domingo, 25 de novembro de 2012

Desabafo

(Um único desejo, com este texto: servir de exemplo, desta vez para o que não se deve fazer.)


Cresci ouvindo minha mãe dizer que Deus vê tudo o que eu faço. Eu acreditei nisto, é claro. As mães são sempre convincentes! E acreditei nisto até Antônio nascer. Aí, entendi a intenção da minha mãe com esta frase. Às vezes me bate um desespero, também, ao criar Antônio, um medo de que ele me esconda alguma coisa, daí lembro-me da frase que ouvi por tantas vezes... Eu nem fazia tanta coisa assim, que merecesse aquela atenção toda especial de Deus. Mas minha mãe optou por prevenir, a ter que remediar.

Antônio ainda não conhece o jargão. Eu tenho medo de apresentar para ele. Mas a tentação é grande! Quando a gente cresce achando que Deus vê tudo o que a gente faz, as coisas ficam bem mais complicadas. Eu não quero complicar a vida de Antônio. Mas a minha mãe está perdoada. Mães fazem tudo sempre pensando no melhor para os seus filhos, não foi diferente com Dona Vanda...

Eu não sei se Deus vê, mesmo, tudo o que a gente faz, mas sei que quando cometo erros um coração apertado me condena. E hoje estou condenada: tomei uma atitude deplorável, indigna dos olhos de Deus. Eu julguei alguém, mais uma vez.

Há uns meses escrevi sobre o perdão. Contei a história de alguém que perdoou, enquanto eu julgava. Sim, já lá eu confessava este pecado que me ronda, me tenta, me corrompe, me destrói. Tenho esse monstro dentro de mim, não consigo expulsá-lo. E vim aqui publicar meu pior pecado, para ver se consigo livrar-me dele.

Hoje eu atravessei uma pessoa com meus pensamentos e sentimentos em relação às suas atitudes. Não me contive, fui levada pelas forças daquilo que há de pior em mim e desabafei achando que, revelando meu juízo acerca do comportamento dela, eu aliviaria meu coração. Qual o quê!

Graças a Deus, eu obtive resposta ao desabafo. E Deus me disse que eu não sou ninguém para pretender julgar os outros. Um Deus decepcionado comigo falou profundamente no meu coração com fonte vermelha: “Por que você não cuida da sua vida?

A história é esta, mesmo, como estava escrito lá na minha página do facebook: “Somos ótimos para detectar as falhas dos outros, mas míopes para enxergar as nossas”. É, Deus falou-me também por lá.

Destruímos as pessoas com palavras. Se os homens prestassem maior atenção nisto, acho que a gente nem precisaria de armas para matar, para morrer... Às vezes nosso “bom dia!” fica sem resposta, e aquilo já nos causa estranheza, não é verdade? Às vezes nos falta o complemento do pedido, o “por favor!”... E, tendo o pedido atendido, fica-nos faltando ouvir o “muito obrigado!”, de volta... Basta isto para magoar. Agora imagine acordar pela manhã e receber “de presente” as opiniões que seu colega tem a seu respeito. Obviamente, opiniões nada boas de se saber, sobretudo numa manhã de domingo, quando tudo o que se quer fazer é descansar...

Deus vê tudo o que eu faço, porque minha mãe me disse isto há mais de trinta anos, e Ele provavelmente ouviu. Agora, faz Sua parte, porque as mães não podem ser tomadas como mentirosas, principalmente por seus filhos. Então, faz-me companhia: me inspira, me aconselha, me protege, me abençoa, opera milagres na minha vida, cura meus amigos, aumenta minha família, me concede Antônio. E eu, pequena, mesquinha, desobediente, torpe, indecente, retribuo tantas bênçãos com meus julgamentos preconceituosos a respeito das pessoas.

Perdão, Senhor. Peço perdão, na mesma medida, à pessoa que magoei hoje.

Quantos milhares de anos terão que passar para que as palavras de um Cristo que guardou a pedra penetrem no coração do homem? Meu coração igualmente sólido rejeita pessoas, num juízo tolo de quem acha que tem tal direito. Quantos anos viverei ainda para aprender a guardar as pedras no bolso?

Hoje o texto é um desabafo. Como foi um desabafo o ensaio de besteiras que ajuntei nesta tela pela manhã e encaminhei por e-mail, dando por garantido o meu ingresso para o inferno.

Eu não quero ir para o inferno. Quero conhecer o céu. E foi por isto que minha mãe me contou que Deus vê tudo o que faço. Porque se eu viver minha vida pensando nesta verdade dela, serei uma pessoa melhor ou, pelo menos, estarei sempre tentando ser. Minha mãe só quis que sua filha ganhasse o céu quando chegasse sua hora. Mães querem o céu para seus filhos. Eu quero o céu para Antônio, e talvez não resista a contar a ele a verdade da minha mãe. Por ora vou permitindo que tenha lá os seus segredos, porque por enquanto ele os divide comigo...

Hoje aprendi a ensinar a Antônio a não julgar as pessoas. A gente comete erros na vida para isto mesmo, eu creio. Para sentir na pele o incômodo , e evitar que mais alguém o faça.

Sei bem como é esta dor. Senti, hoje. E arrependo-me de ter começado o dia de forma tão pavorosa. Há quem diga que quando abrimos os olhos pela manhã uma batalha entre o bem e o mal se inicia e é imprescindível que digamos sim a Deus, para que o inimigo se afaste. Devo ter pulado esta parte, e aberto brechas para os maus pensamentos. Cedi, fraquejei e, assim, saí pela tela do computador humilhando o primeiro que encontrei na minha frente.

De tudo o que restou de mim por hoje, um conforto: acho que Deus gosta verdadeiramente de mim. Fez com que eu refletisse sobre o que fiz, fez com que eu me arrependesse, fez com que eu pedisse perdão a quem machuquei.

Nunca mais serei a mesma. E, se este texto de hoje puder evitar que alguém cometa este pecado sem tamanho que é falar mal da vida alheia, ficarei feliz por ter servido de exemplo para o que não se pode fazer.

É isto, menina. Esteja certa de que se eu pudesse, faria com que o dia de hoje fosse apagado de nossa memória...

sábado, 24 de novembro de 2012

O Deus de todo mundo – um testemunho.

(Desta vez, uma oração. E vocês a farão comigo. Deus vive, reina, opera milagres, cura... E está no meio de nós! E Ele me pediu para deixar claro que não estou falando de religião, mas de um Deus de todo mundo...)



Passo pouco por aquele caminho. Vejo pouco aquela casa. A da foto. Mas hoje minha intenção foi justamente publicar a foto aqui. Para que a emoção de vê-la tome minha alma de tal maneira que tudo o que eu consiga escrever aqui seja emoção.

