domingo, 30 de dezembro de 2012

Lágrimas de diamantes


(Eu vi meu pai chorar, dia desses. E descobri que quando se chega a uma certa idade, as lágrimas são diamantes!)


O sol entrava pela janela da cozinha, mais ou menos às três da tarde. Eu adoro quando consigo flagrar o sol a essa hora, lá na cozinha da casa da minha mãe. Era assim, também, quando eu morava na casa: é que ele entra dividido – ou multiplicado? – pelas grades do basculante, tudo fica lindo lá! Reluz nos talheres secando sobre a pia... Erico Veríssimo descreveria a cena bem melhor que eu. Na verdade, acho que passei a admirar a cena depois que li Erico Veríssimo... Mas a oportunidade de ver o sol às três da tarde na cozinha sempre foi pouca. Primeiro, porque eu estava sempre trabalhando, longe, muito longe a essa hora. Segundo, porque nos fins de semana eu dormia, certamente.

Papai comia castanhas, cutucando a tigela branca que só é vista às vésperas do Natal. Castanhas deliciosas, feitas por minha mãe. Boné na cabeça, roupa de casa, e aquelas mãos inesquecíveis, de dedos tão tortos que hoje ninguém é capaz de acreditar que um dia ele foi um excelente mecânico!

Do outro lado, atento, o pai de Antônio. Ele gosta de instigar meu pai a contar suas histórias, sabe que isto lhe dá um prazer imenso. O sol demarcava os dois. Eu e minha mãe arrumávamos a cozinha, havíamos acabado de almoçar.

Papai contava as aventuras de um grupo de rapazes com suas bicicletas e, posteriormente, suas motos. Cheguei a ouvi-lo dizer, entre uma passada pelo corredor e outra, que por várias vezes saíram de Niterói com destino à Petrópolis, Teresópolis, Friburgo pedalando! Sim, isto mesmo! Decidia, nos fins de semana, a rapaziada, que destino tomar. Eram jovens, portanto ágeis, ousados, independentes, felizes, corajosos! E se a maioria optasse pela serra, lá iam os destemidos desbravá-las. Uma rápida conferência nos freios no Cicle do meu avô, e pronto!

Foram muitas as aventuras sobre os pedais e as duas rodas. Os meninos cresceram, trabalharam, juntaram dinheiro e conseguiram retirar das vitrines e levar para a garagem de casa as tão desejadas Harley-Davidson. Uma mais bonita que a outra, causavam suspiros das mocinhas do bairro. Sim, elas, as motos, muito mais que os rapazinhos... Minha mãe sempre enfatiza isto, para deixar meu pai sem jeito... Uma brincadeira gostosa, da qual morrerei de saudade quando não os tiver mais por perto.

Eles viveram numa época em que não precisava ser tão rico para ter uma Harley-Davidson. Bastava trabalhar e economizar o salário. E foram adquirindo, aos poucos, os frangotes, suas possantes máquinas.

Uma castanha, uma história, outra castanha, outra história. E ver papai separar as cascas das castanhas da tigela me fez lembrar imediatamente daquela cena do cordãozinho com nó a ser desatado por suas mãos, que eternizei no texto “Meu pai que a escola excluiu” e deve estar por aqui, lá atrás, neste blog. Naquele dia, era uma agulha. Neste, cascas de castanha...

Lembrar do grupo de amigos o deixou emocionado. Se iam para tão longe em bicicletas, o que não passaram a fazer sobre os roncos de suas motos?

Foi aí que ele resolveu contar da vez em que um dos amigos caiu da moto e foi atropelado pelo bonde, em Niterói.

Todos os que vinham juntos pararam imediatamente para socorrer o amigo, que acabou por ficar bem embaixo do bonde. Correram todos, seguraram o veículo e o mantiveram parados, enquanto meu papai o puxava para fora dali. Mas o peso era muito, os meninos não suportaram por longo tempo, e uma descida abrupta – a rua onde estavam era uma ladeira – fez com que as rodas do bonde cortassem um dos braços do rapaz. Meu pai gritou, mas ninguém conseguiu conter a força do peso do bonde, que seguiu o caminho dos trilhos arrancando-lhe o outro braço também.

Eu fiquei olhando papai contar aquela tragédia. Ele mal conseguia falar. Quando as lágrimas lhe chegaram aos olhos, brilharam na intensidade do sol do basculante. E eu pude ver, creiam, o reflexo amarelo do sol e do vidro que cobre a janela, no rosto molhado do meu pai. Foi um instante único, que jamais se repetirá. Numa das idas e vindas no corredor que dá acesso à cozinha, ajudando a minha mãe com as coisas, eu as vi: as lágrimas de diamantes do meu pai.

Ele cobria o rosto, acho que envergonhado. O pai de Antônio sacudiu-lhe o ombro, num “deixa disso, Sr. Walter” mais lindo que já vi na minha vida! A verdade é que meu pai vivia aquilo ali, naquele instante. E eu assisti àquilo tudo, agradecendo a Deus, mais uma vez.

Impossível segurar a emoção e não chorar também. Agora mesmo, ao escrever sobre o que aconteceu, sinto os olhos marejados.

Meu pai está com setenta e oito anos. Certamente era o mais novo da turma da época. Há quanto tempo aquelas lembranças dolorosas marcam presença no seu coração? Sessenta anos? Quanto tempo dura uma lembrança?

Aquelas lágrimas de diamantes saíram dos olhos de um rapaz de dezoito anos que não conseguiu salvar um amigo de um acidente que poderia ter ocorrido com ele. Saíram ao lembrar o seu desespero, a sua dor, o seu lamento. Naquele momento meu pai tinha dezoito anos, estava sentado à mesa da cozinha, comendo castanhas e sofrendo com a gente porque não conseguiu segurar o bonde...

O rapaz sobreviveu. E virou o herói do grupo. Secando as lágrimas meu pai contou que, embora tenha ficado sem os antebraços, o garoto pilotava motos melhor do que muitos de seus amigos. Exibia-se. Fazia graça. Coisas de uma época da vida em que se faz limonada de cada limão que se recebe.

Numa das viagens às cidades da Serra, foram parados por uma blitz. Papai contou que um policial parou todo o grupo e, tendo comparado o número de motos ao de pilotos, concluiu que uma delas estava sendo conduzida pelo rapaz sem os antebraços. Passou um “sabão” em todos e duvidou que o menino pudesse conseguir pilotar, naquele estado. Desafiou-o, então, ordenando-lhe que subisse, assumisse a direção da Harley e desse uma volta, garantindo-lhes que se ele conseguisse, liberaria o grupo.

Voltaram para casa, todos, depois da demonstração de coragem de um jovem que não tinha o corpo inteiro, mas era feliz e determinado, assim mesmo.

