sábado, 29 de setembro de 2012

Já passou

(Eu não sei se a vida está passando rápido demais, ou se aceleraram os ponteiros do meu relógio... Sei que quando procuro pelo tempo, ele já passou. E se a vida é um milagre, um presente de Deus, o que andamos fazendo com esse tempo que dá conta dela?)


Acordei com vontade de escrever sobre a vida. Viver, pra mim, significa respeitar o tempo... Entre lavar o rosto e começar este texto, um tempo passou, e esse tempo não existe mais.
Sempre que lavo o rosto pela manhã, depois de secá-lo com a toalha, confiro-lhe as mudanças. Minuciosamente estudo as rugas, a expressão, as acnes, que durante minha adolescência tanto me fizeram chorar quando apareciam soberanas nos dias de festa...
Não percebo graves diferenças. E, assim, seguimos durante anos, envelhecendo no melhor período de nossas vidas, porque envelhecemos todos os dias...
Mas basta que exercitemos uma ação para darmo-nos conta de que o tempo já passou: isto acontece quando abrimos um álbum de fotografias, ou constatamos que nossos filhos (ou sobrinhos, ou alunos, ou vizinhos) já saíram do nosso seio.
Antônio está vendo televisão, agora. Acordou maior. Eu não meço. Sei. Disse-me “bom dia!” esfregando os olhos, foi ao banheiro, voltou, ligou a TV, escolheu o canal preferido, ajeitou-se no sofá e gritou: “mãe, me traz um lanche!...”
Para mim foi ontem que a rotina era bem diferente, aqui em casa: troca de fraldas, banho, peito, carrinho para um banho de sol... Não havia palavras, só gemidos e, no entanto, a mesma comunicação. Se o tempo passou para meu menino, é sinal de que passou para mim, também, embora eu, às vezes, não queira ver os ponteiros do relógio quando me olho no espelho...
Preocupa-me estar chegando ao final essa minha passagem pela vida. Sim, é certo que muita gente dirá que aos quarenta e quatro anos ainda há muito o que viver. Mas quando olho para trás e vejo que quarenta e quatro anos já se passaram, temo pelo que foi feito até agora.
É um cálculo, lógica matemática, talvez: se há tão pouco tempo eu tinha vinte anos, em bem menos terei sessenta. E quando eu tiver meus sessenta anos, faltará menos ainda para chegar aos oitenta, porque a vida anda passando rápido demais, as pessoas andam se preocupando com coisas tão fúteis que os relógios aceleraram e pouca gente está se dando conta disto...
Não, eu não tenho mais trinta e sete anos. Porque foi com trinta e sete anos que dei à luz Antônio, e ele já está caminhando para os seus sete anos. Quem não teve filhos pode perceber o avançar de sua idade observando um sobrinho, ou um vizinho que viu nascer...
A verdade é que a bênção nos foi dada quando fomos gerados: na disputa dos espermatozóides, o milagre das mãos de Deus escolhendo-nos para sermos vitoriosos, já ao alcançarmos com bravura o óvulo! Fico aqui, louca, a imaginar o orgulho com que Deus nos concede a vida. E, um tanto sem graça, diante do que fazemos com a vida que recebemos dEle.
Hoje é sábado, e um sábado sempre nasce com esperanças boas. Há uma energia positiva em torno dele. Pessoas fazem planos para os sábados. Prometem, para si mesmas ou para outros, recomeços, mudanças de atitude... Hoje tem gente pensando no que vestir à noite, no que comer... Tem gente que vai se casar, que está pensando em como será feliz ao lado de quem ama... Tem gente fazendo prova, pensando no futuro... Tem gente trabalhando satisfeito da vida, e tem gente que, insatisfeito por trabalhar num sábado, pensa em mudar de emprego, visando a tão sonhada folga... Tem religiosos que hoje não fazem absolutamente nada, porque é sábado.
Bem, eu também tenho uma porção de coisas para fazer, porque é sábado para mim, também. Mas não conseguiria fazer nada se não viesse aqui, justamente hoje, para dizer que troquei as pilhas do relógio da cozinha e que os ponteiros estão lá, gritando que a vida está passando, que já passou.
O segredo é saber olhar o relógio. Porque se a gente ficar limitado a ouvir os toques, os minutos passam enquanto a gente os ouve. Se a gente ficar limitado a olhar as voltas que o ponteiro já deu, os minutos passam enquanto a gente os observa. Mas se a gente olhar para o relógio como ponto de partida para o que se quer fazer, ah!, ele se transforma em nosso cúmplice, nosso amigo, e nos reserva todo o tempo do mundo para vivermos bem...
Deus criou o maior dos relógios: o sol! E o astro-rei chega todos os dias em nossas janelas e nos faz o convite à vida. Importa-nos lembrar que Deus não nos convida para uma vida obscura. Se fosse assim, o sol teria um aspecto bem diferente... Deus nos convida a amar!
O tempo passa para que amemos! Não há presença de Deus em nada do que fazemos contrariando nossas vontades. Dá tempo de fazer milhões de coisas enquanto o ponteiro fica lá, mecanicamente trabalhando. Ele faz a parte dele, devemos fazer a nossa...
Enquanto eu escrevia uns parágrafos acima, Antônio entrou no quarto e cobriu-me de beijos... Eis a sua parceria na minha história de hoje. Ilustrou a mensagem que quero passar: quantos beijos é possível se dar em um minuto? Quanto tempo leva para pronunciarmos a palavra “perdão”? Quanto para pronunciarmos a palavra “perdoo”? Uma oração para aproximarmo-nos de Deus, quanto tempo leva? Uma ligação para alguém que está longe e de quem sentimos tanta saudade duraria muito? Um abraço, já foi cronometrado? E, no entanto, ações como essas ficariam guardadas em tantos corações por toda a eternidade...
Todas as vezes em que abro os olhos pela manhã e dou-me conta de que estou viva para mais um dia, agradeço a Deus. Olho pro lado, vejo Antônio, vida que ainda enxergo minha. E agradeço ao Senhor por ter-me dedicado esta responsabilidade: a de fazer com que meu filho respeite o tempo que é dele aprendendo, assim, a viver. Para ele falta muito ainda, o relógio-baú de Deus está cheio de gotinhas de tempo para derramar sobre sua cabecinha cheia de imaginação e cabelos pretos... Só espero saber ensiná-lo a aproveitar-se do tempo de maneira boa. Boa pra ele, boa para o seu próximo.
Meus minutos dedicados a esta conversa já se passaram. Espero que Deus esteja contente com o uso que fiz deles. E espero, sinceramente, ainda ter muitos, muitos outros minutos para viver, para escrever, para amar, para trabalhar, porque disto componho minha vida, é assim que respeito o milagre do meu tempo.