Eu pensei em começar por várias partes, este texto de hoje. Desobedeci ao coração, preguiçosa que estava de me levantar da cama às cinco da manhã, hora em que ele me acordou, pedindo-me para vir até aqui. Virei de lado, ajeitei o travesseiro, fiz um carinho na testa de Antônio e “esqueci”. O cansaço do corpo venceu a batalha, e novos sonhos tomaram minha mente: “depois escrevo”...

Mas os sonhos foram todos os mesmos: várias maneiras de eu escrever o texto. Não adianta eu negar. A inspiração não é minha, é de Deus. E Ele hoje esteve ansioso, porque sabe que vou escrever para Ele, sobre Ele, por Ele, em gratidão a Ele... Daí a Sua pressa. Às vezes eu e Deus temos esta intimidade, que pode parecer estranha a você...

Agora que estou certa do caminho a tomar, começarei a contar uma linda história de Amor de Deus por nós.

A casa velha, de madeiras brancas e azuis acolheu um grupo de amigas que se formou em 2000. Ainda hoje posso fechar os olhos e relembrar meus passos pelos cômodos da Secretaria Municipal de Educação e Cultura de Iguaba Grande (sim, era lá!), com riqueza de detalhes, até chegar ao que ficava no final do corredor. Uma mesa grande, de madeira com fórmica amarela, cadeiras revestidas do mesmo material e, sentadas para uma reunião, as pessoas que mudariam minha vida por completo: eu estava chegando para completar a equipe de Inspeção Escolar de Iguaba Grande, que contava com Nilza Alberto, Cláudia Lacerda e Herminia Simões. Dias depois, apresentadas à Madalena, o amor ficou estabelecido naquela amizade que ninguém explica, mas que se deu no primeiro dia do nosso encontro.

Até que ficamos pouco tempo juntas, as cinco. Tendo chegado em ano de final de gestão, os nossos destinos tomaram rumos diferentes. Sim, já era plano de Deus, e é aí que a gente erra quando reclama das separações que vão acontecendo ao longo do nosso caminho. Errados estamos quando nos queixamos, ao invés de agradecer. Deus nos separou, mas antes não havia nos unido? Não nos abençoou com seu Amor infinito? Não nos deixou com a certeza de que aquela amizade seria para sempre? Já não mais Lhe restando dúvidas, deu-nos os caminhos a trilhar, sabedor de que em nossos corações levaríamos, onde quer que fôssemos, cada uma, em lugar especial.

Hoje, olhando para trás vejo que doze anos se passaram. Na metade deste tempo, dois fatos marcantes, inesquecíveis: Madalena nos deixou, e Herminia adoeceu.

Madalena foi-se, sem nos pedir permissão. Presença arrebatada, de um dia para o outro, sem direito à despedida, sem direito a pedirmos a Deus por sua vida. Ele a levou, certo de que se viesse Ele mesmo à terra para pedir-nos para levá-la diríamos “não”, com todo o egoísmo existente no coração daquele que ama o outro. “Não, não a leve, Senhor, não a leve jamais, não a deixe morrer nunca!”, diríamos loucas, humanas, sem querer enxergar o óbvio: todo mundo vai um dia. Eu sempre digo que Deus nos empresta as pessoas, e vem buscar quando quer. Assim, Madá deixou o grupo, o nosso grupo, e foi ter lá com o Senhor Deus, foi contar do tão curto período de tempo que passou aqui...

Enquanto Antônio nascia e Madalena nos deixava, Herminia adoeceu, seriamente. Esta história já narrei por aqui, num texto que leva o nome dela.

Mas eu vim até aqui para falar de alegria, não de tristeza... Deus me quer testemunho hoje, não tem jeito, Ele não vai me dar sossego se eu não disser a você que Ele existe, vive e reina, e é o Senhor. Opera milagres por aqui, como na Terra Santa...

Temi, sofri, chorei por Herminia. Deus é bom, piedoso, e sabe que sou humana. Nas minhas orações, pedi infinitas vezes por ela. Mas por muitas vezes me deixei abater pelo desânimo, pela descrença...

Até que um dia – há uns três anos atrás – Deus soprou nos meus ouvidos aquilo que se tornou um momento inesquecível: vinte e duas pessoas diante de uma mesa, com seus olhos fechados, entregaram a Ele um sacrifício a ser cumprido em sete dias, em agradecimento à cura de Herminia.

Em nossa oração conjunta – com direito à presença do próprio Deus! – pedimos pela cura de Herminia, cientes que estávamos de que a obra do Pai seria completa, não nos limitamos a pedir somente a sua melhora.

Aqui é chegada a hora de minha confissão. Eis o que Deus quer que eu registre: que por muitas vezes apressei-Lhe, cobrando a resposta ao meu sacrifício... Que todas as vezes que estive com Herminia perguntei intimamente a Deus se havia se esquecido dos pedidos à mesa, aquele dia... Que por outras tantas imaginei que Ele não nos atenderia. Culpei-me, achando que não seria a pessoa certa a liderar a oração, cheia de pecados que sou.

Pois bem, Deus bateu em minha cara, ontem. Com as mãos mais macias deste mundo, bateu em mim com um papel pequeno que, chegando-me pelas mãos de Herminia, me dizia que ela estava de alta médica, e que muito brevemente retornaria ao trabalho.

Herminia está curada.

Não foi curada naquela tarde após o almoço. Não foi curada durante a semana em que fiz o sacrifício, do qual hoje até me envergonho, diante da equivalência... Não foi curada no meu tempo. É de Deus o tempo. Ele cura no tempo dEle.

Ainda mais ousado – absurdamente ousado, eu diria, agora! – Deus me inspira a escrever também isto:

Certamente, a opção pela cura de Herminia não adveio somente daquela pequena reunião de vinte e duas pessoas, num determinado dia, num determinado almoço. O propósito de Deus hoje é dizer a você que Ele vive, reina e opera milagres: Deus cura! E vou escrever mais: naquela mesa, naquele dia, cada um pensou num Deus diferente... Ninguém selecionou aquele grupo de amigos pela opção religiosa de cada um. Quando os olhos se fecharam, várias formas de Deus foram visualizadas, e para impressões diferentes de Deus o pedido foi feito. Ali esteve presente, o Deus de todo mundo...

Esse Deus ouviu-nos o coração, e é isto o que Ele está me dizendo agora. E, se curou Herminia em troca ou não do meu ou do seu sacrifício, importa que pensemos seriamente no que nos dispusemos a fazer àquela época, porque aquilo agradou a Deus. Não especificamente o que fizemos, mas a fé que nos levou a fazê-lo.

Numa época em que as pessoas estão defendendo seus princípios religiosos derramando o sangue do seu próximo no chão, Deus quis vir até aqui para dizer que nossas ações estão sendo observadas, e que é por elas que nosso julgamento se dará. A cura não é só de Herminia. Hoje acordei diferente, e tenho certeza de que as pessoas que aos poucos vão sabendo de Herminia, acordarão diferentes também. Porque também estão sendo curadas. Cada um, em sua intimidade, saberá do quê.