Olhar para aqueles braços incompletos todos os dias, e lembrar de tudo o que aconteceu, fez daqueles meninos que compunham o grupo homens de verdade. O exemplo, o ensinamento de Deus, não foi só para quem caiu sob o bonde. Foi para cada um deles. E, sessenta anos depois, para mim.

Velhos choram lágrimas de diamantes. Ou será de outro valor a lágrima que escorreu dos olhos do meu pai?

Deus me permita aprender sempre. Ouvir sempre. Perpetuar no coração de Antônio as histórias que ouvir dos meus pais, tios, amigos mais velhos. Viver é isto. Nada mais do que isto. Quero ter histórias para contar, também. Porque ter histórias para contar é um sinal de que se viveu. E quero muito, muito, viver!

sábado, 29 de dezembro de 2012

Na estrada

(O abençoado ano de 2012 está chegando ao fim. Ontem foi o meu último dia de trabalho na Secretaria de Educação, experiência que seguirá comigo onde eu for. Nada a reclamar. Tudo a agradecer.)



Hoje fechei a porta pela última vez. Deixei as chaves lá. Não voltarei amanhã. Nem depois, nem depois de depois de amanhã.

Hoje fechei os olhos num abraço que não se dará mais diariamente, como foi há oito meses. Amanhã não haverá abraço, nem depois, nem depois de depois de amanhã.

Hoje abri a estrada para a caminhada. Quase cortei as fitas, que imagino verdes por conta da minha imensa esperança de que venham dias melhores. Melhor seriam fitas coloridas. Não disse eu mesma há uns textos atrás que a esperança é de todas as cores?

Estou na estrada. A vida me espera. Deus criou o mundo e nele pôs as ruas para caminharmos. Deus espera que nosso caminho seja longo, seja bonito, seja verdadeiro, seja perfumado (não vou nem repetir a história do meu rastro de rosas, para não cansar meus leitores)...

Há doze anos cheguei a Iguaba Grande. Aqui, entreguei o melhor de mim. Não vim para passar alguns dias e voltar pra São Gonçalo depois de cumprida a carga horária obrigatória. Não. Trouxe, na mochila de veludo cotelê vermelho, todos os meus sonhos. Todos os sonhos que carrega uma mulher de trinta anos com quinze de Magistério. Em minha mochila vieram todos os meus erros, meus acertos, minhas histórias. Trouxe nas costas todos os meus ex-alunos, que agora reencontro na velocidade da Internet e abraço virtualmente com tanta emoção que chego a sentir meu coração aquecido!

Hoje deixei “a janela da minha sala de trabalho”. Deixei a vista mais bonita – porque da minha cidade! – para novos olhos apreciarem. Hoje deixei lá meu coração acelerado de há oito meses, quando entrei naquele espaço meio sem saber o que fazer, por onde começar, o que dizer às pessoas. O tempo foi passando, Deus foi me abençoando, as coisas foram acontecendo, e tudo deu certo, graças a Deus!

Todos os sonhos da mochila de veludo cotelê vermelho que me acompanhou de São Gonçalo a Iguaba Grande estão aqui comigo, agora. Se eu fechar os olhos, como fechei no abraço de há pouco, os vejo, todos: são eles meninos e meninas felizes no momento do sinal de entrada na escola. Eu vejo pais tranquilos e confiantes afastando-se dos muros da escola depois de verem seus filhos caminhando para as salas de aula. Eu vejo professores satisfeitos conduzindo suas turmas. Vejo parceria.

Talvez um dia pás de cal sejam lançadas sobre o corpo de uma Karla Pontes que já não sonhe mais. Só mesmo pás de cal serão capazes de acabar com isto me traz lágrimas de emoção aos olhos: ver uma aluna formada, ver um aluno trabalhador, ver meus meninos conduzindo suas vidas para o bem. Tenho extremo orgulho de ter sido Professora. Agradeço a Deus pela oportunidade de ter vindo para Iguaba para experimentar a profissão de Inspetor Escolar. Agradeço, da mesma forma, por esses oito meses à frente da Secretaria de Educação da cidade onde decidi viver, ter e criar meu filho, ser feliz.

Todas as bênçãos. Todas! E eu, pequena, vazia, indigna, recebi de Deus a missão de estar por lá, pensando coisas, sonhando possibilidades... Mas jamais teria conseguido sozinha, e um Deus onisciente me colocou ao lado das pessoas certas. Trouxe-me a humildade, a caridade, o afeto, o perdão, a paciência, a amizade, a fé, a compaixão, a fidelidade, a persistência, a vergonha, a ética, o amor, a paixão, a responsabilidade, a honradez, a solicitude, a decência. Veio tudo isto num monte de gente que, aos poucos, foi cruzando o meu caminho. Deus permitiu crescer joio e trigo, crescer muito joio e muito trigo, crescer muito o joio e o trigo, e quando os oito meses estavam por findar, grande parte do joio foi ceifado.

O joio se foi, meio que disfarçado de ovelha, se é que isto é possível. E tendo limpado das minhas vistas o que me cegava, Deus apresentou-me o campo dos trigos, amarelinhos, poucos, sim, mas abençoados!

Confusa, já não sei se é blasfêmia dizer a Deus que não sou digna do presente que Ele me deu quando me entregou as chaves da SEMEC. Ora, se Ele me concedeu a graça, deveria eu estar duvidando?

Mas para além de poder olhar com carinho para as minhas crianças, foi durante o tempo em que estive lá que consegui a felicidade de poder olhar para mim mesma. E descobri amigos, descobri parceiros! Foi um tempo de descobertas impressionantes. Cada dia, um testemunho da presença VIVA de Deus na minha vida.

Obrigada, Senhor!

Estou na estrada. A vida segue, não para, é mais rápida que meus pensamentos. Estou mais firme, mais forte, mais resistente, mais completa, mais experiente, mais atenta, mais confiante, mais crédula, mais feliz. Estou na estrada sem vícios, sem resquícios, sem mágoas. Já sei em quem posso acreditar. Já sei como me defender.

Estou na estrada para viver o dia de amanhã, assim que a fresta da minha janela quebrada – hoje já maior que ontem – me avisar que o dia se rompeu num sol de cinquenta graus lá fora. Eu vou viver.

A estrada é tão longa que não dá para avistar o seu final. E isto é bom, dá-nos a impressão de que há muito ainda por caminhar. Se esticar os olhos vejo curvas, elas me anunciam as dificuldades, as mudanças que virão. E em vez de temor, tudo o que sinto é vontade de alcançar meus objetivos, superar obstáculos, romper fronteiras, desbravar rumos, descobrir novos caminhos.

Oito meses e amigos de verdade. Foi o que eu trouxe para casa depois de fechar as portas do lugar onde fui imensamente feliz. Nada a reclamar. Tudo para agradecer.