quarta-feira, 26 de setembro de 2012

Vendem-se oportunidades

(O futuro já pode ser comprado: as bancas de jornal estão vendendo fascículos preparatórios para os exames do ENEM. Uma dúvida atingiu meu coração: quem será avaliado, agora, a Escola ou o Sr. Joel, o jornaleiro da minha rua?)

O sucesso do futuro das nossas crianças está nas bancas. Não perca esta oportunidade: vá a qualquer uma delas neste sábado e, se tiver um bocado de dinheiro, compre-o. Depois, faça isto pontualmente a cada sábado, não perca nenhum dos fascículos da coleção que levará aos melhores resultados do ENEM. Garantindo a frequência às bancas, a escola está dispensada de suas responsabilidades. Os tais dos fascículos prepararão os alunos para o exame. Está tudo combinado.
Aposto na correria em direção ao Sr. Joel da banca da esquina da minha rua. Não vejo tanta procura por um jornaleiro desde a época da coleção dos álbuns de figurinhas do Walt Disney, ou mesmo da manhã seguinte à da quarta-feira de cinzas quando aglomerados de adultos lutavam por conseguir a revista Manchete com as fotos dos famosos nos bailes e desfiles de carnaval. Uma época boa, em que a grande novidade era ver o maiô cavado da madrinha de bateria da escola de samba...
Não, desta vez, neste sábado, meninos e meninas que dispuserem de um trocado correrão em busca da apostila preparatória para o Exame Nacional do Ensino Médio. Disfarçadas entres eles também estarão as escolas, com seus professores e diretores ávidos para saberem o conteúdo dos folhetos...
Para mim, é o fim. Espanta-me saber que as oportunidades estão sendo vendidas. E, agora, nas bancas de jornal!
A primeira vez em que percebi o convite à compra, estava passando em frente a uma escola particular. Na calçada, um outdoor anunciava matrículas abertas para os cursinhos aos sábados: preparatórios para o ENEM. E havia vagas, inclusive – pasme! – para os alunos da própria escola!
Ao ver a propaganda, segui viagem incomodada (ah, eu não controlo este meu sentimento!...): como poderia ser isto? Se o famoso, temido exame avalia o desempenho da oferta do Ensino Médio pela escola, no dia da prova os alunos seriam avaliados, então, pelo cursinho que fizeram no sábado ou pelas aulas de segunda a sexta?
E quanto ao planejamento da escola em relação aos alunos que não podem comparecer aos sábados? Planejam que sejam aprovados? Como se dará a “bruxaria”?
Já faz um bom tempo que fico aguçada tentando entender o objetivo desse tipo de avaliação paraquedas...  Agora, estou quase concluindo minha linha de pensamento, multiplicando o preço dos segundos de comercial no horário mais nobre da TV pelo preço dos folhetos que serão produzidos por uma editora bem conhecida nacionalmente... O Ensino Médio das escolas – públicas ou particulares – pode ir muito mal sim, senhor, porque o seu bom resultado dependerá agora somente da coleção completa adquirida nas bancas.
Estou apoquentada, verdadeiramente. Preocupada, porque se a moda pega, logo, logo teremos à venda as apostilas preparatórias para a Prova Brasil e afins. Podemos fechar os portões das escolas.
Sinto pela parte – apesar de pequena, ao menos sob meus olhos – dos professores que ainda insistem na profissão por amor à causa. Essa parte é a que se preocupa em garantir segurança aos seus alunos quando diante do envelope pardo que lhes traz o exame.
Dispensados os suores na palma das mãos, trocamos o real significado da aplicação da prova – pelo menos, o que eu supunha ser – por uma boa quantia que circulará nas empresas de comunicação, aumentando ainda mais os respectivos lucros.
Eu quero descer, pare o mundo! Todos os dias da minha vida levo uns tapas na cara para acordar de um sonho que, insistente, teimo em acreditar. No meu sonho, a escola pública (porque é esta que defendo!) obedece fielmente à lei e oferece qualidade na educação de seus meninos e meninas. Obedece à lei, nada faz por caridade. E esta qualidade se reflete nos exames paraquedas. E eles não assustam os alunos, porque são instrumentos fundamentais para a avaliação minuciosa do sistema, a verificação das falhas em seu processo e revisão das práticas cotidianas. Este exame em que acredito é ponto de partida, não de chegada. E este exame não pode ser vendido nas bancas, porque cada esquina é uma, cada rua é uma, cada casa é uma, e dentro de cada lar há uma realidade diferente, uma constituição de família diferente, uma pregação de valores diferente, uma crença diferente. E um mesmo exame vendido nas bancas de jornal de todo o Brasil não traria a resposta que eu esperava que trouxesse o exame dos meus sonhos.
Diante deste desespero de ver terem visto lucro financeiro às custas das precárias condições em que a escola sobre-vive hoje, minha confusão mental me dá sono. E opto por ir dormir porque, sinceramente, do MEU sonho prefiro não acordar.

segunda-feira, 24 de setembro de 2012

Um “sim” de cinquenta anos


(Estar ao lado dos meus pais no dia em que comemoraram Bodas de Ouro inspirou-me... Verdadeiramente, é uma bênção divina testemunhar uma vida de companheirismo e cumplicidade. Cinquenta anos não são cinquenta dias!)


