quarta-feira, 31 de outubro de 2012

O terceiro monstro


Os jargões estão todos lá, nas páginas da rede social. E são tantos, que às vezes penso não conseguir inventar frase alguma: elas já existem, basta que acessemos o Google... Refiro-me àquelas frases que nos alertam de que nem tudo o que reluz é ouro,de que as pessoas nem sempre são o que parecem ser, etc.

Envelhecer – melhor diria, saber envelhecer – trouxe-me alegrias incontáveis. Eu mesma me surpreendo, quando percebo ter “previsto” acontecimentos, resolvido conflitos, aproximado corações (É, até isto ando conseguindo ultimamente!)...  Apenas uma garotinha chamada Eduarda tem me dado algum trabalho neste aspecto, suspirando por um tal de Gabriel, e esquecendo-se do meu Antônio...

Antônio é a alegria da minha vida. Deus, conhecedor do meu calendário, previu que chegando perto dos quarenta anos minha espontaneidade se findaria, e teceu meu filho. Ou melhor, desenhou a pincel – como costuma dizer o pai – aquele rostinho que me confiaria. Obrigada, Senhor!

Para que eu soubesse educar meu filho e ver atingido meu objetivo de que ele seja no futuro (que é todos os dias) um ser humano de verdade, Deus apresentou-me as ovelhas e os lobos. E apresentou-me, também, as ovelhas travestidas de lobos e, ainda pior, os lobos que se travestem de ovelhas. Quando se é criança, ovelhas e lobos são companheiros das fantasias. Confundem-se, com direito à troca rápida de personagens, e ao que é mais gostoso, inerente em toda criança: têm seus direitos garantidos ao arrependimento. No fim das histórias infantis, tudo é ovelha, e berra bonito, e pasta em um campo verde de dar inveja!

Na adolescência, nos limitamos a julgar as ovelhas pelos seus atos de lobo: quando nos tomam os namorados, quando colam da nossa prova, quando põem na gente a culpa por algo que não fizemos. Ovelhas-lobos nos oferecem o lado de fora da escola, e algumas mais ousadas um cigarrinho, “só pra experimentar”... Na adolescência, a gente teme essas ovelhas. Há até quem se entregue a elas – por querer viver vida de lobo! – mas ciente dos perigos, embora sejam eles mesmos que seduzam...

Mas quando você começa a passar dos quarenta anos, qualquer lobo descoberto sob o manto de lã branquinha é uma surpresa, uma decepção. E hoje, um lobo nojento, fedido e desdentado apareceu para mim. E numa ovelhinha tão carinhosa eu descobri habitava o terceiro monstro.

Terceiro monstro é forma de expressão (achei bonito para usar como título do texto), seria pretensão minha dizer a você que Deus reservou para mim apenas três deles. Não, por muitos já passei, já revelei vários! Mas acho que é a terceira vez que escrevo sobre isto aqui na minha página-escape, daí a preferência pelo título.

Monstros não têm lugar no altar do Deus Todo Poderoso, ainda que vivam com seus joelhos dobrados ao chão. Não. Eu creio num Deus fiel. Vá procurar o significado da palavra fiel, vá:

Que guarda fidelidade, que cumpre seus contratos: fiel a suas promessas.
Constante, perseverante: amigo fiel
.”

É possível até sentir o peso da responsabilidade de tamanho adjetivo, não é?

Quanto pesa um lobo?

A espada atravessou meu coração novamente, e creio que, no auge dos meus quarenta e quatro anos de idade, ainda haja bastante espaço para perfurações no meu coração. Portanto, recebo a punhalada, e entrego-a nas mãos do Deus fiel a quem amo. E louvo, e agradeço, porque sei o quanto aprendo com essas descobertas. É menos um disfarçado, mais um de quem devo manter-me afastada.

Meu ventre abençoado deu à luz Antônio. Aquele menino doce, de olhos de jabuticabas; aquele menino esperto, questionador, inteligente, saudável; aquele menino sorridente, de bochechas coradas e sorriso inconfundível veio ao mundo porque Deus quis que ele viesse, e mais: Deus quis que ele conhecesse a vida através de mim!

Sim, foi esta Karla atravessada que gerou Antônio por nove meses, e foi no meu seio que ele se alimentou. Foi sob meus cuidados que tomou forma de gente, foi sob meus abraços que sentiu-se protegido. Foi no meu colo que chorou seus medos, suas dores... Suas madrugadas com cólica foram compartilhadas comigo, e muitas vezes meu carinho em sua barriga acalmou suas inquietações. Uma Karla atravessada foi-lhe companheira, sustento, referência. Seus banhos de sol foram ao meu lado, seus primeiros sustos na lagoa também. O encontro com a água salgada, com a areia no corpo... Suas dores das vacinas foram controladas no meu peito, bastei-lhe fome, sede, febre, solidão...

Assim, Antônio foi crescendo, e hoje é o meu melhor amigo. Estamos juntos, na saúde e na doença, na alegria e na tristeza, cada um com a sua responsabilidade de existir, para que o outro sobreviva. Simples assim. Uma bênção que Deus ousou nos conceder: um, ao outro.

Eu só sou feliz porque tenho meu filho do meu lado da cama todas as manhãs quando acordo. Ele encosta os cílios nos meus, me diz “bom dia” e me convida à guerra de “cosquinhas”... Não seria, nunca, feliz sem isto. Como pude um dia pensar que havia sido?... Nada se compara a este sentimento. Nada! E isto, isto que chamam de amor, é o que abate qualquer tipo de lobo que se atreva a infiltrar-se como ovelha. Não há lugar no trono do Pai para terceiros monstros, como haverá lugar perto de mim?

Expulso está do meu convívio aquele que se fez passar por amigo sem honrar esta palavra. Fiel é Deus. E Ele nada me cobra, não me ofende e, se me julga, o faz com o direito que tem de fazê-lo, posto que me deu a vida, esta vida abençoada agora infinitamente porque via de acesso à de Antônio.

Eis o que há, de verdade. Um casal de amigos dividindo o espaço da casa de muro verde de Iguaba. Eu, aprendendo todos os dias, com um professor de um metro e trinta centímetros. Ele, aprendendo todos os dias, com uma professora de um metro e sessenta e oito. E não há instrumento que meça o grau de amor que preenche aquela casa quando estamos lá dentro. Meu juízo educa aquela criança. Tenta ensinar-lhe o bem, o mal, o belo, o feio, o certo, o errado, consciente de que ele precisará viver tudo isto para aprender. E meu juízo já lhe adiantou que viver dói, e ele já ensaia sentir as dores: o tombo da bicicleta avisa que é chegada a hora de aprender a pedalar, a picada da agulha da vacina lhe previne a doença, e o coração, que também dói por ver a Eduarda sorrindo pro Gabriel, lateja enquanto o novo amor não lhe faça esquecer a menina do laço de veludo vermelho. O que passa disto é mentira, é juízo de um lobo-humano, portanto, não vem de Deus.