Eu não quero parar. O sol me excita, me dá energia. Já sei para quem posso dar as mãos. Minha corrente é grande, vou longe com os amigos que tenho. Vamos juntos, vamos longe, vamos além.

Fica o convite, porque não vejo o dia de hoje como um fim, e sim como começo: sou nova, sou renovada, sou outra, sou melhor. E quem caminhou junto comigo, na responsabilidade de fazer e de dar o seu melhor, está, tenho certeza, sentindo-se assim, no dia de hoje, como eu. Fica, então, o convite de seguir adiante, na estrada, sem temores. Fica o convite de apostar as fichas no sonho de ver tudo dar certo, ver as crianças, os jovens e os adultos com seus sonhos realizados, também.

Eu, sigo. Cheia de gás! Feliz da vida! Grata a Deus! Na estrada cabem todos. Se a gente der as mãos, envolve o mundo num abraço, alguém duvida? Meu abraço de hoje, especialmente em Marli, minha parceira, minha amiga, minha companheira, minha referência, envolveu o mundo, encheu de alegria o meu coração e, sei, o coração dela. Corações movem o mundo, o mundo gira no compasso das batidas dos nossos corações.

Meu coração está na estrada. Vou-me embora. Alguém quer vir?

quarta-feira, 26 de dezembro de 2012

Natal e nostalgia

(Voltar a São Gonçalo é, sempre, uma viagem emocionante. Nestes tempos de Natal, então!... Tendo me encontrado entre o futuro e o passado do lugar onde nasci, resolvi escrever e compartilhar com vocês.)


Eu fui a São Gonçalo para passar o Natal com minha família. Fiquei quatro dias por lá. Voltei com mais saudade ainda!

Agora, muito próximo a minha casa, há um Shopping Center. Muito próximo! Passei por lá logo que cheguei. Levei umas horas por lá: gente pra cima e pra baixo nas escadas rolantes, filas quilométricas nos caixas das lojas, crianças no colo do Papai Noel... Tudo desarrumado, brinquedos quebrados, uma loucura tamanha que cheguei a sentir vergonha de fazer parte daquela confusão herege. Certamente, se fosse aquele o dia da chegada de Jesus à Terra, eu ficaria esquecida por lá, pelos escombros do templo que, definitivamente, não é de Deus.

Mas um certo orgulho de ter o Shopping tão perto de casa quase que me obriga a visitá-lo, sempre que posso. E eu vou com uma intenção diferente, e quem me conhece vai saber que é verdade: eu vou para olhar o que ninguém olha. Eu vi o progresso, o futuro, a inteligência humana, os dons de Deus experimentados, todos, nas artes que compõem o prédio. A começar pelo elevador que me conduz às lojas, passando pela criatividade nas montagens das vitrines, as possibilidades de venda e compra, os gostos tão diferentes... Ah, Shoppings podem ser festas, a gente precisa saber visitá-los!

Depois de algumas horas circulando, precisei ir ao Centro comprar umas coisinhas. Deixei, então, o conforto dos condicionadores de ar e fui para o “fogo” daquilo que se chama “Rodo” de São Gonçalo. Aí, me basta: sou eu, a de sempre, a relembrar os tempos de menina, a estabelecer as conexões entre este meu tempo que passou e traduziu minutos em anos, décadas, de maneira que tudo o que para mim aconteceu ontem, na verdade, deu-se há vinte, trinta, quarenta anos atrás.

O “Rodo” leva este nome porque era o local onde os bondes faziam a volta, o contorno. Vinham de vários lugares, mas contornavam ali. Eu não conheci os bondes, mas me lembro bem dos trilhos ainda afincados no chão que, em sobressaltos, me faziam levar alguns tombos nas ruas. No meio da Praça do Rodo, o Cinema Nanci, onde assisti a “Se meu Fusca falasse”... O cinema não existe mais. Agora, no local, uma loja “Marisa” oferece promoções natalinas. Eu, no entanto, vejo o cinema lá, do mesmo jeito, bilheteria com fila, catracas velhas e barulhentas girando, e chego a sentir a emoção da espera por ver o filme começar! Não leio Marisa no letreiro. Para mim, tudo o que está escrito é Cinema Nanci.

Andei pouco pelo Centro. Está tudo muito diferente! Temi perder-me entre os vendedores ambulantes, eles se multiplicaram! Passei pela galeria e um cheiro forte de rosas me levou rapidamente à recordação da Casa das Flores, onde mamãe comprava os arranjos aos sábados, para enfeitar a casa depois da faxina. Nossa, que cheiro bom de infância! Olhei lá pra dentro e pude reconhecer, num senhor de cabelos extremamente branquinhos o “moço” que nos atendia àquela época. A loja está mais bonita, há bem mais funcionários, mas está lá, no mesmo lugar, e eu – juro! – só consegui vê-la velha, do jeito que era quando eu era tão criança! Fechei os olhos, inspirei, e lá estavam as flores do tipo gipsy a tomarem conta do meu olfato. Que tardes felizes aquelas em que se punha arranjos de rosa e gipsy na mesinha da sala lá de casa!

Olhar a estrutura do Shopping do Centro de São Gonçalo foi uma experiência, no mínimo, diferente. Meus pés no asfalto quente do Rodo, meus olhos no Rodo que Antônio conhece. Nada de bondes, nada de trilhos ameaçando-nos os passos. Um monstro ergueu-se e levou nossos sonhos embora. Hoje é mais urgente comprar na Marisa do que ir ao Cinema Nanci.

Caminhando de volta pra casa, reconheço algumas coisas, o que não foi desfeito ou refeito por esses homens que não gostam do passado: há sempre alguém que mantém sua casa como era há trinta anos. Eu vi a casa onde brinquei quando muito menina! Lá ouvi os disquinhos coloridos da Disney, que narravam as mais lindas histórias infantis! Lá fui a Cinderela, a Bela Adormecida... Lá enveredei nas aventuras de Alice no país das Maravilhas! Lá sofri por um Pinóquio perdido, cantei com Mogli e o seu amigo Elefante, lá conheci os gatinhos que “vieram do Sião há três meses e que chamam de siameses”... Lá vivia o tudo que era a minha vida, até ouvir mamãe me gritar do portão, avisando da hora de ir embora da casa de Tânia.

Nunca mais vi Tânia. E a lembrança de um tempo em que fui muito feliz está lá, no chapisco dourado no cimento bruto do muro. Quando passei por ali de carro, desacelerei. E o silêncio preenchido de emoção me trouxe aos ouvidos as músicas, a narração das histórias, o tom de azul do disco preferido, o alaranjado da vitrolinha de onde saía aquela emoção toda que sempre me acompanhou...

