, esse mesmo Deus me trouxe até aqui para dizer a você que a hora é agora. E que as chances aparecem, é preciso que estejamos atentos.

Deus abre janelas para todas as portas que se fecham. E ninguém é obrigado a viver triste, ou trabalhar insatisfeito, porque o companheiro ou patrão resolveu ser o opressor da vez.

Para que a liberdade aconteça, é necessário percebermo-nos escravos. E desejarmos sair desta condição. Depois deste reconhecimento, é entregar a vida nas mãos de Deus e seguir adiante, vento na cara, sentindo aquele alívio indescritível, perene, maravilhoso!

Hoje meu nome é liberdade. Obrigada, Senhor!

terça-feira, 9 de abril de 2013

48 horas

(O que você faria se soubesse, hoje, que tem quarenta e oito horas de vida?)


Imagino-me saindo do consultório médico. Acabei de ouvir do especialista em doenças do coração que tenho quarenta e oito horas de vida. É o que meu coração suportará bater. Depois, cessará.

Não sei se saio alegre ou triste. São quarenta e oito horas, então. Quarenta e oito horas. Ninguém sabe se vai viver quarenta e oito horas. Meu médico me disse que eu vou. Alegro-me. Segundos depois, entristeço-me. Quarenta e oito horas?

De vez em quando pensamentos assim me dominam. Não tenho culpa, Mercedes (Mercedes já me disse para parar de escrever sobre isto!). Quando os pensamentos me dominam, logo os esqueço, se escrevo. Então, lá vou eu.

Eu decidi listar as coisas que faria, se saísse do consultório com o veredicto nas mãos...

1 – Compraria um relógio imenso, para vigiar cada minuto. Relógios pequenos enganam hipermétropes astigmatas como eu. Ainda mais, sonhadores como eu.

2 – Não iria trabalhar. Desativaria o despertador. Fecharia bem as janelas do quarto, taparia a parte que está quebrada com algo que não permitisse a passagem da claridade. Dormiria o que corpo pedisse. Respeitaria este desejo físico, ainda que pela penúltima vez.

3 – Quando acordasse, sairia de casa com Antônio. Não, eu não o levaria à escola. Levaria meu filho a uma praia bem bonita. Talvez em Arraial do Cabo, porque sei que ele adora ir lá. Talvez sem roupas de banho. Só para caminharmos na areia. E quando nos cansássemos bastante, proporia a ele um banho gostoso de mar, com as roupas do corpo. Posso imaginar-lhe a expressão de espanto-alegria. Neste dia Deus nos presentearia com os golfinhos que às vezes aparecem por lá. Chegaríamos bem perto de uns deles e nos divertiríamos bastante.

4 – Compraria todos os sorvetes, os milhos cozidos e as empadinhas. Arrendaria as boias e brinquedos infláveis que dão colorido à orla e enchem de alegria as crianças ao mesmo tempo em que desesperam seus pais. Antônio me ajudaria a distribui-los aos meninos na praia, sem qualquer problema. Ele adora fazer isto, presentear as pessoas.

5 – Nas estrada, de volta a casa, compraria um frango assado, desses de padaria, bem suculento, gordo e gostoso. Uma coca-cola bem gelada e uma fanta uva para Antônio, porque é o único refrigerante que ele toma, assim mesmo, uma vez ou outra.

6 – Depois do almoço-quase-janta-pela-hora, e de um banho de mangueira no quintal, exaustos do dia, eu deitaria com Antônio ao meu lado e dormiria profundamente, sem medo de não acordar, posto que confiante no prazo do médico, de quarenta e oito horas. Abraçada ao corpinho magricelo do meu filho sonharia ter a vida toda para fazer-lhe companhia.

7 – Acordaria minhas últimas vinte e quatro horas para reeditar meus últimos capítulos. Antônio iria para a escola, desta vez eu precisaria resolver coisas comigo.

8 – Iria a São Gonçalo dizer aos meus pais do meu amor, da minha gratidão por viver, e por ter sido fruto deles, justamente deles. Contar-lhes-ia da vontade de abraçá-los – a vontade de sempre, sempre! – e o faria sem mais nenhuma vergonha ou temor. Pediria perdão, com o coração aberto, sangrando, porque perdoando, também.