Sigo com Ele, com Deus. Com Ele aprendi sobre fidelidade. Aprendi que na mesma medida com que julgar o outro serei eu também julgada. Aprendi que a quantidade de monstros passa de três, o que me faz crer que outros textos virão. E, sobretudo, cresci ouvindo Dona Vanda me dizer, enquanto escolhia o arroz do almoço, que todo mundo tem um telhado de vidro em casa...

terça-feira, 23 de outubro de 2012

A mão de Deus

(A mão de Deus nos deu um endereço, longe das guerras, da miséria, da morte, do inferno. Você já agradeceu a Ele por isto? Já agradeceu hoje?)


Hoje vim para agradecer a Deus por escolher este lugar para eu viver.

Ontem assisti um pouco do noticiário na TV e aquilo foi o bastante pros meus joelhos se dobrarem e minha oração sair, espontaneamente: Obrigada, Senhor!

Resolvi, então, vir aqui. Vim lhe perguntar se você já agradeceu a Deus, hoje. Se ainda não, vim para lhe dar motivos para fazê-lo. Vamos lá? Vou prosseguir...

Eu vi pela televisão uns casebres. Vi favelas, vi lugares desumanos e vi gente vivendo lá dentro. Casas mal construídas, cômodos únicos, ainda cobertos apenas por tijolos, e gente, muita gente morando neles. Eu vi crianças dormindo num chão que não era de piso frio, mas sim, de terra batida. Crianças com pouquíssima roupa cobrindo o corpo a despeito da friagem que a noite traz. Vi crianças chorando uma dor de fome, tentando mastigar uns peitos já sem qualquer coisa dentro.

Em muitos de cômodos como esses pais e mães dividem espaço com filhos ainda bem pequenos, que lhes testemunham as intimidades. Eu vi – e ouvi! – que algumas crianças que crescem nesse meio fingem dormir para ouvir os gemidos de seus pais na madrugada. Uns gemidos que acusam irmãozinhos uns meses depois... Em cômodos como esses tudo acontece. Não há censura, não há permissões, tampouco proibições. As fezes são feitas em buracos no chão. E continuamente são abertos novos. Os dejetos humanos têm sua parte na divisão do espaço do que não se crê existir.

Ali crianças se drogam, confusas entre as sensações de alegria que lhe são causadas por um brinquedo ou uma cola de sapateiro. A cola mata o que dói no estômago, pelo menos temporariamente, coisa que o brinquedo não faz. E, tendo pai e mãe por testemunhas, vão-se embora na vida de desgraça que nem sabe que vivem...

A mão de Deus livrou você de viver num lugar como este, certo? Hoje teclo num computador, sentada confortavelmente na cadeira da sala, um texto que você lerá talvez até com mais conforto do que eu. A quem agradecer? Esqueceu deste detalhe, hoje? Você lê o texto porque tem bons olhos, olhos cuidados... Tem inteligência, tem saúde, tem tempo para dedicar-se a esta leitura... Está tudo agradecido? Tem o corpo perfeito, inteiro, embora ainda assim às vezes caia na tentação de desejar retirar um pouco dele (ou colocar) estirado numa maca de hospital. Alterar aquele mesmo corpo são que Deus lhe deu...

Você já agradeceu hoje, a Deus, por ter uma casa para morar? Uma casa com cômodos e privacidade? Uma casa com banheiro? Conheci certa vez um menino que não tinha ânus. Muito pequenino, aguardava sua vez na fila de cirurgia num hospital público e, enquanto isso, sua mãe dava conta da sonda que ele utilizava acoplada ao corpo. Sua casa tem banheiro e você pode utilizá-lo? Já agradeceu por isto?

Os casebres com seus cômodos únicos estão nas ruas sujas e fétidas da cidade. Nas ruas onde não há rede de esgoto, coleta de lixo. Ali se trava a batalha pelo pão de cada dia: os restos são bem divididos entre animais e pessoas, como se fosse tudo uma coisa só. Não há palavras, só grunhidos, gemidos, violência. Você não luta pelo seu pão. Ele está lá, na padaria, esperando, e o máximo de sacrifício que você faz é enfrentar uma fila, se o pão quentinho valer a pena. Agradeceu a Deus pelo pão fresquinho?

Uma ronda policial é suficiente para liquidar pessoas e destruir famílias em um curto espaço de tempo, dependendo do lugar por onde passe. Ficam, então, pelas ruas, os jornais vencidos, as velas acesas, as manchas de sangue e, vez ou outra, um cãozinho aquecendo um braço que não pôde ser coberto. Dependendo do lugar onde se viva, as pessoas atravessam corpos nas ruas para não perderem o trem. Por quantas ruas você já caminhou hoje? Quantas coisas bonitas viu? Sua família está completa em casa, esperando por você? Já agradeceu por isto?

A mão de Deus nos colocou onde estamos. Eu, aqui. Você, aí. Não, não fomos parar em Israel. Lá, as crianças estão nascendo ao som do que poderia ser fogos de artifícios, mas são balas de fuzil. Nascem para a morte. Famílias inteiras nascem para contribuir com as estatísticas de mortos ao final do dia. Seu filho nasceu? Está bem? Você sobreviveu ao dia de hoje? Trabalhou seguramente? Já disse a Deus “obrigado”?

Somos escolhidos, verdadeiramente, todos nós. Eu não sei bem por que alguns são escolhidos para serem colocados naquelas coisas que de casa não têm nada. Não sei por que ainda nascem crianças em Israel... Mas sempre que vejo o noticiário na televisão agradeço a Deus pelo que tenho. Aquilo que, embora em momentos hereges eu julgue ser tão pouco, sei o quanto é valoroso, quando Deus toca meu coração e afasta com propriedade os maus pensamentos: Tenho uma família linda, um filho saudável, perfeito... Tenho emprego, tenho uma casa confortável, tenho luz, tenho água, tenho duas cadelinhas que retirei das ruas, tenho saúde, tenho paz.