Na verdade, eu não fui ao Shopping. Eu fui viver um pouco, fui recordar. Este era o real desejo de Deus quando sussurrou-me a sugestão do passeio. Pensando bem, talvez eu me livrasse, sim, do dia do Fim, posto que talvez nem estivesse prestando atenção à promoção da loja e, sim, tentando descobrir o que tinha sido, antes, no meu tempo de criança, aquele prédio.

O sol quente demais me levou ao banho, quando cheguei em casa. E quando o chuveiro derramou a água mais gelada e deliciosa do mundo sobre minha cabeça fervendo – mais de emoção do que de calor – fui abençoada com mais uma lembrança gostosa: a água que saía do chuveiro do Clube Tamoio quando íamos, eu e minha irmã, para a piscina. Eu tinha uns oito anos. E há três dias tive oito anos sob o chuveiro lá de casa. Meus pensamentos e meu coração me levaram ao box onde tomávamos uma ducha fria antes de entrar na piscina do clube. Que saudade! Às vezes os boxes ficavam sem chuveiro, a água caía direto do cano, chegava a machucar a cabeça. Eu senti aquela dor, aquele desconforto maravilhoso há três dias! Onde foram parar meus oito anos?

Hoje meu filho tem seis. Está caminhando para seus sete anos. Feliz, há mais de dez dias na casa dos avós, anda sem chinelos, sem banhos controlados, tomando sorvete, com a cabeleira crescida, e talvez seja o menino mais feliz da rua onde está. Antônio daqui a trinta, quarenta anos recordará com carinho deste tempo que hoje é o dele. Certamente, nos dias que antecedem o Natal estará com sua memória afetiva aguçada e lembrará com carinho e nostalgia do avô sentado ao chão consertando, já, o brinquedo que acabara de ganhar. E da avó, sempre na pia da cozinha, preparando-lhe o suco preferido, ou a guloseima da vez.

Família é tudo. Viver é tudo. Recordar é tudo. Ser feliz é tudo. E tudo urge, porque o tempo passa rápido demais. Escrevi algumas poucas coisas, das inúmeras das quais me lembrei por esses dias. Eu desejo um São Gonçalo de lembranças maravilhosas para Antônio! Eu fui feliz por lá, voltei com saudade de ser feliz de novo!...

O tempo não para. Obrigada, meu Deus, por me lembrar disto, todos os dias. Na estrada, já voltando para Iguaba, um corpo coberto por um plástico preto engarrafava o trânsito enquanto se despedia da vida. Aquele se foi. Bendito seja quem sabe viver!

quinta-feira, 13 de dezembro de 2012

Sorria, você está sendo...

(Não gosto muito de escrever sobre coisas pontuais, mas esta evolução acelerada das "pegadinhas" de péssimo gosto está me incomodando...)


Quando eu era criança meus pais me ensinaram que era feio rir ao ver alguém levando um tombo. Eu prendi o riso algumas vezes, até que vi minha mãe tropeçar numa calçada em Niterói, bater a cabeça no meio-fio e deixar lá um chumaço de cabelo que demorou a ser refeito... Ver minha mãe cair daquele jeito não teve nenhuma graça para mim, tampouco para ela. Ali eu aprendi a não rir das desgraças dos outros.

Todas as vezes em que caí, gargalhei junto com quem assistia à queda. Um sorriso mecânico de quem quer mais é chorar, correr, sumir.

Todo mundo que já passou por isto sabe a situação constrangedora que é, e sabe que não há graça nenhuma no “acontecimento”.

Quando a gente é enganado por um trote não se diverte. Que satisfação é esta que hoje rompe as fronteiras dos meios de comunicação – com direito a milhares, milhões de acessos virtuais – para deixar doloridas as bochechas dos homens e mulheres que se distraem alegremente ao verem o seu próximo em situação vexatória?

Eu não gosto das agora cada vez mais famosas “pegadinhas”. E ainda que sejam, todas, cenas ensaiadas por atrizes e atores, acho de péssimo gosto difundir a ideia de que pimenta nos olhos dos outros é refresco.

Antes era só um tombinho: escorregar no chão molhado, desequilibrar-se depois de correr bastante, perder o fôlego... Agora a coisa está tomando uma dimensão anti-humana e venho tendo medo disto.

Crescendo, fui aprendendo a estender a mão àquele que caía. Segurei crianças no ônibus, cedi meu lugar para gente que não se equilibrava nas freadas bruscas. E gostei do resultado. Passei a ajudar as pessoas nas ruas, a socorrer acidentados, a ralhar com quem achava graça do que em nada era engraçado.

Hoje fico pensando que os vídeos poderiam ser assim, com situações cotidianas de amor ao próximo registradas em tempo real. E em vez das pessoas torcerem pelos acidentes com suas câmeras prontas para o ataque-sucesso-na-mídia-amanhã estariam sempre alerta para fazerem o bem, na hora exata: colocaríamos o lixo na lixeira, socorreríamos os pedestres desatentos, ofereceríamos água aos animais abandonados, balançaríamos as crianças nos parques, atravessaríamos os idosos nas ruas, diríamos “bom dia!”, “boa tarde!”, “obrigado!”, “por favor!” e muitas, muitas vezes “perdão!”... E, tendo sido filmadas as ações de bem, estariam todas sendo veiculadas no jornal da noite, no programa de domingo, na internet, e as atitudes boas seriam disseminadas pelo mundo afora, servindo de exemplo às milhões de pessoas que hoje choram de rir ao verem alguém se afogando num rio. Hoje os pais só socorrem seus filhos dos tombos no parquinho ou na piscina depois de garantirem o melhor ângulo para a “videocassetada” ficar perfeita! Uau!

Estou passando rapidamente por aqui, só para me livrar de um sentimento que tem me tomado uns pensamentos já faz algum tempo.

Como educar as crianças, deste jeito, se estão ao lado de seus pais na hora do programa onde aparecem as aberrações? Onde está a cidadania, o respeito ao próximo?

Abrindo a página do meu facebook eu vi tantos compartilhamentos de vídeos de “pegadinhas” que temi. Hoje estão rindo dos outros, amanhã será que não cairão?

A reversão dos valores está aí, nos circundando. E vai se dando subjetivamente, às vezes sem que percebamos. É hora de ficar alerta. Pimenta nos olhos dos outros arde, e arde muito. Um bom cidadão diria que nos outros arde mais ainda. O negócio lá propõe ser engraçado, mas não é. E não há necessidade de levarmos um tombo feio na rua ou dividirmos o elevador com um caixão para nos darmos conta de que nada disto é proposta de Deus, nada disto faz bem.

Vamos pensar sobre isto?

terça-feira, 11 de dezembro de 2012

Valer a pena

(Às vezes me envergonho de ser Escola...)