9 – Voltaria para casa fotografando as paisagens que sempre deixo pra depois. O homem vai acabando com tudo, elas vão sumindo do mapa e as fotos não são tiradas.

10 – Pararia mais o carro. Respiraria mais. Abriria os braços para receber o Sol e, se chovesse, dançaria na chuva, sem medo de molhar o banco do carro. Aumentaria o volume do rádio para ouvir Capital Inicial celebrando a vida, comeria um pão com linguiça caprichado na lanchonete do posto de gasolina. Talvez até pensasse numa forma de driblar o pedágio!

11 – Correria para casa e gravaria um vídeo de adeus. Todo mundo saberia do meu amor verdadeiro, citaria os nomes dos amigos especiais, citaria o nome dos espectros, revelaria, finalmente, quem é o verdadeiro dono do meu coração, não o de mãe, mas o de mulher...

12 – Desceria a rua para buscar Antônio. Nada de deveres de casa para fazermos: tomaríamos sorvete. Um, dois, três, quantos ele pedisse, enquanto eu iria decidindo se lhe contaria do adeus ou não.

13 – Anoiteceria, e a Lua seria nosso alvo de fotografias (Antônio é apaixonado pela Lua): diversos ângulos, pés na areia, roupas largadas, ventinho fresco. Talvez eu escolhesse ser ali o lugar para me despedir do meu amor, do meu presente de Deus, do meu filho. E adormecesse meu sono eterno deitada sobre o colo dele, como fazemos aqui em casa, de vez em quando...

Talvez se saíssemos todos com um protocolo válido por quarenta e oito horas viveríamos de maneira bem diferente. Escolhendo as coisas que nos fariam mais felizes, abrindo mão daquilo que não nos faz. Esta é a verdadeira escolha da vida.

Eu listei treze coisas, que fui pensando meio que desordenadamente. Não sei se escolheria as mesmas treze se tivesse que reescrever o texto por uma pane no computador. Os desejos mudam. Mas do que eu me livraria, sei bem.

Você já fez sua lista? Não, certamente. Porque você acredita ter muitas, muitas quarenta e oito horas pela frente. Amém!

Hoje acordei pensando no raio do relógio grande, e na minha hipermetropia acompanhada de um astigmatismo sonhador que não me deixa ver os ponteiros direito. Olho-os de um jeito e, logo depois, se olho novamente, já deram voltas e voltas. Enquanto isto Antônio vai crescendo. Enquanto isto o abraço lá em São Gonçalo não sai de jeito nenhum. Enquanto isto monitoro a quantidade de guloseimas. Enquanto isto Antônio não fica descalço, tampouco pega chuva ou entra com roupas no mar.

Deus me dê mais algumas infinitas horas. Acabo de perceber que fiz muito pouco do que me dá prazer, e que se um dia esta história de consultório for de verdade, quarenta e oito horas será muito pouco, muito pouco para mim.

sábado, 6 de abril de 2013

Sou professor

(Em homenagem a quem tem muitas histórias, e muito orgulho pela profissão de PROFESSOR!)


Tenho cinquenta anos, e sou professor. Escolha difícil, diante de uma família que esperava um filho médico ou advogado.

Não sou médico, nem advogado. Mas muitos dos meus alunos têm este registro em seus diplomas. Formei médicos, advogados, engenheiros, arquitetos, filósofos, meteorologistas e, graças a Deus, muitos, muitos outros professores!

Bordando minha história, os meninos e meninas que passaram pelas escolas por onde também passei. Sou professor de Matemática, foi difícil – sempre difícil! – convencê-los de que era possível compreender a Matemática, apaixonar-se por ela. Eu consegui, em muitas das vezes.