Eles disseram “sim”, um para o outro, há cinquenta anos.
Há cinquenta anos moram sob o mesmo teto. Eles são meus pais.
Num sábado como o de hoje, às dezoito horas, na Matriz de São Sebastião, em Niterói, uniram-se em matrimônio. Prometeram amor e fidelidade eternos, em qualquer circunstância de suas vidas...
Saíram da Igreja casados, felizes. A lua-de-mel foi em São Paulo, no Hotel Ipiranga (esquina da Avenida Ipiranga com São João). Fotos lindas, de um luxo marcante, tendo em vista a pobreza com a qual se vivia... Meus pais sempre foram elegantes, apesar das condições financeiras precárias. Quando completaram um ano de casados voltaram ao mesmo hotel, para comemorar... Coisa mais nobre!
A contagem do tempo deu-se pela vigília dos calendários (como somos tolos: ansiosos por controlarmos o tempo, aceleramos sua passagem...): as contas a pagar, os aniversários de toda a gente da família, o fim do mês, a primeira gravidez...
Katia chegou primeiro. Quarto com móveis feitos pelo meu pai, e com cortinas feitas pela minha mãe. Talvez não haja quem acredite, mas no quarto da menina que chegaria havia, nas janelas, cortinas de plástico rosa, com motivos da Disney. Lindo quarto! Simples e lindo!
Depois, folhas de calendários arrancadas, chegou a vez da segunda gravidez. A espera por um menino foi derrubada pela segunda menina, eu. Daí, o corte nas trompas e a certeza de que estava bom por ali mesmo. O medo de receber nos braços a terceira garotinha foi maior do que o de arriscar o “Carlos Henrique”...
Assim, Deus formou-nos a família abençoada. Pobres, muito pobres. Mas muito felizes. E as páginas dos calendários voaram da geladeira vermelha que sustentava o pinguim na mesma velocidade como Antônio quebra o protocolo e cresce bem na minha frente, e nem me espera permitir.
Pai e mãe. A referência nos foi garantida. Caras feias na hora das broncas, educação à base da promessa do cinto (já contei esta história), beliscões seguidos da ameaça “não chora!” quando os ensaios de pirraça aconteciam na rua. E entre uma e outra distância física, um carinho, um zelo enorme! E a preocupação em prover escola boa – e era a pública! – e acompanhar nossa vida lá dentro. Eles nos disseram quando chegamos à quarta série: “Agora vocês vão. Nós as acompanhamos até aqui. Não fizemos a quinta série, não sabemos a matéria. Agora, é com vocês”. E ingressamos no ginásio confiantes e responsabilizadas por manter o nível de excelência que tínhamos adquirido na nossa escolinha paroquial onde cursamos o primário...
Muitos meses rabiscados nos calendários sobre o buffet de fórmica cinza da cozinha. Meus pais trabalharam pesado, e conseguimos terminar o segundo grau. Neste entremeio, um pai mecânico e uma mãe que fazia frete escolar – num fusquinha 66! – conquistaram a casa própria e o segundo carro da família. Ah, e também um telefone residencial que, naquela época – e quem é dela irá recordar-se – custava caríssimo!