O que será que pensam as pessoas no momento do seu último suspiro?

Venho pensando nisto desde que passei pela estrada, ontem, a caminho de casa. Fiquei alguns minutos presa num engarrafamento na rodovia. Quando a passagem foi liberada, dezenas de homens fortes num uniforme cor de abóbora reluzente davam conta, com seus corpos sujos e suados, de um Brasil desrespeitado.

Então, me envergonhei de ser escola. Isto volta e meia acontece comigo. E como costumo viajar em meus pensamentos quando posso não estar ao volante – às vezes faço lá, também, ainda que perigosamente! – restou-me imaginar, tentar adivinhar, o que teriam dito Paulo Freire, Darcy Ribeiro, Sócrates, Jesus, quando dos seus últimos suspiros.

Aquela gente laranja na estrada faz o Brasil andar. Só cheguei a São Gonçalo porque uns braços esticaram o asfalto e permitiram-me a passagem. Como foram postas as pedras no Rio de Janeiro, do jeito que escrevi num outro texto. Pedras ao chão, que passem os que podem!

De um lado a outro, cruzamos as fronteiras, desbravando um Brasil imenso, maravilhoso. Se há calor, está lá o rapazinho com a latinha de refrigerante ou água a me oferecer na hora! Se tenho fome, uns biscoitos de polvilho resolvem rapidamente o meu problema. E se Antônio quer se divertir é possível comprar, no garoto magricela sem camisa, uma lanterna que, afixada na cabeça, ilumina o carro inteiro e faz meu menino ser o Homem-da-Luz (ou qualquer coisa parecida)!

Eu fiquei pensando no cansaço daqueles homens. Tentei calcular a que horas chegariam em suas casas, que casas seriam essas, o que haveria para o jantar, quantas pessoas estariam a sua espera... Aqueles homens de cara preta de asfalto sustentam nosso Brasil, enquanto os corruptos perfumados que vestem terno e têm a cara limpa (?) e suas digníssimas bonequinhas de luxo fabricadas nas academias se preparam para atravessar a estrada nos seus carros possantes... Eu sou a escola. Que vergonha de mim!

Nosso pão vem deles. Dependemos dos garis que nos tiram o lixo de casa, dos varredores de rua, dos padeiros, dos ascensoristas, dos cortadores de grama, dos garotos que lavam nossos carros no lava-jato. Essa é uma massa grande de gente, muito maior do que a dos mauricinhos da vida, que hoje estão com suas capas pretas julgando os ladrões da vez e, ao mesmo tempo, vendo sua hora de sentar-se no banco dos réus chegar. Não é mesmo assim? Num dia de noticiário vemos um julgando. No outro, o juiz é o julgado, numa infame troca de cadeiras.

Eu sou a escola e formei – com direito a todos os protocolos – todos os ladrões que hoje vestem roupas bonitas e estão acima de mim. A esses entreguei o canudo orgulhosa, afagando cabelos, apertando mãos, tirando fotos.

Aos meninos – e meninas, são muitas, tantas! – de uniforme laranja eu desprezei. Descartei: tinham cheiro ruim, Vinham somente para “comer” ou para “dormir”. Não presenteavam seus professores, falavam um português impossível de se compreender, diziam “a gente vamos”, “vou ir ao banheiro”, tinham cadernos sujos de gordura... Não aprendiam como os outros, logo na primeira vez que se ensinava. Não faziam as tarefas de casa, as pesquisas na Internet, não moravam com seus pais, não gastavam um centavo na cantina!

Que tanta luta foi essa a dos pedagogos que citei lá em cima que a gente trabalha tanto para ver morrer pobre quem nasceu pobre? Que luta é essa que se trava ainda – não se trava? – por uma educação de qualidade, que nossos pedagogos estão morrendo, gritando no caixão, e que fica tudo como está, mesmo assim? Tanto que Jesus andou, peregrinou, anunciou! Tão pouca gente entendeu! No final, restou-lhe a cruz e um “Pai, perdoa-lhes, eles não sabem o que fazem”... Não seria loucura minha acreditar que este tenha sido também o último suspiro de Sócrates, Darcy, Paulo e todos os outros.

Por aqui, em Iguaba, não vejo nada muito diferente: os excluídos das escolas (aqueles bagunceiros, insuportáveis, dispersos...) estão nos comércios, quando saio às ruas. Estão lá, com seus salários míseros, suas condições desumanas de escravidão a um senhor letrado, diplomado pela escola que sou. Este patrão foi bom aluno, certamente.

Será que é assim que funciona, então? Será que vivi quarenta anos dentro de uma escola para ratificar o engodo?

Às portas dos Conselhos de Classe/versão 2012, quis vir até aqui. Eu grito por aqui, é o meu caminho. Escola tem que valer a pena. Há uns dias encontrei pelas redes sociais alguns ex-alunos agora arquitetos e engenheiros. Senti um orgulho sem tamanho! Mas passar por aqueles homens na tarde de ontem causou-me estranheza, porque sou a escola.

Morando na Região dos Lagos, professores vão à praia e compram empadinhas e refrigerantes com seus ex-alunos-agora-ambulantes. Deixam seus carros estacionados com seus ex-alunos-agora-flanelinhas. E tudo fica como está, quando na manhã seguinte lançam a falta para os ditos-cujos em seus diários de classe, sem sequer se darem conta de que pode haver alguém extremamente cansado do dia anterior, ou vitimado por uma insolação.

Qual será o meu último suspiro? Se a educação transforma, liberta, por que diplomamos os sem-caráter que assumem o poder que nos aprisiona?

Enquanto a resposta não me vem, insisto em sonhar. Eu sonho com uma escola que faça valer a pena para aquele cidadão que vem de tão longe querer sair de sua casa e caminhar até chegar aos seus portões. Eu sonho com uma escola que o acolhe em seu cansaço. Eu sonho com humanidade. Sonho com uma escola que enxerga o menino para além de suas brincadeiras, sonho com uma escola que indaga os motivos pelos quais seus alunos apresentam um ou outro comportamento diferente. Sonho com uma escola que recebe as famílias, que as educa, que é educada por elas.

Enquanto sonho, meus contrastes vão acontecendo: ouvindo meus pais conversando sobre as últimas notícias que assistiram nos jornais da TV – eles não perdem um dia! – envergonho-me, novamente. A escola que sou colocou os dois pra fora quando mal tinham entrado. E produziu os advogados, juízes, ministros, deputados, presidentes, os donos das desonras que assolam o Brasil.

Escola para que, se não vale a pena?

domingo, 9 de dezembro de 2012

Páginas viradas

(Eis minha alegria registrada: Meu filho está alfabetizado! Estou virando mais uma das páginas de nossas vidas...)


Calendário de mãe é diferente de todos os outros, hoje sei.