Com vinte e oito anos de magistério, bato às portas da aposentadoria. Cansado fisicamente da lida, meu corpo já não responde aos estímulos mais severos. Ainda vou trabalhar de bicicleta, ainda jogo uma “peladinha” com a turma na hora do recreio, mas isto tem me deixado de molho nos fins de semana. É que evito ir ao médico, temendo ter que ausentar-me das aulas, então, concentro as dores para os sábados e domingos. Às vezes os sábados são letivos, e a dor aumenta. Mas ainda está dando para aguentar.

O cansaço é, também, emocional. Conviver com professores que já desistiram da profissão, mas não a abandonam, me causa certa tensão. Preocupa-me o futuro dos meninos e meninas, que nenhuma culpa têm daquela desistência, e sofrem-lhe as mazelas. Os professores deste tipo que conheço saem de sala ao primeiro sinal de desordem, ou então gritam desesperadamente em busca de um silêncio que não acontece. Eles não buscam novas formas de ensinar, apenas repetem exaustivamente aquela única coisa que sabem. Então, os meninos e as meninas que não entendem aquela forma de comunicação vão se distanciando, porque tem sempre um colega ao lado – ao atrás, ou à frente – com algo bem mais interessante dentro da mochila. Aí tudo se dispersa como rio sem margem. Não há aprendizagem onde não há ensinamento.

Volto para casa emocionalmente cansado, também, quando sou procurado por algum de meus alunos para uma conversa particular. Graças a Deus, ainda sou referência para eles. A Orientadora Educacional da escola não está lá todos os dias. E acontece algumas vezes de, mesmo que ela esteja, eles preferirem desabafar comigo. Até mesmo as meninas me procuram, buscando uma solução para os seus problemas ou uma palavra amiga. Nessas horas eles me chamam de “tio”. Não tenho nada contra a expressão “tio”. Eles não sabem se é ou não pejorativo. Usam-na com carinho, e eu gosto. Ontem foi um dia desses. Dois alunos me procuraram após ter batido o sinal da saída. Tinham cometido um furto num supermercado, e agora estavam temerosos porque souberam que a câmera interna havia registrado e a polícia já havia sido notificada do caso. Estavam à procura dos meninos. Nunca haviam feito isto antes. Caíram “na pilha” de outros amigos e furtaram uns pacotes de biscoitos e uns sabonetes...

Diante do meu primeiro conselho para que revelassem o ocorrido a seus pais, a história de desgraça prolongada: um, não tem pai nem mãe. É criado pelo avô, que o agride constantemente. O avô não se locomove direito, passa o dia inteiro revezando entre cama e cadeira de rodas. O outro mora com a mãe, que trabalha como diarista, não sabe quem é seu pai. E, diante da forma como é criado (“para ser alguém na vida”) teme decepcionar a mãe ao revelar o erro cometido. Os dois meninos, nervosos, apavorados, choram o desespero que me toma de assalto, também. Ontem cheguei a casa tarde da noite, embora tivesse lecionado só pela manhã, tentando resolver a vida daqueles garotos. Acho que consegui. Acho que o susto que levaram não os fará repetir a bobagem.

Minha vida é assim. Sou professor. Eles sabem a Matemática, uns um pouco mais que outros, mas sabem o suficiente para viverem. Para mim, bastaria que fosse assim. Mas assim como todo mundo gosta quando encontra um médico que vai além das consultas e prescrições, ou um arquiteto que entenda, para além das obras de reforma, seus desejos pessoais, sou um professor que enxerga o aluno em sua essência, não só no que escreve nos dias de prova.

Nunca considero notas de provas para avaliar meus alunos. Um menino sob o estresse de ser reconhecido por uma câmera numa ação infeliz de furto não poderia jamais sair-se bem num teste de Matemática. Como não se sairia bem, também, a menina que suspeita estar grávida, ou o menino que experimentou crack na noite anterior, ou mesmo o menino que não conseguiu estudar porque virou concreto ajudando seu pai na construção do patrão.

Eu sou professor, graças a Deus. Não vi o melhor sorriso no rosto dos meus pais quando lhes informei da minha opção no Vestibular. Mas vejo-lhes o brilho nos olhos quando viajo pra casa e conto histórias do meu cotidiano. Como vejo o brilho nos olhos dos meus meninos e meninas quando lhes conto a minha própria história de aluno de escola pública que estudou muito, acreditou nos sonhos e chegou onde queria.