Os fins de semana passávamos sempre juntos. A noite dos sábados eram destinadas às voltinhas de carro. O roteiro, previsível e maravilhoso: seguir a orla das praias de Icaraí e São Francisco. E com o objetivo divertido de escolher o prédio onde se iria morar qualquer dia...  Papai esticava sempre até o prédio onde hoje está instalado o “Velho Armazém”, contava a história de como meu avô perdeu terrenos ali nos arredores por conta do vício no jogo. Olhávamos a Igrejinha de São Francisco e retornávamos. Quando passávamos por Niterói, a parada certa: saltávamos do carro e andávamos pela calçada da Mesbla para ver as vitrines e sonhar com as roupas e móveis da moda. Papai comprava churros e vínhamos embora para casa. Umas conversas sobre a alegria do passeio e... cama.
Dormimos algumas noites, o tempo foi passando, compraram uma casa maior, e num instante moravam na nossa casa quatro adultos. Eu não me lembro bem quando foi exatamente que isto aconteceu. Sei que, quando dei por mim, estava trabalhando pela manhã e à tarde e estudando à noite, na mesma época em que Katia se preparava para casar. Só ali me dei conta dos cabelos brancos deles: no meu pai, já poucos, porque poucos eram, mesmo. Na minha mãe, mechas alternadas num grisalho de parar o trânsito!
Passaram juntos o susto e o sufoco da separação da minha irmã, primeira na família, na geração dos sobrinhos deles. Uma vergonha, eles jamais negaram-se a revelar. Foi difícil, eu me lembro bem. Uma separação é difícil para todos os envolvidos. Mas estavam juntos, e foi juntos que suportaram a dor de ver uma filha sofrer.
O tempo se arrastou mais um pouco e meus pais me levaram ao altar. E foi diante deles que, anos mais tarde, eu noticiava o fim do meu casamento, também. Contei aos dois que, juntos, ouviram minhas dores e se compadeceram de mim, embora tenham sofrido tanto, também.
Mas o tempo não para e, embora o casal não estivesse preparado para ver a segunda união de sua filha, Katia casou-se novamente. E o dia mais feliz da vida da minha irmã foi compartilhado com papai e mamãe: Miguel estava a caminho! Uma gravidez tão desejada, uma notícia tão inesperadamente boa, um verdadeiro rebuliço numa casa onde já não se imaginava ver correndo uma criança. Meus pais foram testemunhas da alegria do casal.
Miguel chegou, abençoado e abençoando. E, enquanto contavam os “tempos” de Miguel, eu os apresentei Antônio, no meu exame de resultado POSITIVO... Não hesitei em sair de Iguaba em direção a São Gonçalo só para contar a novidade. E foi para o casal que contei (mas esta história também já foi contada...), num sábado à tarde, na sala de estar.
Hoje a família é completa. Tiveram duas filhas, e os meninos, Deus deixou para presenteá-los com os netos Miguel e Antônio. Obra perfeita, obviamente, inquestionável!
E, justamente por isto, hoje é dia de festa. Porque há cinquenta anos esta história começou a ser contada naquele livro dourado onde eu imagino que Deus dispõe-se a escrever as que lhe são mais especiais.
Sem o “sim” de Walter e Vanda não haveria Katia e Karla, tampouco Miguel e Antônio. Isto é bênção, e por isto devo agradecer a Deus, em todos os minutos da minha vida. O que passa disto, é julgamento, coisa de homem, de mundo, de inferno.
Quisera desejar aos meus pais outros cinquenta anos lado a lado. Isto fica a cargo de Deus. Por ora agradeço pelo dia em que decidiram viver sob o mesmo teto. Aquele dia destinou-me vida. Cinquenta vezes obrigada, Senhor!