Ontem mostrei a Antônio a foto de um menino que devia ter seus seis anos de idade, também. O menino não tinha braços, nem pernas. Deitado num colchão, desenhava num papel com lápis de cor na boca. Um semblante feliz, comum a todos os meninos que desenham... Antônio ficou olhando a foto, estupefato. E enquanto eu via seus olhinhos se entristecerem, agradeci a Deus por ter o corpinho de Antônio inteiro, perfeito, perto de mim. Seu filho é perfeito? Seu filho é saudável? Seu filho está perto de você? E você já agradeceu a Deus por isto?

Do alto do Universo, um Deus avistando a Terra apontou para um endereço quando destinou a você a vida. Não lhe designou morrer jovem, matar seus pais, viciar-se em drogas, molestar seus filhos. Desejou que você crescesse em um lar, que constituísse família, que progredisse, que prosperasse. Deu-lhe talentos, e sentou-se em seu Trono para observar como se daria a multiplicação deles. Você os multiplicou? Já encontrou, ao menos, o talento que lhe foi concedido por Deus? Já agradeceu por eles?

Eu não estava aqui quando amigos dos meus pais morreram pelo sonho da democracia. Também não estava nas torres no dia 11 de setembro de 2000. Não fui um dos 111 mortos no Carandiru, nem fui vítima de qualquer assassino ou estuprador em série, daqueles que aterrorizaram famílias e cidades. Não namorei Lindemberg, nem perdi um filho nas condições em que o menino João Hélio se foi. A mão de Deus me libertou, me liberta todos os dias.

A mão de Deus libertou você, também. Nascemos livres. Você já agradeceu?

sábado, 20 de outubro de 2012

Extremidades

(Meu pai e meu filho são as extremidades da linha, do barbante do tempo que me foi concedido por Deus... E eu queria tê-los pra sempre!!)



Vejo a vida como uma linha, um barbante, e nessa visão, meu pai e meu filho compõem-lhe as extremidades.
Adoro quando recebo a visita de meu pai. Chegou para fazer um exame médico. Eu o levei ao hospital, depois para a minha casa. Quando Antônio chegou da escola, percebendo a presença do avô, saltou para os braços dele, num pedido de colo que meu pai já não dá mais conta de atender...
Falta muito pouco para Antônio alcançar papai. Assistindo à cena, e vendo tão pouca diferença na altura dos dois, voltei ao passado e senti um incômodo ao lembrar-me de que papai já fora, um dia, bem maior que eu...
Antônio está com seis anos. Papai, com setenta e oito. E eu, aos quarenta e quatro, no meio da linha (uma metade lógica, nada precisa!) sofro por pensar que meu sonho não se realizará: um sonho egoísta de ver Antônio envelhecer, tendo meu pai ao meu lado...
Difícil quando se pensa nestas coisas, não? Como posso amar tanto os dois, e saber que um dia não mais os terei perto de mim? Pensar no futuro do meu filho implica dizer adeus ao meu pai. E isto não é loucura, é a ordem natural das coisas...
Eu assisti ao velório da minha avó materna. Eu tinha uns nove anos. E me lembro com clareza do olhar perdido da minha mãe quando o caixão se fechou. Uns olhos afogados, um queixo enrugado, um adeus calado, sofrido... Naquela época eu não entendia bem dessas coisas, não doeu muito em mim, eu só via vovó nos finais de semana em que íamos à casa dela. Ela não era carinhosa, não me deixava mexer nas suas coisas, não me oferecia coisas gostosas para comer... Morava sozinha, então, era uma casa de “velha”, que não me atraía muito. Daí eu nem sofrer tanto assim. Mas a minha mãe, esta sim, sofreu demais.
Hoje tenho pai e mãe vivos – Graças a Deus! – e me confunde um pouco pensar que a linha do tempo não contempla todas as gerações da minha família. Alguém terá que ir, para que eu conheça os netos que Antônio me dará... E aí, não haverá papai para segurá-los no colo, para “arrancar” o polegar de uma das mãos e assustá-los procurando pelo dedo, brincadeira da qual Antônio gosta tanto!
Imaginar um Antônio me apresentando os netos me faz ver-me envelhecida. Uma incerteza de como estarei, do que terá sido feito de mim me angustia...
Ah, homens sábios, homens do bem, cientistas, médicos, religiosos, onde está a resposta para as perguntas que a gente faz a si mesmo quando olha o filho e o pai? Essa dor de se saber mortal, finito... Essa dor de se saber que um dia haveremos de nos despedir daqueles a quem tanto amamos?
Nas extremidades da minha linha, do meu barbante, Walter e Antônio. Aquele que me deu a vida, e aquele que a mantém. Eu, no meio, dividindo com eles o meu amor incondicional. Eles, dividindo comigo o amor deles, também. Meu pai faz poucos planos, hoje. Às vezes diz esperar a morte, apenas. Antônio espera a vida, enquanto vive o melhor dela, e nem se dá conta disto.
Nas rugas de meu pai, nos calos de suas mãos, nos ossos fracos, na memória lenta, um adeus à vida daquele que já foi um menino de seis anos de idade, também.
Meu pai foi uma criança esperta, que aprendeu a dirigir aos sete anos. Cresceu, foi convidado a sair da escola dado o número de reprovações (já escrevi sobre isto). Condenado pela escola, precisou esconder no bolso o sonho de ser médico. Enterrou a mãe quando tinha dezoito anos. Sofreu a dor de um jovem apaixonado por uma mãe tuberculosa, que pouco viu fora da cama. Para papai a lógica não aconteceu: vovó se foi, e nem esperou pelos netos. Rompeu-se a linha do tempo de meu pai antes da hora lógica.
Hoje estou vendo Antônio recuperando-se da catapora, dormindo profundamente em sua cama, e estou pensando em meus pais. Pensando no peso das pessoas na Terra, explicação “barata” que dei a Antônio quando me perguntou o motivo pelo qual as pessoas morriam. Ele chorava pelos bisavós que não pôde conhecer, e aí eu lhe disse que para que ele e Miguel (o primo) viessem ao mundo, os mais velhos têm que ir pro céu, porque senão a Terra ficaria muito pesada com todos aqui. Uma resposta tola, que nada tem a ver com a minha vontade sincera de poder apresentar Antônio aos meus avós, agora...
Graças a Deus acredito num céu maravilhoso. E acredito que é para um lugar maravilhoso que meus pais irão, quando chegar a hora deles. Sei que é egoísmo querer tê-los por aqui, vendo Antônio crescer, e se formar, e trabalhar, e se casar, e ter-lhes os bisnetos... Quando eu nasci minha mãe já ia completar seus trinta anos. Quando Antônio nasceu, eu tinha trinta e sete. Não há tempo para essa eternidade toda.
Por ora, vou curtindo os espaços que o barbante me reserva. Amando, abraçando, acolhendo. Sei que ainda não consegui retribuir o que fizeram por mim. Vendo a vida de inferno que vivem tantas pessoas, agradeço a Deus pelos pais que tenho. Basta que dediquemos uns minutos aos meios de comunicação e estão lá tantas famílias desestruturadas, tantas em guerra! Tantos filhos e pais se matando, destruindo gerações futuras! E, no entanto, Deus, na sua infinita misericórdia, permitiu-me nascer na família que Walter e Vanda decidiram formar.
Meus netos não conhecerão meus pais. Não estes: um pai que ontem trocou a porta da minha cozinha sem qualquer ferramenta própria para isto, apenas uma chave de fenda e uma faca sem ponta; uma mãe que acabou de ter renovada a carteira de habilitação, aos setenta e dois anos de idade. Talvez meus netos conheçam dois velhinhos, próximos de chegarem aos noventa, aos cem anos... E é muito doloroso ter esta certeza: de que o futuro não conhecerá o passado. Assim será comigo, que não estarei mais aqui quando meus netos se casarem...
A linha, o barbante, têm medida certa. Quando Deus lhes nos entrega, não nos é possível conhecer o tamanho do rolo. Importa que saibamos vivê-lo.
Toda vez que dá saudade vou a São Gonçalo ver meus pais. E sempre que os deixo no portão acenando quando venho embora, fico em dúvida se matei a saudade. Dá vontade de voltar, dá vontade de ficar. Que Deus abençoe minha família. Eu não sei por quanto tempo estaremos juntos, mas faço minha parte para manter o Amor em dia. Pois acredito que este Amor justifica o tamanho do rolo do barbante.