Como pode Antônio ter nascido ontem, se hoje já sabe ler e posa numa elegante beca para a foto da formatura? O que foi que eu perdi? Será que dormi uns minutos enquanto o tempo passou desse jeito?

Há pouquíssimo tempo eu o sentia na minha barriga. Um pé enorme me dava chutes, era possível encontrar e segurar seu calcanhar. Depois, quando dei por mim, estava aguardando a hora de recebê-lo em meus braços. Mais à frente, eu e ele nos descobríamos, ousada que fui em dispensar companhia quando chegamos em casa. Assim, fui virando as páginas da minha/sua vida e, agora, num susto, dei-me conta de que Antônio já sabe ler!

Quando fez um ano, viramos a primeira: de pé, ensaiando os passos, a salvo das febres loucas que tiraram nosso sono, apontando, já, para o local onde a dor o incomodava, balbuciando palavras – aqueles códigos que só mãe e filho entendem! – para expressar vontades e pensamentos...

Aos dois anos, libertou-me das noites acordada amamentando, cansaço extremo, romantismo fictício criado não sei por quem (certamente por alguém que nunca amamentou). Andando com firmeza, chegou onde queria sem necessitar meu colo, vivendo as primeiras experiências daquilo que mais tarde entenderá como liberdade...

Com três anos, a descoberta da linguagem escrita: dominava as letras do alfabeto, ensaiava junções, e enfeitamos toda a sala da casa com letras emborrachadas, porque esta lhe era a brincadeira favorita. Antônio divertia-se lendo, e era lindo sair com ele às ruas e ter que parar diante de cada placa de automóvel para que, apontando um dedinho minúsculo, fosse identificando, diante de gente tão boquiaberta quanto eu, as letras e os números que a compunham...

Quando Antônio fez quatro anos tornou-se verdadeiramente meu companheiro: um homenzinho, que já perguntava o motivo dos meus choros, já me fazia carinho espontaneamente, nas horas exatas em que eu mais precisava. Conversava com Jesus, e muitas vezes ralhou comigo por eu ter interrompido a intimidade com Deus. Surpreendeu-me várias vezes dizendo-me, inclusive, que Jesus lhe dizia que não havia outro mundo com gente vivendo. Só o nosso, só a Terra. Uma convicção divina ao me garantir: “Ele está me dizendo, mãe, não tem”...

Com cinco anos tornou-se um explorador do universo. Garantiu a diversão, penetrando no mundo das ilusões dos desenhos animados. Virou herói, voou, desbravou terras virgens, exterminou o mal que aterrorizava a humanidade, defendeu-nos aqui em casa de tudo o que lhe pareceu ser obra da “gente do mal”. Foi Superman, Batman, Capitão Planeta, com a mesma intensidade com que foi cada um dos absolutamente infantis Backyardigans.

E ao completar seis anos deu-me o maior aviso de que a vida se lhe manifestava biologicamente: apresentou-me o dentinho mole que, tendo logo sido seguido por outro, levou embora minhas chances de que a tecla pause do tempo verdadeiramente poderia existir, para manter meu Antônio com um metro e vinte e poucos centímetros para sempre!...

Hoje meu menino – meu amigo! – tem na boca dois dentinhos permanentes, que vieram e ocuparam lindamente o lugar dos dois que se foram, sem que ninguém perceba. Às vezes me esqueço do que aconteceu e o vejo bebezinho. Prefiro assim, muitas vezes...

Hoje meu menino – meu companheiro! – já não se senta mais à beira da cama esperando que eu saque da caixa de livros uma história interessante para contar. Ele pede que eu me ajeite para ouvi-lo contar a história por ele escolhida. Antônio não sabe, mas na maioria das vezes nem presto atenção no que conta, extasiada que fico a agradecer a Deus pelo milagre da Vida que, agora, encontra-se a ler fábulas, poesias, trava-línguas para mim.

Antônio hoje caminha – por um calendário que não acompanha o meu – para os seus sete anos. Eu olho para trás e tudo o que vejo são os desesperos de uma mãe que não sabia como abrir a tampa da banheira, pôr água quente e fria, e dar banho num menino completamente encharcado pelo próprio refluxo. Olho para trás e tudo o que vejo são os números pequenos do termômetro a acusar a febre à meia-noite, os dos ponteiros do relógio a marcarem a cólica às duas da manhã, a garganta inflamada doída às quatro... Lá atrás eu não imaginava que um dia sorriria disto tudo, porque só o que fazia era chorar.

Hoje minha razão de viver chama-se Antônio. Se tenho orgulho de alguma coisa que fiz na vida, foi de ter sido caminho para que Deus lhe apresentasse ao mundo. Se encontro motivos para sorrir, é porque tenho o rosto dele diante de mim todas as manhãs, tardes e noites.

Há dois dias uma febre fez-lhe companhia. E velando-lhe o sono, vejo aquele bebê pequeno, que nem coube na roupinha escolhida para a saída da maternidade. Sua expressão de mal-estar é a mesma das noites em que sofremos juntos seus incômodos. Acho que o verei sempre daquele mesmo jeito: encolhidinho no berço, vermelhinho, cabeça coberta por cabelos pretos, olhinhos de jabuticaba assustados...

Estamos virando mais esta página, meu filho! E estamos juntos nessa, também. A você agora serão apresentadas todas as coisas que um letrado conhece. Há um longo caminho a percorrer, ainda, até que você conquiste seus sonhos, e utilize-se dos estudos para isto. Por enquanto vamos avançando pouco a pouco, sempre de mãos dadas, como fazemos.

Uma alegria impossível de ser descrita habita o coração de uma mãe que vê seu filho chegar em casa e dizer que “passou de ano” que “já sabe ler e escrever”. Fiz minha parte: abracei fortemente meu pequeno, para que ele se sentisse importante. Dei-lhe de presente férias na casa dos avós, e sequer conversamos sobre coisas materiais.

Amanhã vou levá-lo para São Gonçalo, e cumprir minha promessa. Deixarei lá, por uns dias, tudo aquilo que amo. Mas ele estará sendo recompensado pelos dias de alegria com os quais me presenteia pelo simples fato de viver, e de ser meu.

Depois das Festas, quando voltarmos, encontraremos, já pelo caminho, pela estrada, as páginas novas, que esperam ser viradas: as histórias que me contará sobre os dias na casa da vovó e do vovô! Antônio é uma festa! É sócio neste diário-blog. Obrigada, Senhor, por tudo o que ainda viverei ao lado do meu filho querido!

sábado, 8 de dezembro de 2012

Encomenda de vida

(Eu não saberia viver encomendando meus atos. Eu vivo: lanço-me. Sou entrega radical á paixão de VIVER!)