Quando Deus me trouxe pra cá, e me apresentou aquela casinha de madeira, foi com a intenção de que eu vivesse o que estou vivendo hoje: o testemunho daquilo que dizemos, que cantamos por aí, mas que nem sempre nos damos conta, verdadeiramente: que Ele vive, reina, cura e, o que é mais emocionante: está no meio de nós!

Eis uma linda história de Amor do seu Deus com você. Que tal agradecer?

quarta-feira, 21 de novembro de 2012

O Rio, por mim

(Uma viagem ao Rio de Janeiro narrada por uma pessoa que vê a vida passar pela janela do carro...)


Estive no Rio de Janeiro, ontem.

É um passeio lindo ir ao Rio de Janeiro! Desta vez, então, saí de casa munida da minha Sony e do meu precioso bloquinho de anotações, porque diante de tudo o que vi, e pela maneira como enxergo as coisas, minha memória – nada digital! – falharia, certamente. Aconcheguei-me no banco do carona, saquei da bolsa minhas armas companheiras e comecei a rascunhar e a fotografar minhas impressões... Os rascunhos estão, agora, ao meu lado. Vou tentar “descobrir” o que registrei em letras tão trêmulas quanto o coração de quem as escreveu: emoção.

Adoro a mistura de presente e passado que compõe o Rio!

Atravessando a Ponte Rio-Niterói, olhando para os lados, vi os navios desbravando as águas... Os navios da Marinha, os petroleiros, as embarcações de grande porte que rompem as fronteiras... Há muitos anos atrás uma aventura como essas deu-nos origem: Cabral “descobrira” o Brasil! Olhando para o alto, vi o céu sendo cortado por aviões maravilhosos, reluzentes! Estamos diante, abaixo, em frente, atrás, acima da inteligência humana, dom maravilhoso de Deus! Não há limites para o que o homem é capaz de criar! Todas as máquinas “top de linha” dividem o cenário-margem da Ponte com a história do Brasil: prédios seculares mantém-se erguidos nas ilhotas, lembrando-nos de que um dias fomos reis e rainhas...

Estamos diante da inteligência nada contemporânea, porém concedida por Deus, na mesma medida, a Santos Dumont, a Jouffroy, ao meu filho: no carro, Antônio distrai-se explorando as possibilidades do seu Nintendo 3DS. Tira fotos, modifica, desenha sobre o que fotografou, joga novo jogo, ouve sons diferentes, experimenta de tudo numa maquininha que não mede mais do que vinte centímetros... No painel, um aparelho de CD – fruto da inteligência de um outro homem qualquer – convidava dois velhos (eu e o pai de Antônio) a deliciarem-se ouvindo música, coisa que nos foi impossível fazer durante muito tempo, estagnados que ficamos diante do “troço”: não soubemos como ligá-lo, tamanha era dificuldade de mexer na engenhoca!

Era a história narrando-se por si mesma, aquele passeio que superficialmente parecia geográfico. Por alguns instantes aqueles navios transformaram-se em caravelas, enquanto eu pensava no homem negro que construiu as ruas do Rio por onde nós três iríamos passar em breve. Deixei meus pensamentos caminharem, e fiquei pensando na escolha da cor de pele: branco manda, preto trabalha. E por ter nascido preto trabalhou tanto aquele homem, sofreu tanto, morreu tanto e, por mais que tenha feito o chão por onde pisaram todos os brancos que vieram na sequência, tudo o que conseguiu foi deixar o legado de dor, perseguição e discriminação a toda sua geração futura. Neta de negro, sei bem o que é isto.

A inteligência de Karl Benz não me deixa ver nada direito. Quero anotar tudo o que vejo, mas vejo pouco a cento e trinta quilômetros de velocidade por hora. A Ponte não para: carros estrondam as buzinas se se reduz a velocidade. As pessoas têm pressa. Ônibus transportam pretos e brancos cansados do trabalho, confundindo minha cabeça em relação à história... Hoje somos iguais. Somos iguais? É possível que algum branco, mesmo dependurado num daqueles ônibus apinhados de gente multicolor, julgue-se uma sardinha enlatada de melhor qualidade, só por não ser uma sardinha negra...

Uma aula de história, à minha maneira, confesso. Mas eu só falava comigo mesma, Antônio e o pai dele não souberam das minhas maluquices, embora de vez em quando olhassem, de canto de olho, para o papel onde eu rabiscava palavras soltas...

Terminada a passagem pela Ponte, no Cemitério do Caju, aquela beleza do que não há mais: a inteligência do homem que arquiteta túmulos que guardam os mortos, e cedem espaço para as árvores. Um amarelo amarronzado mistura-se com os diferentes tons de verde da natureza... Espaço enorme, enorme! E a miscelânea vida-morte-vida aguça meus sentidos. É lindo, aquilo!

Descendo a caminho do Centro, fico diante daqueles prédios maravilhosos, que contam a vida-morte-vida dos escravos que não tiveram a sorte de se perpetuarem no Caju e ficaram perdidos, mortos entre as próprias pedras que carregaram... Os prédios distinguem-se somente pela conservação: uns restaurados, tão bonitos que dá vontade de morar neles. Outros completamente pixados, depredados, abandonados. Não consigo entender... Aquelas construções grandiosas, destinadas às famílias que, a despeito de terem a mesma medida que qualquer ser humano, criam-se maiores, a ponto de precisarem de portões de mais de seis metros de altura, pés-direitos semelhantes, portas e janelas de tamanhos inacreditáveis! E a inteligência – a misericórdia de Deus – fazendo-se presente na criatividade do artista e nos músculos de quem fundia o ferro, materializando a ideia. As construções esplendorosas servem de abrigo aos mendigos, restos dos escravos que as ergueram. Passando por elas ontem, tudo o que vi foram cobertores sujos, roupas penduradas em cordas, garrafas de cerveja e muito papelão em locais onde se misturavam adultos, crianças, ratos e cachorros...

Tendo passado pelo “Templo da Felicidade” do que é humano nesta Terra, assustei-me ao ver a quantidade de homens – desta vez não pretos, porém da mesma forma escravos – que trabalhavam na reforma do “Sambódromo”. Acordei: o carnaval está chegando! E tudo o que importa, agora, aos homens que elegemos gestores da cidade e do país, é servir o carnaval àqueles que podem alimentar-se dele. Ali brancos assistirão ao rebolar dos pretos, desejarão os pretos, as pretas, e o inferno estará decretado: quatro dias de folia, onde ninguém é de ninguém...