quinta-feira, 18 de outubro de 2012

Carta para Madalena

"Não vejo mais você faz tanto tempo
Que vontade que sinto
De olhar em seus olhos, ganhar seus abraços
É verdade, eu não minto"...
Minha querida amiga, num dia como o de hoje você nasceu. Que pena não poder tê-la agora por perto para abraçá-la...
Há seis anos sinto por não ter você por perto. E hoje resolvi vir até aqui – meu espaço preferido! – para escrever-lhe esta carta. Espero que os anjos a leiam e a repassem para você.
Todos os dias ouvimos, em diversas situações, aquela máxima de que Deus nos fecha uma porta e nos abre janelas. Antônio nasceu em fevereiro do ano que eu imaginava ser o mais feliz da minha vida. E, no entanto, o ano de 2006 deu-me Antônio, mas levou você de mim...
Sim, certamente a dor seria muito maior se eu não tivesse a companhia de Antônio, dia-noite-dia, naqueles seus primeiros meses de vida, a ocupar-me as lembranças... As tantas fraldas, os ensaios de papinhas dividiram espaço com a saudade que senti de você, todos os dias da minha vida, desde que você se foi.
Madalena, eu ainda me lembro do dia em que recebi de Herminia o comunicado de sua morte: com meu filho nos braços, voltando de um passeio de carrinho, me preparando para amamentá-lo, fui pega de surpresa por um telefonema que me tirou o chão. Do outro lado, uma Herminia que também nunca mais seria a mesma dava-me conta de que você não estava mais aqui. Meu silêncio fez com que Herminia me chamasse várias vezes. Ainda ouço a voz dela ao telefone: “Karla, Karla!”, num desespero compartilhado de alguém que não sabe o que pensar diante da pior notícia que se quer receber. Aí, foi o mundo se acabando, o chão sumindo, as pernas balançando e eu procurei um lugar para me sentar. Antônio, aflito, parecia saber o que se passava, e aqueles olhinhos de jabuticaba arregalados acompanharam meu choro: eu nunca havia me sentido tão só.
Sei o que me fez sofrer em demasia quando da notícia desgraçada: um telefonema seu, que eu não atendera dias atrás. E vou lhe contar minha dor, Madá, para ver se consigo descansar este meu coração...
Dois dias atrás do Tsunami (foi o que me pareceu, ver você ir embora) recebi uma ligação sua. Como estava amamentando Antônio, e ele estava quase dormindo, resolvi não atender e retornar assim que o pusesse no berço. Pois bem, ele dormiu, e ao repetir a rotina mecânica dos meus dias, esqueci de ligar pra você.
Talvez um dia algo aconteça que faça sair do meu peito essa angústia que carrego de não saber o que conversaríamos naquela tarde... Será que você me pediria ajuda? Será que me confidenciaria um segredo, uma preocupação? Será que se despediria, mesmo sem saber?
Ah, Madá, que falta você faz na minha vida! Sei que devo agradecer a Deus diariamente por ter feito com que nos conhecêssemos, nos tornássemos amigas, mas hoje minha carta tem o propósito de expurgar essa dor que me acordou por várias noites à época de sua partida, e que ainda me acorda, basta que eu me lembre de você...
Algumas coisas diferentes foram aparecendo na minha vida, Madalena, e nem pudemos compartilhar! A despeito dos seus conselhos para que eu mudasse de profissão, que investisse minha inteligência e minha coragem em uma profissão que me desse melhores condições de futuro, continuei na labuta de Inspetor Escolar. Se você soubesse das minhas últimas estadas sei que ficaria orgulhosa, apesar de continuar me aconselhando a “sair disto”.
Antônio cresceu tanto, já passou de um metro e trinta! Se pudesse abraçá-la agora facilmente a alcançaria! Ele gostava tanto de você!... Graças a Deus não chegou a doer no seu coraçãozinho de criança a sua falta. Está com seis anos, já lê e escreve tudo! Letrinha muito desenhada, graças aos treinos no caderno de caligrafia. É, aquele mesmo caderno responsável pela sua letra tão perfeita, também,!... Apaixonou-se por uma menina linda chamada Eduarda, Madalena, e eu, ando morrendo de ciúmes dessa paixão.
Parece que agora ouço sua risada, Madá... Graças a Deus fiz você rir bastante, não é? Trago este orgulho no peito. Não tenho dúvidas: foram dias maravilhosos, ora trabalhando nas escolas em companhia de Herminia – quanta risada! – ora em reuniões com Nilza e Cláudia, ora nos momentos de almoço, no carro, nas caronas que, como você bem dizia, “não tinham destino nem horário a cumprir”...
Muita, muita saudade, minha amiga.
Pela primeira vez meus dedos ansiosos teclam as palavras antes de eu pensar. Vendo-as na tela, me emociono. Queria escrever algo que deixasse você orgulhosa de mim, mas acho que estou me perdendo num amontoado de letras que só estão se perfilando aqui para, na verdade, pedirem perdão a você, em meu nome.
Perdoe-me, Madalena, por não ter-lhe atendido aquela tarde. Eu não sei o que você iria me dizer, levarei até o fim da vida esta minha dúvida, mas espero que daí do céu – aquele que imagino, com homens, bichos e plantas – você possa ter tido a certeza do quanto foi importante pra mim, de como aprendi a amar você, e do quanto sua presença fez e ainda faz falta.
As fotos acompanhando o crescimento de Antônio foram interrompidas naquele dia em que você sentou-se na cadeira do hospital e faleceu, depois da alta médica diante de uma aferição de pressão normal. Antônio ficou só, nas fotos. Nunca mais o colo da Tia Madá...
Nunca mais a mesma Karla. No entanto, agora, uma Karla melhor, posto que ter convivido com você durante seis anos me fez melhorar a pessoa que sou, a cada dia.
Se era este o propósito de Deus, obrigada, Senhor! Porque teve gente que nem chegou a conhecer você, Madalena, e não sabe o que perdeu! E teve gente que, ainda que a tenha conhecido, não soube aproveitar-se dos ensinamentos que se traduziam na simples presença daquela senhorinha pequena, humilde, tímida...
Eu aproveitei. Curti o que pude. Sei que tornei seus dias mais felizes, também.
Quanto ao resto, fica o pedido de perdão. Meu choro agora me chega como cura. Espero estar sendo abençoada por Deus.
Fique em paz, minha amiga querida, única, insubstituível. Neste dia do seu aniversário, recebe meu abraço em forma de oração. Que o Senhor a guarde em descanso merecido. Sou metade sem você.