Deixei pelo rastro de rosas do meu caminho muitas pessoas jogadas pelo chão. Não volto atrás. Não as vejo. Sigo.

Deus me ensinou a enxergar o coração das pessoas. Já não me surpreendo tanto quanto antes. Aos quinze anos, enchia o travesseiro com lágrimas por uma decepção. Hoje, não mais: respiro fundo, e tudo o que sai do meu coração é um “obrigada, Senhor!”...

Já faz um tempo que percebo que estou me construindo e, que pela minha idade, já entrei na fase do acabamento. E, justamente por isto, estou muito mais exigente: quero material de primeira, quero garantir meu futuro.

Tornei-me uma pessoa diferente, nestes tempos de construção. Usei artigos que não se usa mais, alicercei demais uns ideais que agora tomaram corpo dentro de mim, e não sei mais viver sem eles. Rubem Alves falaria que construí um jequitibá no lugar de um eucalipto. Mas como sei que ele ficaria feliz por isto, fico também: eis que sou jequitibá, enquanto eucaliptos me rodeiam.

Sou inteira. Radical. Direta. Muitos temem essas características (eu pensei em escrever “qualidades”). Mas elas estão lá, concretadas na minha base, vêm se solidificando há quarenta e quatro anos, inútil querer mudar.

Ontem recebi um conselho daqueles que chegam até nossos ouvidos como “crítica construtiva”. Eu não acredito em crítica construtiva, quem bem me conhece, sabe. Em nenhuma situação. “Crítica construtiva” é, para mim, mais uma das expressões ridículas que ouvimos em reuniões de Conselho de Classe. Eu abomino as reuniões de Conselho de Classe. Abomino, então, o que se chama por aí de “crítica construtiva”.

Mas eu dediquei alguns segundos a ouvir o tal do conselho, e tudo o que pensei foi: “preciso dizer para todo mundo que não sou uma encomenda de vida”...

Há gente que encomenda a própria vida.

Encomendar a própria vida é submeter-se aos julgamentos dos outros. Inclusive aos prévios. É esperar ouvir dos outros o que se deve fazer, que caminho tomar. Passa por bem longe de mim a ideia de ter que esperar pela opinião de alguém para ser eu mesma. Isto é uma encomenda, não é uma vida.

Eu vivo. E tem gente à beça que não sabe o que está perdendo por não querer arriscar viver ao meu lado. Uma gente que, temerosa, se afasta e – ainda pior! – aconselha a quem está por perto a fazer o mesmo.

Talvez eu preferisse a morte a ter que perguntar antes sobre o que fazer. Eu faço, e dou-me o direito de arrepender-me depois, quando é o caso. Isto acontece pouco, até, pelo jeito que, tendo assentado minhas “sapatas”, minhas colunas se ergueram...

Hoje abro caminhos, furacão enlouquecido – mas são! – entregue às paixões de amar viver: carrego comigo umas verdades que me sustentam, cato amigos, parceiros, para seguir adiante, porque acredito que a vida é nada sem que se tenha amigos para compartilhá-la. Dos que tentam me ludibriar me desfaço, ficam pelo chão, largados, sentindo ainda um pouco do perfume de rosas que deixo, mesmo sem que mereçam. E gente deste tipo fica rastejando, sem dar-se conta de que já sumiu da minha vida. E não fazem a menor falta.

Lanço-me ao novo, ao inesperado. Gosto disto. Gosto de acreditar no que penso, no que faço. Às vezes me confundo com meus sonhos, porque acredito neles. E sonho, e vou, e levanto-me ainda mais forte cada vez que tropeço. Porque faço questão de dar valor à vida que em junho de sessenta e oito Deus resolveu me conceder. A luz me recebeu, eu não posso ser o escuro.

Gosto de iluminar. Tem gente que gosta do meu sorriso. Tenho infinitos dentes, que se atropelam, se entortam, mas que estão lá, fiéis, a adornarem-me a boca, pra eu poder ser feliz. Não gosto de sorrisos contidos. Gosto dos meus dentes, assim mesmo, porque gosto de rir. Eu rio de tudo, graças a Deus! E gosto de ver gente rindo ao meu lado, gente rindo por mim, de mim, para mim. Não tolero cara feia, rosto sisudo, mau humor. Isto, a vida nos dá de graça (assim, com essa redundância, mesmo). O mundo – este que não é de Deus – ocupa-se disto: de nos mostrar as caras feias das gentes de todos os dias. Repreendo. Entrego nas mãos do meu Senhor. Que me venha a alegria! Amo viver!

Tudo o que perco, fica fora da minha vida, porque creio num Deus que me define o joio antes que ele cresça demais a minha volta. Simples assim: “Saiu? Oh, Glória! Vá com Deus!” Foi assim com meus tão poucos relacionamentos afetivos, com alguns amiguinhos de infância... Não mudou nada.

Um dia novo na janela rompe meus olhos. A janela do meu quarto ainda está quebrada, e eu não vou consertar. Porque amo sentir o Sol atravessando meus cílios! Ele brinca comigo, eu reclamo um pouco, mas logo, logo estou de pé a abrir-lhe a janela inteira para que entre em meu quarto e invada tudo! Aí, ele fica todo bobo e compõe minha casa: é a alegria da vida, a energia da vida, a mola mestra! Sem ele nada há, eu já falei muitas vezes sobre meu amor pelo astro-rei!

Como Sol vivo a vida: saio feliz de casa para trabalhar, observo a rua, os cachorros, os vizinhos, as amendoeiras, os pescadores, todos com a mesma importância, e é quase um louvor! Um ritual de respeito à vida que cada um ganhou pra si, com o mesmo amor de Deus.

Respeito a vida. Entrego-me. Cuido dos limites para que ninguém atravesse a minha, tampouco eu a de ninguém. Parei o carro, dia desses, para que uma cobra enorme atravessasse a rua. Não tenho o menor direito sobre a vida daquele animal que, sem sombra de dúvida, é mais belo que eu: uma cobra linda, enorme, imponente, que em nada atrapalhou o meu caminho. Só quis seguir o seu.

Não faço encomendas. Vivo o que vier. E vivo plenamente, faço questão! Sofro todas as consequências, mas assumo todos os meus atos. Sou “do bem”, não desejo nem faço mal a ninguém. Não falo mentiras, não iludo pessoas, não prometo o que não posso cumprir. E desconheço o motivo pelo qual certas pessoas alimentam tanto ódio, tanto sentimento ruim em relação à vida que optei viver. Ela é minha, de mais ninguém. Responderei por tudo o que fizer de errado por aqui, e sei bem disto. Só não quero ser um ensaio de alguém que não viveu. Porque quem ensaia não vive. Para isto, vou tentando, vou vivendo. Sem encomendas.

A construção nunca acaba...