Até que me vi diante de uma inteligência humana que chega a incomodar-me todas as vezes que a experimento: os túneis! Acima deles, as favelas. Quem sustenta quem? Como pode ter o homem conseguido tecer tal maravilha, objetivando atravessar as montanhas, aproximar as pessoas? Quilômetros de escuridão até que se chega à luz do outro lado, luz de outro bairro, luz de outro mundo... Há quanto tempo estão lá, meu Deus! Que engenharia, que arquitetura, que inteligência! Que cenário bonito de ver, aqueles túneis com suas casinhas coloridas sobrepostas, ilustrando a cena que pintor nenhum imaginaria compor! É lindo, lindo! Fantasia para Antônio – a de passar naquele breu – e esplendor para mim: fantástica invenção humana, a dos túneis!

O passeio foi todo monitorado por um Cristo que abençoa a todos: pretos, brancos, amarelos, verdes, azuis... De braços abertos, é surpreendentemente obra de um homem, também. Construído numa época que multiplica os nossos cálculos quando pensamos nas dificuldades de acontecer. Mas aconteceu, porque era intenção de Deus. E se “Deus quer, o homem sonha, a obra nasce”, como diz Pessoa. Está lá, naquele caminho de jaqueiras inexplicáveis, a deixar Antônio de boca aberta e seus pais, com água na boca...

Antônio adormeceu, na viagem de volta. Depois de algum tempo, conseguimos colocar para funcionar o aparelho de CD. Despedimo-nos de um Rio de Janeiro que vi pelas janelas do carro. Deixei lá uns pivetes, uns mendigos e, paradoxalmente, uns velhinhos e umas crianças nas calçadas de Copacabana... Ficaram por lá uns prédios medonhos e, paradoxalmente, uns prédios maravilhosos! Uma gente extremamente pobre, e uma outra extremamente rica. Ficou o velho e o novo, o doente e o são, o passado e o futuro. Ficou o Rio de Janeiro, sob os braços do Cristo Redentor, aguardando a nossa volta.

sexta-feira, 16 de novembro de 2012

Uma ida ao supermercado

(Eu desci a rua para comprar pães. E tudo o que vi lá fora foi poesia!)


Eu desci a rua para ir ao supermercado. Desci bem cedo. Nestes dias de feriadão, é bom garantir a hibernação: a cidade é deles, dos turistas, tenho o resto dos dias para curti-la...
Passei pela casa onde fica o Malhadinho e não o vi. Com certeza, está dormindo um soninho gostoso, ainda. Eu é que me adiantei.
Quando cheguei em frente à lagoa, o presente de Deus: água parada, que mais parecia uma moeda gigante, prateada, reluzente. O céu acinzentado dava-lhe maior beleza! E o peso das nuvens que anunciavam a chuva trazia tristeza para o olhar da família que estacionava o carro com destino à praia, mas enchia de alegria o coração de dois pescadores que, num barquinho simples, simples, de madeira pintada de azul, jogavam suas redes numa cena que merecia uma fotografia!...
Eu não desci com a digital. Tenho que me acostumar a fazê-lo. Perdi muitas fotos! Na ânsia de não pegar fila no supermercado levei o básico – chaves, carteira, celular – e deixei o essencial em casa: minha máquina fotográfica.
Ela me completa. Minha Sony. Velhinha, ultrapassada, congela todas as imagens que gosto de ver. É minha parceira. Às vezes, perde-se, entre mim e Antônio. Eu, tirando as mil fotos dele, e ele, agora, tirando mil de mim...
Aqueles pescadores se eternizariam na minha caixa de fotografias, e nem sabem! Sim, eu revelo as fotos! Faço isto uma vez por mês, e é sagrado. Porque para além de capturar as imagens que meus olhos veem, gosto da foto impressa, do papel em minhas mãos... Não me deixei levar pela praticidade do arquivamento em CD ou DVD, ou pasta no PC: revelo e guardo, faço murais. As fotografias são uma alegria na minha vida! E hoje já teria aqui, prontos para serem “revelados”, os moços do barquinho azul com listras brancas, o movimento de lançar as redes, o movimento de trazer pra si o alimento e o sustento: a alegria!
Quando os vi, lembrei-me de Antônio. Sempre que passamos cedo pela lagoa e observamos os pescadores, canto para ele a música de Dorival Caymmi: “Minha jangada vai sair pro mar/Vou trabalhar meu bem querer/Se Deus quiser quando eu chegar do mar/Um peixe bom eu vou trazer/Meus companheiros também vão voltar/E a Deus do céu vamos agradecer...” Ele gosta, fica emocionado. Eu também. Acho que nunca cheguei ao fim da música sem ter a voz embargada...
Segui caminho. Precisava chegar ao mercado cedo, antes que lotasse! Quem mora em cidade que recebe turistas num feriado como este sabe bem o que são as filas dos mercados nesta época!
Fiz as compras – garanti uns pães fresquinhos! – e iniciei a “viagem” de volta para casa. Um caminho de pouco mais que um quilômetro, mas que, dependendo do meu estado de inspiração, é suficiente para me render um texto de pensamentos...
Na volta, vi movimento no Cemitério Municipal. Eu moro perto. E impressionou-me a ausência de carros por lá. Sabe o que eu vi? Um monte de bicicletas estacionadas! Eram mais de vinte, num colorido de trazer beleza à cena num local onde o que se sente é tristeza e dor. Um colorido humilde, que se fazia presente entre as cores descascadas das bicicletas, suas ferrugens e seus embrulhos... Ali vi gente muito modesta, com casacos que revelavam terem passado a madrugada aquecendo corpos frágeis... Esta noite foi de chuva, deve ter sido difícil ficar por ali...
Novamente apalpei o banco do carona do carro à procura da minha digital, inutilmente. Ela fica sempre ali, naquele lugar estratégico, de onde só retiro para eternizar os cenários que componho. Mas eu havia deixado a máquina em casa... Tudo o que eu queria era uma foto que perpetuasse aquilo que vi no Cemitério: uma pobreza recheada de uma riqueza sem fim: lenços coloridos nas cabeças das mulheres, casacos contrastando com pés descalços, chapéus de palha inocentes nas cabeças dos homens e muitas, muitas bicicletas. Nenhum carro. E foi a primeira vez que vi isto por lá.
Entrei na minha rua, e quando passei pelo valão (é o nome que damos por aqui, não há outro) uma garça branca maravilhosa aterrissava. Pousou elegantemente na margem e procurou peixinhos para se alimentar. Eu me lembrei do pássaro da Arca de Noé. Depois de tantos dias e noites de chuva, o assento daquela garça sinalizava que as coisas estavam melhorando. Ela era linda! Imponente, desconhecia o terreno em que pisava. Não lhe era importante saber onde estava, era majestosa por si mesma, onde quer que estivesse!
Subi a rua – as montanhas de Antônio! – e entrei em casa. Fui recebida pelo par de rolinhas que entenderam o sinal da garça e deixaram seus ninhos. Escrevendo agora, ouço outros sons, dos diferentes passarinhos que habitam nas minhas amendoeiras... E um solzinho atrevido que brinca com algumas gotas de chuva assanhadas, me traz a certeza de que daqui a alguns minutos verei completa a obra de Deus, já que Ele me fez pensar na Arca: Haverá um arco-íris lá fora, ratificando a promessa da Sua aliança comigo. E estarei no quintal, para recebê-lo e fotografá-lo. E suas sete cores inimitáveis trarão conforto ao Malhadinho, àquela família que pretendia banhar-se na lagoa, àqueles pescadores que garantiram o seu dia de hoje, às famílias que choram pelo ente falecido, à garça, às rolinhas, a mim, e a você que me lê agora. Deus é fiel. Bom dia!

quinta-feira, 15 de novembro de 2012

Saber amar


(Honrada e emocionada, apresento meu 100º texto. Uau! E ofereço a vocês, meus parceiros, meus amigos de verdade...)