"Agora que faço eu da vida sem você?
Você não me ensinou a te esquecer
Você só me ensinou a te querer"...

segunda-feira, 15 de outubro de 2012

15 de outubro

Hoje é nosso dia! Não de todos aqueles que receberam o diploma naquele mesmo dia que nós. Tampouco de todos os que o vem recebendo depois do dia em que nos formamos. Hoje o dia é nosso, só nosso. Não é deles, não...

Hoje é dia de quem respira fundo e enche o peito pra dizer-se Professor. É dia de quem vive pelo prazer de exercer a função.
Hoje é o dia daqueles que não reclamam da distância da escola, do preço do combustível, das dificuldades de acesso. Porque quando pisam na sala de aula e vêem-se diante de trinta pares de olhinhos curiosos esquece o caminho percorrido e, simplesmente, entrega-se ao prazer de lecionar...
Hoje não é o dia de quem reclama. Não há professores naquela sala da escola onde se reúnem, entre um sinal e outro, pessoas infelizes, debochadas, cansadas, desgastadas... Hoje, não. Hoje estão comemorando as pessoas que são felizes, as que se revigoram, que renascem a cada dia de trabalho pelo simples fato de conviverem com seus alunos...
É por amor, e não há outro jeito. É um erro querer permanecer na profissão se não se tem amor para dar. Um erro, um pecado, porque lidamos com o que Deus espera do homem. E se não fazemos com amor, vai tudo por água abaixo, e o que Deus espera do homem demora ainda mais a acontecer. Estamos esperando há quanto tempo esse mundo que Deus quer? E tudo por culpa de quem abraçou a profissão de professor com braços e todo o corpo endurecido...
Ah, eu amo ser Professora! E é para gente como eu que o Dia dos Professores foi criado! Agora mesmo, estou passando por uma experiência incrível: todos os dias quando vou buscar Antônio na escola sou recebida com abraços, sorrisos e afagos dos seus coleguinhas de classe. A professora dele já não mais os contém. Como podem saber que sou professora? Não sei. Só sinto. Só os sinto. E mato um pouquinho da saudade do tempo em que tive minhas turminhas: todos os dias beijos e abraços da mesma professora que lhes chamava a atenção sempre que necessário.
Não, não é pra qualquer um. Professor pode ser apenas uma palavra escrita numa Carteira de Trabalho, ou num contracheque. Mas, certamente, o portador de uma dessas duas coisas não saberá o que é ser feliz. Professor é todo aquele que se entrega ao prazer de ensinar. Sim, é um prazer! As alegrias, as conquistas são divididas naquele espaço chamado sala de aula. Não há via de mão única. É tudo recíproco, a gente fica contente com um avanço alcançado e se entristece com um retrocesso. E quem é Professor sai em busca de soluções para aquilo que está incomodando um aluno que tenha ficado para trás.
O dia de hoje é uma festa para quem não dorme direito. A noite que antecede o início das aulas é mal dormida, por conta da ansiedade. As vésperas dos dias de prova também, por conta da cumplicidade que se estabelece com seus alunos. São mal dormidas as noites que se passam enquanto um aluno vai mal, enquanto outro está doente. E perdemos o sono, definitivamente, se um aluno nos procura para confessar um problema na família...
O dia 15 de outubro é para os Professores que são procurados pelos alunos para confissões pessoais, para um choro incontido, para um abraço de conforto. Esses, sim, fazem jus à comemoração. Somente para aqueles que guardam nas caixinhas perfumadas os bilhetinhos, os cartõezinhos, os papéis de balas e bombons, as flores secas...
Quem guarda, como eu, as fotografias, os trabalhinhos, as lembranças do tempo em que foi mais feliz na vida, tem a honra de abrir a boca e dizer que o dia de hoje é seu. Os outros, não.
Àqueles que fecham a porta de suas salas felizes por verem o dia terminado, que contam no relógio os minutos para ouvirem o sinal bater, àqueles que trocam seus planejamentos copiando exatamente o que foi escrito nos anos anteriores, os que não pesquisam, os que não estudam, àqueles que estão mortos em seus espaços esperando a aposentadoria lhe acenar com a cova, àqueles que enxergam a profissão como mero meio de sobrevivência fica uma outra data para ser comemorada. Talvez, 02 de novembro...
Estão proibidos de serem incluídos nas homenagens os professores que confessam não gostarem do que fazem (e ainda há quem não suporte, e não confesse!). Hoje é dia de quem ainda chora, ri, arrepia-se, emociona-se, ensina, educa, seduz, conquista e, sobretudo, APRENDE!
Está perdendo tempo aquele que ainda não percebeu o mistério – ou milagre? – que é saber-se professor e honrar a profissão.
Sim, ainda há muito que percorrer, o caminho é longo para que possamos alcançar a qualidade, as condições de vida digna. Sim, é fato, formamos todos os demais profissionais e não somos valorizados por isto. Mas há um reconhecimento mais do que verdadeiro, e este vive diante dos nossos olhos e importa que saibamos nos alimentar dele: as nossas crianças crescem, e vai depender do que somos ou fomos pra eles o orgulho que sentiremos. É o futuro das nossas crianças que nos mostra se nossa escolha foi certa ou não.
De nada adianta o papel timbrado nas mãos nos outorgando o título de Professores, se não levamos a sério o que fazemos e, por agirmos assim, deixamos alunos pelo caminho, sem outorgar-lhes título algum.
Maus professores não são nada. Não há dia no calendário destinado aos que exercem com descaso a tarefa de educar. Bons Professores são tudo. A estes, está dedicado o dia de hoje. Para quem pertence ao segundo grupo, Parabéns!!!

sexta-feira, 12 de outubro de 2012

Criança

(Taí mais um texto, meio que encomendado... Como tem tudo a ver com o dia de hoje, resolvi postar logo.)