Seja o que Deus quiser!

domingo, 2 de dezembro de 2012

Tarde demais

(Eis uma história que muita gente já conhece: a de uma mulher que se cansa de um homem, e decide viver.)


Ele pediu ao garçom mais duas garrafas daquele vinho branco. Quis levá-la consigo, quando o bar fechou. Já não sabia que horas eram. Deixou sobre a mesa algumas notas, uma gorjeta boa, e saiu por último, quando ouviu o barulho de portas de ferro arriando...

Estava tonto, perdido, e a quantidade de álcool ingerida não era a única responsável pelo estrago: seu mal-estar acontecera desde a hora em que percebera que ela não era mais sua. Camila cansou-se. E decidiu aceitar o convite da vida para vivê-la.

Seus passos encontraram o carro. E a mão, apesar de trêmula, encontrou a ignição. Deu partida, acelerou pouco (ele sabia do seu estado) e experimentando um caminho diferente conseguiu, depois de alguns minutos e voltas desnecessárias, chegar ao local que queria: o alto do morro, de onde via a casa dela. Parou, desceu do carro, sentou-se no capô e procurou, com os olhos semicerrados, as luzes brancas da varanda da casa amarela da rua defronte à praia. E tão logo as avistou, chorou.

Das quatro lâmpadas, apenas uma acesa. André olhou o relógio: pela hora, Camila dormia. Sentiu saudades do seu perfume, o mesmo de sempre, de há oito anos. O mesmo que sentia quando ela passava por ele e ainda nem sabia do amor que lhe incomodava o peito. Aquele perfume que, tempos depois, impregnado em sua camisa, transportava para a sua casa as lembranças boas dos momentos que passavam juntos. Aquele perfume que jamais deixaria o seu olfato e que, justamente naquela noite e naquele momento, era possível sentir, mesmo a uns bons quilômetros de distância.

Uma única lâmpada acesa. Mas o suficiente para que o desejo de invadir aquela casa alimentasse seus pensamentos. E André via Camila dormir entre uma e outra sacudida das cortinas de seu quarto.

Sua vontade de estar lá ao lado dela o fez pegar outra garrafa do vinho. Olha o rótulo: era o único que Camila gostava. Branco. Somente daquela marca. Ela tinha umas manias muito estranhas. Só daquele vinho. Não experimentava qualquer outro. Brigaram muito por conta das manias de Camila. E agora, tudo o que ele queria era estar ao lado dela. Com duas garrafas do seu vinho preferido, não havia mais nada a fazer: Camila lhe disse adeus. Ela se cansou.

Durante os oito anos em que estiveram juntos, ela se anulou. Desde que se conheceram, desde que André lhe confessou estar apaixonado, Camila lutou por manter acesa uma chama que teimava em apagar todas as vezes que as atitudes estúpidas do seu amado a magoavam: um ciúme doentio quando estavam em companhia de amigos, um descuido com as datas que marcavam coisas simples como o dia do encontro, do primeiro beijo, da primeira ida ao cinema, o primeiro mês de namoro... E, enquanto o tempo ia passando, a monotonia foi tomando espaço naquela casa onde os dois haviam vivido tanto amor! Por muitas e muitas vezes Camila tentou reverter a situação, sem conseguir bons resultados.

André acostumou-se a ter Camila. Não viu que o tempo passou, não viu quando ela sofria. Não viu que ela estava cansada. Não viu nada. Até que naquele dia ouviu o que não imaginava: um adeus de cinco letras e decisão tomada. Fechou os olhos depois que se deitou sobre o capô e o filme da despedida correu-lhe na memória. Ela lhe disse que chegara a hora de cada um seguir com sua vida, sem o outro. Ele riu. Camila de vez em quando vinha com essas “histórias”... Ela o deixou rindo na mesa do barzinho e se levantou. Ele olhou para o relógio contando os segundos para que ela retornasse, como aconteceu outras vezes... Está no capô do carro agora, no alto do morro, olhando para a casa dela. Camila não voltou. Desligou o celular. Não vai voltar atrás, desta vez.

Ele troca a garrafa vazia pela cheia. Desta vez, não bebe. Relembra as palavras daquela que foi a única mulher a quem amou, e que lhe amou verdadeiramente. Lembra da roupa que ela vestia, e só então percebe que era uma roupa diferente – mais bonita! – e que ele nem comentou quando ela chegou. Dá-se conta, também, de que os cabelos dela desta vez estavam soltos, coisa que muito pouco fazia. Camila tinha cabelos lindos, que enfeitavam ainda mais seu rosto, seu sorriso! Como pôde ter sido tão canalha a ponto de nem fazer-lhe um elogio?!

Camila – e aquela beleza e inteligência toda – era de André. Foi dele por oito anos. Linda, educada, dinâmica, batalhadora, dona de qualidades que a faziam ser desejada por qualquer homem que dela se aproximasse. Totalmente fora dos parâmetros indicados hoje para uma mulher, Camila tinha quilos de sobra e, no entanto, era fabulosa! Já tinha mais de quarenta anos, e era fabulosa! Porque era extremamente inteligente e romântica, o que a tornava uma mulher altamente sedutora. Camila era de André, de mais ninguém.

A garrafa, a última, ainda cheia, foi deixada à beira da rua, no alto do morro. André chorou lá suas dores, seu arrependimento. Perdeu a mulher amada. Perdeu aos poucos, desde que a encontrou. Doeu, saber disto. Camila lhe disse todas as verdades, num português tão correto que foi impossível André não entender. Olhando dentro dos seus olhos ele viu que aquela não seria só mais uma briga.

De dentro do carro, descendo o morro, dá adeus à casa dela. Não sabe que destino tomar, deixa o carro guiá-lo.

Acordou com dor no corpo, adormeceu no carro, mesmo. Espantou uns mosquitos e olhou em volta para ver onde estava. O movimento da cabeça doeu-lhe o corpo todo: efeito do vinho! Espantado, percebeu que estava em frente à casa amarela, a casa de Camila. Abriu a porta, saiu do carro, esticou-se, estalando os joelhos. Olhou a garagem e não viu o carro dela.

Uma Camila refeita e decidida saiu pela manhã para trabalhar. Retirando o carro da garagem, avistou André dormindo dentro do carro dele. Nada fez. Continuou seu trajeto, deixando-o lá, arremedo de homem arrependido, morto.

Ela está feliz, orgulhosa de si mesma: resistiu, desta vez, e é só o começo da vida nova que prometera diante do espelho.

Ele olha o vazio da garagem. Perdeu Camila. Deixa a cópia da chave na caixa do correio, abismado. Ao contrário dela, está triste e envergonhado. Ajeita o retrovisor, mas evita olhar o espelho. E ainda que o fizesse, não veria imagem alguma. André já não é mais ninguém, enquanto Camila renasce.