Hoje eu descobri que sou amada.

A história foi contada da forma como aconteceu, eu só sei ser assim. E por só saber ser assim, não fiz muitas amizades pelo meu estreito caminho de quarenta e quatro anos... Muitas decepções marcaram presença nele. Se olhar direitinho, com os olhos do coração, se ouvir direitinho com os ouvidos da minha alma, posso ver os rastros, ouvir os passos deste mundo de gente que passou pela minha vida só por passar...
Hoje voltei para casa preocupada em chegar bem. Porque não prestei atenção em absolutamente nenhuma parte do meu caminho. Vim refazendo minha história, partindo do parágrafo onde terminei de contar a história dela...
Foi quando cheguei a Iguaba Grande que percebi os amigos que havia deixado em São Gonçalo. É verdade, foi preciso que eu me distanciasse. Poucos vieram comigo. Trouxe alguns no coração, mas a maioria deles se afastou dele, depois que se foi do meu pensamento. E, estando aqui há doze anos, conto nos dedos os que ficaram comigo. Hoje posso dizer que tive até umas surpresas boas: gente que eu pensei que me esqueceria, descobri que me amava de verdade.
Meu ex-marido escreveu uma vez, num folheto de CD, que eu “era um romeiro seguindo meus passos de deusa”, e que “meus rastros cheiravam a rosas”... Decerto, escreveu isto enquanto era meu marido. Mas apesar de ele ter ido embora da minha vida, gostei daquilo que li, e de vez em quando lembro do papel, para levantar a autoestima...
As amizades que fiz por lá, solidificaram-se aqui, em Iguaba. Estou distante das pessoas, algumas nem vi mais e, no entanto, jamais as senti tão próximas. Sinto-me verdadeiramente pronta para acolher esses amigos se eles precisarem de mim, como me sinto pronta para ir-lhes ao encontro, num dia de saudade ou desespero... Há braços abertos, aqui e lá, prontos para o enlace...
Sob julgamentos, comecei minha coleção de amigos neste meu novo endereço. Tarefa difícil, quando se chega a uma cidade onde não se conhece ninguém. Trabalhar com gente estranha... Sim, foram muitos os julgamentos, não é difícil imaginar: sozinha, com trinta e um anos, separada, sem filhos, com toda a família em São Gonçalo... Mudança radical de vida! E sempre assusta, a pessoa que muda. Todo mundo está acostumado com o que está estagnado. O diferente, o que vem de fora é uma aberração, ao primeiro contato.
Mas como minha vinda pra cá foi um presente de Deus, eu fui acolhida por pessoas carinhosas. E dentre todos os sorrisos daquela época, hoje tenho ao meu lado alguns, e o mais importante, tenho os verdadeiros. Posso encher a boca e chamar de amigos, como sei que podem me chamar de amiga, também.
Hoje foi um dia daqueles especiais em que Deus se dispõe a olhar pra gente com prioridade. Ele nos põe na palma de Suas mãos, acaricia, roça-nos a barba branca e macia. O abraço de Deus é gostoso, é libertador. E, diante da dificuldade em fazê-lo fisicamente, Ele nos põe de encontro a amigos. E são deles os abraços que recebemos. Ter amigos é ser abençoado pelo próprio Deus!
Este é o meu centésimo texto publicado...
Em cem textos expus minha vida, meus “rastros perfumados de deusa”, minha impressão das coisas. Por cem vezes contei minhas histórias. Aquele que acompanhou as leituras desde a primeira vez, sabe que faço costuras, que arremato um texto no outro, que volto alguns atrás numa citação do mais novo... Enfim, teço a teia, como vou tecendo essa minha vida que pouco importa aos meus verdadeiros amigos, mas que tornou-se – e eu não sei por que motivo! – alvo de atenção de tantos lobos por aí.
Eu fiz amigos novos, recentemente, e ando muito feliz por isto. Descobri pérolas, verdadeiros “achados”, no meio de gente que já não imaginava trazer-me surpresa alguma. Hoje, particularmente, descobri que tem gente que acha que valho ouro quando há muito pouco tempo fui julgada e atirada ao abismo onde se escondem os podres, como nas comunidades onde vivem os leprosos, os dependentes químicos, os mendigos, os ladrões da pior espécie. Tendo apontado o dedo indicador na direção do meu nariz, rotularam-me de “má influência” e afastaram-se, como se eu portasse uma doença contagiosa muito, muito séria...
Mas Deus nos prova no fogo, e ouro resiste ao fogo. Sou de ouro, uma amiga me disse hoje. Eu já vinha me curando da dor de cair no abismo, já estava chegando à tona e, quando pensava não ter mais força para sair de lá e temia cair de novo, uma amiga estendeu-me a mão. E ela nem sabe o que fez por mim!
Quando o futuro – de amanhã, mesmo, não o tardio! – vier, não precisarei mais de doze anos para avaliar os amigos que ficaram. Eu sei. Precisei de doze anos porque tinha apenas trinta. Agora fica mais fácil discernir.
Agradeço a Deus pelos meus dias aqui em Iguaba. Quem acompanha minha vida sabe o quanto tenho sido feliz, o quanto tenho alcançado vitórias com as experiências que bem ou mal sucedidas compõem a pessoa que sou hoje. E eu não teria sido nada, absolutamente nada, não fossem as pessoas que estiveram ao meu lado – aqui, mesmo, ou através desta tela – durante todo esse tempo.
Eu não devo nada àquele que deixa de viver sua própria vida para cuidar da minha. Eu lamento, apenas, porque os dias, os meses, os anos, a vida estão passando e tem gente que não está percebendo isto, preocupada que está com a forma como eu escolhi viver.
Mas aos meus amigos, ah, a esses devo tudo! Devo as alegrias, as gargalhadas, os momentos inesquecíveis... Devo os choros, os borrões nos olhos, o nariz avermelhado... Devo as mensagens, as ligações, os abraços nas horas certas... Devo os “tamojunto”, as orações, as fotos, as companhias, as presenças, as certezas de que tem gente do outro lado pra me acenar, se eu precisar um dia...
A quem interessar possa, eu não estou sozinha no mundo. Tenho uma família em São Gonçalo, tenho uma família em Iguaba Grande. Aprendi a selecionar os amigos, e agora tenho um bocado deles, um grupo pequeno, mas contagiante. Um grupo que sabe amar.
No meio disto tudo descobri que sou amada. Na era da robótica e da cibernética, virtualmente, inclusive! E descobri que sou amada porque aprendi a amar.
Eis meu centésimo texto: uma ode à amizade, para quem enxergar ser poesia o que aqui está escrito e tiver pulmões para cantá-la!
A vocês, todos, que saberão incluir-se em alguns dos parágrafos que cantei, obrigada! Vai ver deixei, mesmo um perfume de rosas pelo caminho... Não sou nada sem vocês.

sábado, 10 de novembro de 2012

A história dela

(A história dela, só ela conhece. Mas como tem gente querendo contá-la à sua maneira, ela resolveu fazê-lo.)