Criança é tudo!
É uma pena só nos darmos conta disto quando envelhecemos... Sim, as frases feitas, ensinamentos sobre como curtir a infância são elaboradas pelos adultos. Nada mais podemos fazer, porque criança é, sempre, o outro, alguém que não nós...
Ontem conversei com uns amigos sobre um cheiro que senti repentinamente, ao abrir a janela da minha sala de trabalho. Tratava-se do cheiro da minha infância: acontece que passei dias de férias e feriados prolongados aqui em Iguaba Grande quando era muito pequena e, de repente, não sei de onde, aquele cheiro das chaves da casa que o amigo do meu pai emprestava para que pudéssemos vir preencheu os espaços do meu gabinete e do meu coração no mesmo instante em que abri a janela. Ele veio junto com o vento que soprava do litoral. E, por segundos, vi a mão preta de papai (suja de graxa) balançando as chaves ao chegar em casa, numa atitude simples, mas que dizia tanta coisa para as crianças! Senti a mesma alegria, e meu sorriso, na janela da sala, teve oito ou nove anos por uns instantes...
Criança é isto. Para papai, uma viagem a fazer com seu fusquinha 68: verificar o estado do carro para garantir segurança, compras no mercado, um dinheirinho a mais para os gastos extras... Para mamãe, as compras dos biquínis novos, a arrumação das malas, as roupas a mais para lavar depois, na volta...
Mas para a criança, ah, para mim, a felicidade, a felicidade!!! Escolher os brinquedos para levar, contar os dias em que ficaríamos por lá, pensar na praia, nas voltas de bicicleta, nas corridas com Sheike...
E quando os dias acabavam e chegava a hora de voltar pra casa? Ah, aquele sentimento de tristeza, de saudade, misturados com a alegria de rever o que havia sido deixado em São Gonçalo... Aquela dor da ida acabava em pouquíssimo tempo, bastava que papai falasse em quantos minutos estaríamos em casa novamente.
Adultos não são mais crianças, infelizmente. Esta demarcação é outra obra magnífica de Deus. Quando a criança cresce, perde a graça, e é por isto que os adultos são tristes... Mas existe um segredo, que poucos conhecem: deixar-se crescer é opção de cada um.
Aqui em casa eu parei de crescer já faz tempo. Desde que cheguei à adolescência, graças a Deus. Porque com dezesseis anos comecei a trabalhar e minha profissão de Professora não me permitiu dar vez ao adulto que queria se apoderar de mim. Conviver com crianças é fabuloso, é rejuvenescedor! E optei por ficar por ali mesmo, com elas... Fui ficando – e gostando de ficar! – e foi assim que, ao chegar aos trinta e sete anos, Deus, já percebendo que o adulto se fortalecia e se preparava para o ataque de posse, deu-me Antônio de presente. E agora, há seis anos sou criança.
Faço questão de ser assim. Não me incomodo com as marcas que o tempo teima em imprimir no meu corpo. Eu sei, tenho rugas a mais, cabelos brancos insistentes, celulites, varizes, neurônios a menos que me confundem muito às vezes, e minha imagem no espelho reflete e ratifica a existência da relação entre a lei da gravidade e a idade que se tem... Mas, sinceramente – e quem me conhece de verdade sabe – não ligo muito para isto. Porque todas as vezes em que travo uma luta com Antônio e nesta luta sou a Mulher Maravilha vou com ele até o final. Umas vezes venço, noutras sou derrotada pelo Homem de Ferro ou pelo Diamante, e em inúmeras outras nos esquecemos da luta para cobrirmos um ao outro de cócegas! Quem se arriscaria a dizer que não sou criança?
Carrego uma criança em mim. Alimento-a diariamente. O Sol que me cumprimenta pela manhã recarrega a bateria daquela que será a companheira de Antônio durante o dia, a tarde, a noite, até que a bateria dele se esgote num sono profundo abraçado ao “Chaves”...
Não faço questão de crescer. Quero esperar por ele. Assim, minha menina me ajuda a dizer “não” quando é preciso, a ser honesta na relação com meus amigos, a sorrir quando estou contente, a chorar quando estou triste, a dizer a verdade acima de tudo, a brincar, a tirar fotos de sombras... Faço, hoje, tudo o que Antônio faz, também. Assim, vou recebendo de Deus as graças que ele destina às crianças. Respinga um pouco em mim, e delas sobrevivo.
Crianças são seres abençoados! Crianças são a aposta de Deus no coração do homem. São a nossa certeza de que há chance de as coisas ficarem melhores do que estão. Todos os dias quando confiro Antônio ao buscá-lo na escola agradeço a Deus por ter nos braços aquele mesmo menino de quem me despedi quando lá o deixei. Eu espero que Antônio saiba aproveitar seu tempo de criança, para aprender a carregá-lo consigo quando chegar a hora de encarar a adolescência. Por aqui, fico rezando. Ele já faz sua parte, é um menino e tanto, com todos os direitos a ser feliz que lhe são reservados! E, se tornar-se um adulto com rugas, varizes, cabelos brancos, e mesmo assim mantiver-se revestido da criança que hoje é, só terei a agradecer, a louvar a Deus por ver meus pedidos – tantos! – atendidos por Ele!

quarta-feira, 10 de outubro de 2012

Fidelidade


(Uma família abandona a casa, rumo ao Rio de Janeiro. E um fiel cãozinho malhado está no portão há três meses, esperando pela volta dos seus donos...)