Meu salário não me dignifica. Luto pela valorização da classe, enquanto trabalho nos três turnos para pagar a prestação do carro e quitar a casa. Quero deixar algo seguro para meu neto, que acabou de nascer e que leva meu nome. Quero que ele cresça e viva um tempo de reconhecimento do trabalho que um professor que honra seu diploma tem. A ponto de também valorizar seus professores em sala de aula. A ponto de ver seus olhinhos brilharem quando eu lhe contar minhas histórias. A ponto de – quem sabe? – querer, também, ser professor.

quarta-feira, 3 de abril de 2013

Espectro

(Quem se faz de ensaio da vida não é digno dela.)


Meu maior desejo nos últimos tempos: passar para os meus amigos leitores que vêm até aqui a sensação de que a vida é breve e maravilhosa! De que a vida é uma bênção concedida por Deus aos Seus escolhidos...

Hoje, no entanto, como a dor de uma faca cravada no peito, senti no coração a tristeza de algo sobre o qual já havia falado, escrito, mas que embora seja desabafo meu, não passa. Hoje vou escrever sobre um espectro de gente. Sobre um pobre coitado – eu não gosto deste termo, mas falta-me outro – que desperdiça o dom da vida existindo, pura e simplesmente.

Tem gente que é assim, infelizmente: quando se dá por si, percebe que existe. E não sabe o que fazer com isto. Então, respira o dia, até que ele anoiteça. Depois, respira a noite, aguardando o amanhecer.

Imagino como Deus deve entristecer-se por constatar essas existências. Mas ainda há casos piores. Tem gente que, dando-se conta de que existe, quer aniquilar o outro, aquele que ama a vida, aquele que dá valor ao presente que recebeu de Deus, quando foi a vida fecundada.

Tenho olhado muito para trás, ultimamente. Refeito meu caminho, repensando um monte de coisas. Não, eu não cheguei a conclusão alguma. Temo chegar à morte sem concluir nada. Mas também não sei se viver é concluir. E aí, fico com medo de que, tendo concluído, reste-me deitar ao caixão.

Os sinônimos da palavra espectro empilhados constroem aquele ser, que de humano talvez nada tenha. Fui ao Google Images buscar a imagem para o texto, e mais me pareceu álbum de fotos do “Senhor Espectro”. Eu tive medo, mas, sobretudo, tive pena.

Sinto pena de quem acha que o mundo não dá voltas. De quem se aproveita das situações efêmeras da vida para internalizar que são eternas e, diante disto, humilhar e perseguir os outros.

Homens não deveriam – jamais! – sentir inveja de mulheres. Este é, em minha opinião, o sentimento mais repugnante. Um homem, a quem Deus destinou a força, a coragem, a sobrevivência da espécie, desmerece o gênero quando inveja uma mulher, seja por sua beleza, por sua inteligência, por seu profissionalismo, por sua competência. Isto é vergonhoso. Mas espectros não são homens. São apenas ensaios de sombras de homens. E hoje ando às voltas com um espectro que honra o nome e todos os sinônimos possíveis de se encontrar em todos os dicionários!

Mulheres não vieram ao mundo para serem invejadas por homens, ou sombras de homens, ou ensaios de sombras de homens. Mulheres vieram ao mundo para serem contempladas, admiradas, veneradas, desejadas, cuidadas, amadas e, para além de tudo isto, respeitadas.

Não saí de casa para trabalhar pelo simples querer de ir trabalhar. Saí de casa pela necessidade de sobreviver com dignidade, e ajudar aos meus pais a viverem uma vida digna, também. Mas saí, e quando decidi que seria professora honrei a classe, exercendo meu ofício da melhor maneira que pude. Errando e acertando, fui aparando minhas próprias arestas. Hoje vejo o quanto fui querida, meus ex-alunos estão próximos de mim, são meus amigos, apontam minhas falhas à época, mas reconhecem o meu amor – de sempre! – pelo ato de educar. Depois que deixei a sala de aula, depois dos dezesseis anos em que estive nela, mudei de função e hoje, Inspetor Escolar – com muito orgulho – tento fazer o melhor que posso.