Ela veio morar aqui para poder chorar. Mudou-se. Mudou sua vida por completo. Objetivo, um só: poder sofrer.
Sofreu demais até seus trinta anos. E perto de mãe, pai e irmãos não é o lugar ideal para isto. Um inchaço nas pálpebras e um nariz avermelhado delatavam a noite mal dormida, os sentimentos mais intensos, as dores, todas, que o mundo nos apresenta quando nos convida a viver...
Até os vinte anos andou pelos caminhos trilhados pelo destino, meio sem saber o que queria, para onde ia... Folha ao mar, entregou-se à direção indicada pelo vento. Estudou onde a matricularam, formou-se na profissão que lhe definiria o emprego, namorou os meninos (os poucos meninos!) que se aproximaram dela.
Nunca foi correspondida em seus amores. E, na vida, só o que fez foi amar! Os namoricos, sempre por pena dos meninos ou por medo da solidão. Reciprocidade de sentimentos, jamais.
Um dia, num susto, percebeu que havia crescido. A natureza esqueceu-se dela, apresentou-lhe as consequências de ter nascido mulher quando já ia completar seus quinze anos. E, tendo sido esquecida pela rotina do destino, tudo lhe aconteceu fora de época.
Ela tinha um quarto só para ela quando tinha vinte anos. Lá, viveu sua vida, incrivelmente diferente do que lhe compunha o DNA: comprou a TV, o Gradiente “3 em 1”, o aparelho de CD quando anunciaram a novidade tecnológica, o vídeo-cassete e, num amontoado de fios e aparelhos sobrepostos, teceu a vida um tanto sem graça, acreditando que tudo era bom. Havia músicas e papéis naquele quarto, então, havia tudo! E os diários foram companheiros daquela que sob o olhar das pessoas era uma moça de vinte anos, mas, ajoelhada aos pés da cama não passava dos quinze...
Da Remmington 22 para os cadernos, pouca coisa mudou. As confissões sempre foram as mesmas: o coração acelerado por ter visto o amado, o coração apertado por ter ouvido palavras duras dos pais (ela nunca os respondeu, os contestou), o coração entristecido por uma briga com a irmã. Sua janela ficava bem de frente para a rua. As gargalhadas gostosas dos meninos e meninas que curtiam a vida penetravam seu espaço, sua intimidade... Às vezes punha a caneta na boca e sonhava um pouquinho fazer parte daquele grupo lá fora, viver...
A hora certa para chegar em casa, quando aparecia um programa à noite para fazer, significava deixar tudo pelo meio: a conversa com amigos num barzinho, o show do cantor que acabara de começar... Em algumas ocasiões desistia de ir: “vou chegar e ter que sair na mesma hora”...
Num certo período ela descobriu o cinema. Nesta época era perfeitamente possível vê-la sair de uma sessão do Central e apressar-se para pegar a que iniciava no Odeon. De volta à casa, dentro do ônibus, às vezes nem se lembrava direito dos filmes que assistira... A intenção nem era esta. Tanto que por muito tempo fez as viagens de ônibus para a cidade vizinha só com o objetivo de voltar. Descia no terminal rodoviário, atravessava, e tomava outro ônibus a caminho de casa. Sim, ela fez isto alguns fins de semana seguidos...
Ela não era feliz, mas achava que era. Resolvia o problema de ter que ficar em casa trancando-se em seu quarto, ou gastando dinheiro à toa rodando catracas de ônibus e cinemas.
Assim, seu tempo foi passando, entre uma tentativa e outra de ser feliz. Até que começou a passar dos vinte anos, e ninguém havia lhe aparecido acenando com a possibilidade de casamento. E, assim como o convite ao trabalho aos catorze anos, sua mãe iniciou a cobrança: “não vai casar?”
Quando a oportunidade de se casar surgiu, ela não hesitou, e aceitou o convite, de pronto, mesmo tendo conhecido o “corajoso” há pouco tempo. E entre conhecê-lo e ser a mulher dele, passaram-se estranhos oito meses.
Com um ano e meio de casada percebeu que havia errado em sua decisão, sua escolha, sua renúncia, sei lá. Teve vergonha, no entanto, de desfazer o que havia feito. Passou, então, a sobreviver, a mentir, a fingir, a sorrir sem vontade, e a fazer todas aquelas coisas que quem mantém uma vida falsa faz. E cinco anos se passaram deste jeito, e foi tudo tão rápido que numa manhã de novembro ela percebeu que já tinha trinta anos, e que os cadernos estavam lá, lhe servindo como diários, novamente. Viu-se ajoelhada na cama a revelar segredos de uma jovem adolescente, viu todas as suas carências latejando num coração que, pela lógica, deveria ter um par. A Remmington 22 deixada de lado, o computador compartilhado que não lhe garantia privacidade, e os cadernos lá, do mesmo jeito, dando conta de uma menina-mulher infeliz, sozinha como sempre foi.
Durante todo este tempo, impossível chorar. Ela não abriu seu coração, não sofreu “por fora”, porque seus olhos inchados e seu nariz vermelho denunciavam tudo, no dia seguinte. E pai e mãe e irmãos sempre enxergam os vestígios do sofrimento quando é o mesmo sangue que corre nas veias. Ter que explicar a razão da dor de cabeça, das lágrimas, do cansaço do coração fazia com que tudo lhe fosse oprimido no peito, a ponto de ela viver sorrindo: “Está tudo bem”!
No sábado em que ele foi embora, ela não chorou. Estava almoçando com a família e chegou a ensaiar um “até que enfim!” nada verdadeiro, porém convincente, no meio de um churrasco... Era novembro, ela era professora. Trabalhou aquele finzinho de ano gabando-se da separação. Todos tinham que testemunhar-lhe a felicidade. Enganados pelos sorrisos falsos dela – ou por não se interessarem em saber-lhe do real sentimento – diziam-lhe poucas palavras, nada acalentadoras.
Os choros às vezes vinham sob a água do chuveiro. Naquele último banho, antes do sono, para ninguém ouvir, nem saber. Foram poucos, ela morava pertinho dos pais...
Quando janeiro chegou, foi muito difícil. Dias inteiros em casa, de férias. As paredes, os móveis, as coisas que não foram levadas, as coisas que foram esquecidas, tudo isto pesava-lhe o peito, trazendo remorso, vergonha, tristeza, saudades do que poderia ter sido e não foi.
Até que um telegrama mudou-lhe a vida: uma chamada do concurso público que havia feito para uma cidade distante presenteou-lhe com a possibilidade de poder sofrer.
Ela veio morar aqui para poder chorar. Mudou-se. Mudou sua vida por completo. Objetivo, um só: poder sofrer.
Veio morar sozinha, encher a casa de lágrimas, inundar o travesseiro sem preocupar-se com o que dizer no dia seguinte. Ninguém nunca lhe perguntou... Tendo sofrido, renasceu. Tendo renascido, foi feliz. Tendo sido feliz, foi mãe. Agora vive sob a bênção de um Deus que reservara para ela um destino muito diferente, e ela nem sabia!... Seu destino agora é ser feliz. E por receber de Deus tão magnífica missão, procura levar a felicidade para aqueles que a rodeiam: respeita-lhes os choros, as dores, diz-lhes a verdade, mantém com eles a palavra, cumpre-lhes as promessas, estende-lhes a mão. Veio pra cá para amar de verdade, para anunciar seu amor. Veio para ser amada verdadeiramente, e por isso dobra os joelhos no chão e agradece ao Senhor seu Deus, todos os dias de sua vida.
É a história dela. Contada por ela.