A família precisou sair de casa, rumo ao Rio de Janeiro, para não mais voltar. Tudo aconteceu muito rapidamente e, pela lógica dos fatos, ele não foi consultado. Também não foi incluído nos planos de viagem. Ele ficou, então. Ele é meu vizinho. Ele é um cãozinho malhado...
Queria conseguir fotografá-lo. A fotografia falaria por si, eu já experimentei vários ângulos que traduzissem em imagens a dor de uma saudade. Acho que vou conseguir.
Ainda aguardo respostas sobre a presença de animais no céu. Quando escrevi o texto “Leão e urubu”, instiguei a polêmica. Mas enquanto a resposta não vem, prossigo crendo que lá no céu estão, também, os animais que convivem conosco na Terra. E espero não estar destinada ao inferno por pensar assim.
Dia desses interpelei um rapaz que agredia severamente um cavalo, usando chicotes. Ele pretendia que o bicho entrasse num espaço pequeno, e com força o empurrava, gritando palavrões e batendo muito, muito em seu lombo. Quando dei por mim tinha parado o carro diante do moço e defendia o animal como se fosse meu. Eu corri o risco de levar algumas chibatadas também. Mas Deus pôs suas mãos sobre aquele homem e impediu que o pior acontecesse. Tendo voltado à calma, conduziu o cavalo ao lugar de destino sem violência, pelo menos na minha frente...
O cãozinho está na casa vazia. Algum vizinho colocou uma pedra entre as duas bandas do portão, de modo que ele pode entrar e sair de casa. Ali lhe são trocados pelos que têm compaixão, água e alimento. Quando chove, tem a varanda para abrigar-se. Nos dias de muito calor, vai à rua, pegar uma fresquinha...
Todas as manhãs, quando saio de casa para trabalhar, vejo a cena da fotografia. E não há quem me convença do contrário: aquele bichinho espera pela volta de seus donos. Depois de ficar alguns segundos parado, olhando a rua, com o focinho empinado como quem pretendesse ser avisado pelo faro de que sua família está chegando, ele baixa as orelhas e dá uma volta pelo quarteirão. Muito atento, muito assustado, sobressalta-se com qualquer movimento brusco. Já reconhece os vizinhos que o “adotaram”: abana o rabo quando se aproxima a moça que trabalha na casa em frente, certo de que de sua sacola sairão dois ou três pedaços de pão dormido. A entrega é sempre acompanhada de um afago em sua cabeça, pêlo amarelo endurecido pela sujeira do tempo que passou.
O malhadinho está neste sofrimento há três meses. Quanto tempo será que dura a memória de um cão?
Meu pequinês “Sheike” avisava-nos a todos lá em casa quando papai estava chegando para o almoço. Inquieto, começava a dar pulos de um lado para o outro, a latir, a chorar... Demonstrava a alegria de quem está prestes a matar uma saudade enorme. Eu era criança, mas lembro-me bem de que pelo tempo que levava entre Sheike começar a dar sinais e papai chegar da oficina, a gente sempre comentava que o faro dele percebia papai a alguns bons quilômetros de distância.
Eu não sei por quanto tempo aquele cachorrinho esperará por seus donos. Fico imaginando que terá que sair de lá, se a casa for novamente alugada. E, dona de duas cadelinhas também encontradas perdidas na rua, entristeço por não poder atender aos apelos do meu coração e trazê-lo para a minha casa. Fosse assim, e teria todos eles no meu quintal!
Talvez não haja, mesmo, espaço reservado para animais como o meu vizinho malhado, no céu. Mas custa-me crer que Deus tenha posto criaturas tão sensíveis, fiéis, ingênuas no mundo para destinar a elas a solidão, o abandono, o sofrimento. O cavalo, aquele que citei no início do texto, pertencia ao rapaz. E depois da calma, o seguiu, fielmente, sem contestações, sem demonstrar revolta...
Uma experiência que assisti na televisão há algum tempo mostrava que os cães dos carroceiros (eles sempre têm um, já reparou?) são tão fiéis e amigos que abandonam até um prato de comida para não lhes perderem de vista. Sim, na experiência repórteres punham um prato de comida para um cão faminto e, assim que ele começava a comer, pediam que o dono saísse de perto com a carroça. E em nenhuma das tentativas o cão permaneceu comendo. Foram, todos, atrás de seus donos, deixando para trás a tigela com o alimento. Então, um bichinho deste morre e... acabou ali mesmo? Enterramos, e pronto?
A cadelinha de estimação da  minha avó permaneceu embaixo de sua cama durante todos os dias – e foram muitos! – em que ela lutou contra uma tuberculose que a levou aos quarenta e dois anos de idade. E meu pai conta até hoje, com os olhos marejados de lágrimas que ela esteve, do mesmo jeito, embaixo da mesa da sala onde o corpo de vovó foi velado. E seguiu o cortejo, e não deixou o cemitério, como fizeram todas as pessoas quando o enterro terminou.
Se os fiéis têm garantido o lugar nos braços de Deus quando lhes chega a hora de partir, há animais que passarão primeiro do que muitos homens e mulheres nesta fila.
Eu visualizo um Deus de barbas brancas como neve, com seus braços estendidos para um abraço daqueles que jamais experimentamos em vida. E penso que quando Deus se levanta do trono para receber cada filho que aqui na Terra fez-se digno de sua companhia, cães, gatos, pássaros, onças, lobos, leões e urubus fazem a saudação junto com Ele. E meu pensamento viaja ainda mais: imagino que Deus estenda os braços para apresentar o jardim do céu – o verdadeiro paraíso! – e, olhando para o infinito de beleza que o espera, o filho aviste cavalos, bois, zebras, búfalos pastando o verde mais bonito que existe, em total comunhão! Será pecado sonhar assim?
Seja como for, amanhã quando eu sair pra trabalhar verei o malhadinho lá, com aqueles olhos verdes, aquele olhar perdido, aquele focinho empinado. Eu não sei se lá no Rio de Janeiro alguém chora a sua falta, porque não sei de que forma se deram as coisas por ali, e não quero julgar ninguém. Mas vou passar por ele de novo e, de novo pedir a Deus por ele.
Assim me preparo para receber de Deus o ensinamento que Ele quer me dar, uma vez que me põe esta cena diante dos olhos diariamente. Alguma coisa Ele quer me dizer, e eu ainda não consegui descobrir. Talvez queira me dizer que o céu existe, e para todas as criaturas que por Ele foram criadas. Se for isto, meio caminho já foi andado, porque só um lugar como o céu recompensaria aquele cãozinho por tamanha fidelidade.

domingo, 7 de outubro de 2012

Nossos alunos levam da gente o que somos pra eles

(Orgulhosamente apresento a vocês o texto encomendado. Para quem deixou um pouco de si em cada aluno que teve...)
 