Foi uma das coisas que aprendi com meus pais: meu pai foi o melhor mecânico enquanto foi mecânico, e minha mãe, a melhor balconista da Farmácia Vera Cruz. Eu não tenho nenhuma dúvida disto. E sei que eles acreditam que saí de casa para morar tão longe para ser a melhor Inspetora Escolar que puder ser.

Então era isto o que eu queria dizer. Que quando Deus criou homens e mulheres com suas diferenças, não foi à toa. Nós não somos iguais. Quando Deus se entristeceu diante do pecado confessado, destinou Adão a sobreviver do seu próprio suor, e Eva a parir com dor. Hoje muito do que compõe nossa geladeira em casa é fruto do trabalho da mulher, enquanto o homem não sabe, nem vai saber, o que é a dor do parto. Então tivemos que ir à luta para ver uma geladeira mais colorida em casa e, “sem querer”, apresentamos nossa força e inteligência aos homens que já estavam lá fora, e eles, agora, nos invejam. E invejando, perseguem.

Eu pensei em resistir, mas meus quarenta e quatro anos não me sugerem isto. Lendo os últimos textos que postei aqui, seria ter uma vida diferente daquela que prego e, decididamente, não vim ao mundo para isto. Pago todos os preços – altíssimos! – por ser quem eu sou, mas sou. E diante da mesquinharia, da covardia, das atitudes atrozes que venho percebendo, recuo. Que passe a cavalaria, que ladrem os cães. Que se levante a poeira. Daqui a um tempo, a poeira assenta, e nem rastro fica das ferraduras, porque dias substituem dias, há chuva, há sol, há vento... Vai tudo embora. Os cães latem por outras coisas (aliás, por qualquer coisa), o tempo passa e tudo está esquecido.

Meu rastro cheira a rosas, já disse “o outro”, lá, certa vez. E perfume de rosas, este sim, demora a sair. Fica nas rosas, fica nas mãos de quem as oferece, fica até nas páginas dos livros em que são guardadas.

Tenho rosto. Reconheço-me no espelho. Olho profundamente nos olhos das pessoas quando converso com elas. Às vezes até tenho necessidade de retirar os óculos do rosto. Não confio absolutamente em quem desvia o olhar de mim. Não permito a Antônio sequer brincar de fazê-lo. Digo sempre a ele que um homem deve olhar o outro nos olhos. Não se é assim, e não se é digno de confiança.

Eu não estou na diagonal da vida. Não procuro pontos de fuga para descansar o olhar. Não marco dia nem hora para visita. Não me escondo. Não sou sombra, não nasci para ser espectro. Portanto não sei conviver com quem o é.

Minha direção é só uma: para frente! “Para o alto e avante”, como diria minha querida Gisela. Vento na cara, cabelo desgrenhado, muitos tropeços, quedas incontáveis, choros absurdos, mas uma alegria sem tamanho por ser quem sou, por assumir meus atos, por olhar nos olhos, por dizer a verdade, andar com ela de mãos dadas, sempre, inexorável.

Não persigo ninguém, não admito ser perseguida. Não traio. Dispenso, portanto, a traição. E não preciso conviver com aquilo que me aborrece. Esta não é a Vida Nova que prometi para mim, na Páscoa. Estaria dando um testemunho contrário ao que prego. Isto eu deixo a cargo do Sr. Espectro. Este sim, prega uma coisa e faz outra, ensinando com seu exemplo torpe de vida aos seus descendentes.

Não quero carregar comigo a culpa por ser dentro de minha casa um exemplo desonesto de vida para Antônio.

A vida é breve e maravilhosa. Eis que opto por uma Vida Nova. E as tentações deste mundo que não é do meu Deus não vão me persuadir sob a forma de um fantasma de gente que acha que é alguma coisa. Alma vendida, eu repreendo suas atitudes nojentas. Engula-as. Estou fora.