sexta-feira, 9 de novembro de 2012

Perspectivas

(Quero ver a vida sob a mesma perspectiva que Antônio... Hoje ele me ensinou que é mais feliz quem é menor.)
 

Ontem Antônio deu novo nome à minha amiga Guiomar: “Aquela gigantesca”, foi a expressão que ele usou para referir-se a ela.
Hoje pela manhã, quando passamos em frente à casa à venda no quarteirão seguinte ao nosso, ele me falou que queria comprá-la para morar nela. E, diante da minha surpresa, disse-me que ficaríamos próximos, já que era só “descer a montanha” e visitarmos um ao outro...
Nossa casa fica na subida da rua, sim, mas nada que aos meus olhos se aproxime de uma montanha. Isto porque tenho olhos de adulto. Eu cresci. E, agora, eu e Antônio vemos as coisas por perspectivas diferentes: Guiomar é gigantesca e montanhas separam os quarteirões da nossa rua. Bem mais gostoso ver assim, não é?
Aí, eu fiquei pensando, pensando, depois daquele mais novo ensinamento de Antônio... E tendo pensado, pensado, descobri que somos os donos do mundo. Mas isto acontece só enquanto somos crianças...
As crianças são menores que tudo. Veem-se menores e, justamente por isto, respeitam os espaços que habitam. Têm medo da sombra que cresce na parede quando falta luz e acendemos velas... Têm medo de gritos... Têm medo de alguns colos, dependendo de quem as erga. Eu, por exemplo, morria de medo do colo do meu tio Telém. É que ele me suspendia pelos cotovelos – coisa estranha! – e me levava lá em cima, eu sempre achava que aquilo não ia acabar, que nunca mais eu estaria no chão novamente.
O respeito das crianças pelo que lhe é maior é que dá movimento à vida. Movimento harmonioso, movimento divino. E tudo é muito mais simples e digno quando se reconhece a própria insignificância diante do mundo.
Mas as crianças crescem, e tornam-se isto que somos nós. Dá até vergonha de perceber que um dia fomos melhores...
Na ânsia de crescer, de deixar de ser criança, a gente começa a se projetar maior que o mundo. E é aí que nos perdemos. Hoje Antônio me ensinou isto, a aula de hoje foi esta: melhor ser menor.
O homem deixa a criança de lado, para trás, e não percebe que seu crescimento físico o limita aos 1m 80cm de altura (alguns vão um pouco além disto). Então, sua soberba o faz mirar o espelho e ver-se maior que o mundo. É quando vê as coisas menores do que ele que se perde, que encontra o inferno, posto que se despede de Deus. Aí o homem vê Guiomar “nem tão alta assim” e vê que não há montanha alguma na minha rua. E tudo vai por água abaixo...
Ele passa a ser maior que o outro, e não importa se o outro é um animal, uma vegetação, ou seu próprio irmão ao lado. A sua serra elétrica é maior do que o jequitibá, seu facão maior do que a baleia, sua palavra maior do que seu próximo.
Ouvindo Antônio, eu visualizei a verdade. Talvez hoje eu tenha aprendido um pouco mais sobre o que é viver. Obrigada, meu filho! Na imagem que criei, um menino está no espaço observando a Terra tão absoluta, tão milhões de vezes maior do que ele! E este mesmo planeta é observado, simultaneamente, por um homem maior do que ele...
O homem cresce para destruir as coisas. Uma pena! Imagina se crescêssemos com o coração tomado pela alegria, pela esperança e pela inocência que tínhamos quando caíram nossos primeiros dentes de leite!... Mas as coisas vão acontecendo de forma contrária, nosso coração se fecha, nosso sorriso se finda, nossos dentes permanentes rompem com tanta força em nossa boca que parece que um dia será preciso morder alguém. Desconfiamos das pessoas, julgamos precocemente as atitudes dos outros, não perdoamos as falhas, não pedimos perdão... Somos muito grandes para isto, isto é coisa de criança... E nossos pais são culpados, essas frases são deles, e a gente sabe de tudo isto mas ensina também aos nossos filhos. Reproduz a fala: homem não chora, pedir perdão é humilhação, perdoar é mostrar fraqueza, sorrir é dar confiança... Não é mesmo assim?
Nada mais pode ser feito depois que a gente cresce. Enquanto isto, um Criador desolado sacode negativamente a cabeça vendo a criatura praticando exatamente o oposto do que Lhe agradaria o coração. Deus nos quer pequeninos, quer que diminuamos todos os dias, porque Ele quer crescer dentro de nós...
A força do mar às vezes dá uns sustos no homem. Os ventos também. Vulcões entram em erupção para lembrar ao homem de que existem, de que estão só adormecidos...  Chuvas causam estragos. Um sol de lascar ferve os miolos e mata gente. Animais ferozes de vez em quando se apresentam àquele que faz de conta que os esqueceu.
Homens não são maiores que leões, tampouco melhores que urubus. Muitos, muitos deles são inferiores a qualquer espécie animal.
Nessa perspectiva desigual quero reaprender a olhar as coisas. Quero me tornar menor que Antônio, quero pôr por terra tudo o que em mim está impregnado de preconceitos por conta de eu achar que cresci, que não sou mais criança.
Um dia a terra engole o homem (e não é que engole mesmo?), e o que há? De tão grande que se tornou, merecerá apenas um gasto maior nos custos de seu próprio enterro: uma cova funda e larga, na medida do tanto que cresceu.
Deus me permita enxergar Guiomar lá no alto... E descer quatro montanhas para chegar à lagoa...
Eu só queria ser criança, ser pequena, ser dona do mundo. Perspectivas revelam e distinguem seres humanos. E eu quero ser uma criança. Porque os pequenos sabem o segredo da vida. E porque os grandes não sabem de coisa alguma. Não são dignos de Deus.

sexta-feira, 2 de novembro de 2012

Escolhi viver

(Neste dia em que todo mundo se lembra da morte, escrevi sobre a vida...)