Há um ano iniciei a tarefa prazerosa de escrever aqui. E iniciei, justamente, postando um texto sobre o Dia dos Professores. Muita coisa mudou na minha vida entre o primeiro texto e este de hoje que, se não perdi as contas, é o nonagésimo: conheci novas pessoas, conquistei novos amigos, perdi uns tios, vi umas crianças nascerem, mudei de emprego, tive algumas decepções, disse adeus a dois dentinhos de Antônio, vi minha família se reintegrar, tornei-me “sogra” de uma menininha muito bonita chamada Eduarda...
É assim que fazemos, rapidamente, uma recapitulação do tempo que passou em nossas vidas: lembrando, com um sorriso nos lábios, das coisas boas que nos aconteceram...
Ontem estive por algum tempo ouvindo uma amiga falar sobre a forma como seus pais faleceram. E ela contava aqueles detalhes sofridos com um ensaio de sorriso no rosto. Uma alegria advinda da certeza de que a ordem natural da vida se cumpriu. Seus pais despediram-se dela de forma grandiosa, uma verdadeira entrega a Deus. Nenhum motivo para entristecer-se ao recordar.
Muitas vezes nos decepcionamos com alguém e sofremos bastante. Mas o milagre do tempo – este senhor tão bonito, como canta Caetano – faz com que até as recordações da decepção nos venham aos lábios com o contorno de um sorriso: já passou. Aprendemos com ela, e vem muito mais por aí. Quem duvida?
Nossos alunos levam da gente o que somos pra eles. Vasco Moretto é o dono desta frase, linda como ele! Eis a encomenda. Vamos lá, então.
Se puxar pela memória eu me lembro da ordem dos planetas do espaço. E também do resultado de qualquer uma tabuada que me perguntem. Sei de cor os advérbios de tempo, modo e lugar que enchiam as páginas do Livro de Verbos de Viveiro de Vasconcellos, o amarelinho, o mais vendido em minha época de estudante. Eu decorei todas essas coisas para algum dia de prova. Lembro delas, mas não de quem me obrigou a decorá-las.
Mas se ousar puxar um pouco mais, e buscar na memória os professores que tive, uma sensação gostosa, uma emoção que me deixa eriçada a pele, um marejado sentido nos olhos, tudo isto revelará o que guardo no peito, desde que entrei na escola, há quarenta anos: Tia Nice, do Jardim de Infância Menino Jesus, onde comecei minha trajetória – espaço de onde nunca mais tirei os pés, este chamado escola! Ela tinha cabelos pretos compridos e um sorriso do qual jamais me esqueci. E acolheu-me nos braços todas as vezes que chorei para entrar na sala. Sim, eu me lembro da tristeza que doía no meu coraçãozinho ao deixar as mãos de mamãe. E só os braços de Tia Nice me devolviam a paz, novamente. Não me lembro de nada, mais. Só do carinho dela comigo.
Depois que saí do Jardim e ingressei no primário colecionei os sorrisos delas em minha lembrança. Criança tem lugar de sobra pra guardar o amor que sente por seus professores, logo, guarda abundantemente e confortavelmente, sua recíproca.
Pouco me recordo sobre as temáticas utilizadas em sala de aula. Mas guardo cada afago, cada olhar carinhoso, cada elogio, cada bronca bem dada. Eu não fiz a primeira série porque já sabia ler quando lá cheguei. Fui, então, encaminhada para a segunda. Tinha apenas seis anos e meio. Foi difícil entender a matemática (aquela, da “decoreba”), e na quarta série fiquei para recuperação de fim de ano. No entanto, trago até hoje a lembrança da Professora Deise que, enquanto afagava meus cabelos, contava para a minha mãe da necessidade de me deixar mais tempo ao lado dela... Talvez meu amor pela Matemática tenha começado naquele dia. Deise nem sabe disto!...
Sobre coisas do ginásio já contei em outros textos. E, para além dos conteúdos que me foram passados nas salas de aula de mais uma escola pública por onde passei, meu coração está, ainda hoje, preenchido pelos amores experimentados. Fui aluna de Professores que amavam o que faziam. Durante as aulas de Matemática (olha ela aí!), um Professor Alberto que transpirava a ponto de molhar a camisa nos alertava dos perigos que havia do outro lado da janela: ele não gostava que ninguém sentasse próximo à janela da sala. E muitas vezes ensinava-nos sobre os perigos existentes no lado de fora da escola. Muito mais que um Professor de Matemática, Alberto cuidava de cada um de nós.
Mario Avelino descobriu minha hipermetropia e meu astigmatismo. Uso óculos até hoje, e até hoje agradeço a ele a descoberta. Estivesse limitado ao ensino da disciplina Ciências e eu dependeria de outro alguém atento às minhas dificuldades. Mas foi um Professor quem me ajudou a ver melhor o mundo. Jorge Vicente encantou-me com sua educação, postura, respeito pela profissão. Era o Professor revestido do orgulho de sê-lo. E ensinou-nos o básico, o essencial: levantar as mãos quando se quer falar em grupo, e aguardar a sua vez; pedir licença antes de falar, sair de sala, entrar; estudar, praticar e aprender para saber.
A Professora Marlene ensinou-me a ler os textos do livro de História. E aprendi a ler pausadamente, em bom tom para a classe, e passei a ser a “ledora oficial” da turma. Aprendi melhor a disciplina, os acontecimentos, melhorei na matéria. E tudo aconteceu com um sorriso dela... Um “vá, você consegue”, diante da minha timidez...
Dali para os amores não levou muito tempo. E eu me apaixonei por alguns deles, no meu caminho. E, mesmo confusa entre sentimentos tão parecidos, trago até hoje comigo o que foram para mim.
Hoje, criada, posso sentir ainda a pele arrepiar, o coração bater forte e as lágrimas chegarem aos olhos diante de um Professor que me revele amar o que faz. E, sentada junto a uma plateia de cem, duzentas pessoas, ouço o coração selecionar-me aqueles pelos quais vale a pena viver: meus queridos professores Jair Passos e Vasco Moretto, novos amigos, novos amores, a vocês dedico este texto. Sei que é pouco e pequeno diante de sua grandeza, mas é o que sei fazer, e onde dou o melhor de mim.
Que o Senhor nosso Deus nos abençoe e nos acompanhe nesta batalha que escolhemos travar ao longo de nossas vidas, defendendo a classe, defendendo a melhoria da classe, defendendo a valorização da classe.
Levo comigo o que vocês foram e são para mim: chama acesa iluminando meu sonho, do qual não desisto, do qual não me desfaço. O sonho de que um dia veremos nos nossos alunos aquilo que tanto desejamos. A figura do homem de verdade, do homem de bem. Que Deus jamais nos permita desistir de sonhar. Feliz Dia dos Professores, para os que o são de verdade! Amém!