As pessoas estão no mundo. Andando, trabalhando, correndo na beira da praia, lendo, escrevendo, dirigindo... Porém, poucas se dão conta de que estão vivas.

Viver é um milagre. E hoje em dia se faz tudo tão mecanicamente que nos é perfeitamente possível passar um dia inteiro sem pensar nisto. A rotina não deixa, a mídia não deixa: você não tem as medidas da mocinha ou do rapaz? Já morreu. Deite-se. E tudo tão bem feito, que tem gente se deitando, nem que seja na maca do hospital, para se transformar naquilo que não é, obedecendo a uma ordem que não sabe de onde veio. O importante é não ter cabelos brancos, não ter cabelos crespos, não ter rugas, não ter celulites nem estrias, não ter pelancas, não ser careca, não ter pintas, não ter barriga, e ter muita, muita bunda – e isto vale agora para os homens, também!

Ser quem não se é, para mim, é o mesmo que morrer. Uma fôrma entrega iguais os “bonequinhos” e “bonequinhas” na saída dos hospitais que enriquecem – ou das zilhões de academias que ploriferam! – e saem de lá os felizes Kens e Barbies prontos para serem aceitos nos grupos dos iguais. Eu, sinceramente, já ando com dificuldade de reconhecer alguns artistas da televisão: passam um tempo afastados e, quando retornam, aquelas bochechas reluzentes, aquelas bocas inchadas e as nádegas que eu podia jurar nunca havia visto antes estão lá, denunciando a ida ao tal do hospital da fôrma. E estão internando-se lá cada vez mais jovens... Meu Deus!

Bem, isto pra mim é optar por morrer. Morre-se em vida, porque já não se é mais quem se é de verdade. Gordos são agora magros, costelas são retiradas dando vez à cintura obrigatória, pretos são brancos, brancos são bronzeadíssimos mesmo no inverno, morenos são loiros e vice-versa. Ah, confesso que não entendo isto, não entendo...

Escolhi viver, então. Eis uma escolha simples, e muito feliz! Daí, fiz uma relação de coisas que quem escolhe ser feliz tem que fazer. Aprendi rapidinho, e tenho tentado praticar todas (embora de vez em quando um lobo mau me passe umas rasteiras). E a experiência tem sido excelente. Quem escolhe viver, escolhe ser como criança. Afinal, Deus nos dá a vida em forma de criança, não é mesmo? Quanto mais a gente cresce, mais começa a morrer...

1 – Para viver, basta estar no mundo. Recebê-lo de braços abertos, sem medos. As crianças fazem isto. Ouça-lhe os barulhos, aguce os seus ouvidos: os sons dos passarinhos nos ninhos das árvores, os sons das folhas secas sacudindo no vento... A música que toca na casa mais afastada da rua... O som da onda batendo quando chega à praia, o som da gargalhada de um amigo, o som dos passos das pessoas na rua... Basta fechar os olhos agora, e experimentar.

2 – Para viver, basta dizer a verdade. Sim, quando é sim. Não, quando é não. Com as duas palavras damos conta de nossos problemas, não é necessário usar qualquer outra. Crianças são verdadeiras, ainda não tiveram tempo de aprender a mentir. Diga quando gosta de algo, e quando não gostar, revele também. Não omita informações, não disfarce sentimentos. Seja verdadeiro. A verdade é bonita.

3 – Para viver, sorria. Ria das coisas, das pessoas, ria de você mesmo. Arranje motivos para sorrir, a vida já está cheia daquilo que nos faz chorar... Conte piadas, faça piadas das situações estranhas que aparecerem. Criança é ainda mais criança quando ri. Receba as pessoas com um sorriso verdadeiro no rosto. Despeça-se com o mesmo sorriso. Sorria para o dia que está do lado de fora da sua janela. Tenha alegria no seu coração.

4 – Para viver, questione. Tem dúvidas? Pergunte. Ficou com uma impressão diferente daquilo ou daquele a quem foi apresentado? Retire-a. Não entendeu perfeitamente aquilo que lhe foi dito? Peça a quem lhe disse que repita, infinitamente, até que a compreensão lhe chegue. Não aceite os nãos como resposta, se não era isto o que queria ouvir. Toda criança argumenta, experimenta a desobediência quando sua vontade lhe é negada.

5 – Para viver, brinque. Faça cócegas no seu colega, pule corda. Jogue bola – é delicioso! – com uma criança na rua. Corra na praia, jogue-se no mar. Mergulhe, levar uns caixotes das ondas faz parte da vida de qualquer criança. Tome banho de chuva, permita-se ser invadido por aquela água fria que vem do céu, a sensação é de bênção! Deixe seu corpo molhado, sinta o peso gostoso das roupas molhadas sobre o seu corpo.

6 – Para viver, abrace. As crianças gostam de dar e de receber abraços. Abraço é afeto físico. Abraços aproximam corações. Abraços perdoam. Abraços pedem perdão. Abraços dispensam palavras... Demonstre o carinho que sente pelo outro fisicamente, não hesite. Há gente que não entende olhares, precisam de toques. Não se detenha diante da vontade de abraçar alguém. Criança nenhuma faria isto.

7 – Para viver, chore. Chore no escuro. Experimente apagar todas as luzes de casa e chorar todo o seu cansaço, suas angústias. Molhe o travesseiro, as lágrimas são quentinhas, confortáveis. Chore embaixo do chuveiro. Mistura de sensação boa esta a da água morna do chuveiro com a lágrima morninha, também... Crianças choram, e não costumam olhar para ver se tem alguém em volta. Não se preocupe. Chore. Faz muito bem chorar, quando se tem vontade.

As regras são tantas quantas são as ideias das crianças. Essas sete aí, quem me ensinou foi Antônio, e ele me ensinou vivendo... Eu, venho pondo em prática, ainda que a rotina e a mídia me proponham exatamente o contrário. Assim eu consigo ter rugas, celulites, estrias, uma barriguinha protuberante, confessar meus quarenta e quatro anos, manter as costelas no lugar, testemunhar e respeitar a consequência da lei da gravidade no meu corpo e ser FELIZ, e dar a vez ao viço que vem logo atrás de mim, com seus dezesseis anos, pedindo licença para viver...

Todo mundo quer viver. Viver é uma opção. É opção dos corajosos. Eu escolhi viver. Está feito o convite!