domingo, 16 de setembro de 2012

Ser o outro

(Há quarenta e quatro anos venho me construindo, me transformando no que sou. No entanto, há pessoas que vivem a vida tentando ser o que não são. Elas tentam "ser o outro". )

Eu sou. Levei quarenta e quatro anos para ser. E agora, sou. Por enquanto...
Todos os dias a gente é, porque as mudanças estão aí, todos os dias, e devemos dar graças a Deus por elas. As circunstâncias da vida que nos modificam têm, exatamente, este objetivo. Quem não muda, vegeta. É um ser diferente de humano. Bem diferente!
Mas existem virtudes, características, que nos são próprias. Ninguém pode ser o outro, não há como. Deus nos criou a cada um, com suas especificidades, suas peculiaridades, seus jeitos, enfim.
Fico triste quando vejo alguém querendo ser o outro. Porque quando se quer ser o outro, não se quer ser aquele que se é. E isto é complicado, não?
Não há sustentação quando não se é, de verdade. Faz-se pouco, realiza-se pelo meio, vive-se outra vida. Particularmente, penso que quem quer ser o outro está predestinado a adoecer, a morrer. E isto muito me preocupa...
Quem tem caráter, mantém-se firme. Muda, certamente, porque aprende enquanto vive. Toma as experiências vividas como ensinamentos. Mas é constante em suas ações, porque é verdadeiro, e viver de verdades é muito bom. Com a verdade se caminha longe, inenvergável, indestrutível, porque ela é única, enquanto a mentira e a falsidade são duvidosas, medíocres e confundem seus autores...
Quando admiramos uma pessoa pelo que ela é, a primeira coisa que nos chama a atenção é sua atitude. Ter atitude não quer dizer sair por aí “batendo de frente” com tudo e com todos, ou ser contrário a qualquer tipo de ação do outro. Não! Na maioria das  vezes, é justamente o oposto: saber ceder, saber ouvir (que exercício!), saber aceitar o tempo das coisas, as opiniões alheias. O segredo, quando se quer convencer a alguém do contrário do que pensa, é o argumento. Eis o mistério, a grandiosidade: saber argumentar. Falar com propriedade, porém, com voz baixa, com calma, com decência, com educação. E, aí, deixar no outro sua marca, sua impressão, de tal forma que este seja tão seduzido pela inteligência da sua organização de pensamento que mude de opinião...
Não me interesso por gente que inventa um “tipo” pra ser... Porque não se sustenta, cai em contradições frequentes, não segue adiante.
E entristeço-me, porque é grande e preciosa perda de tempo viver a vida estabelecendo um papel a desempenhar que esteja tão longe do que a verdadeira face – definida por Deus – determina. Cobre-se a face sob máscaras de todas as cores. E, no entanto, nada se consegue esconder: lá está o rosto frio, digno de pena.
Sabemos o dia em que nascemos, mas não sabemos o dia em que vamos partir... Mas a despeito da data marcada no calendário divino para o encontro com Deus, há tempo de revermos nossas ações. Sempre. Se há sol lá fora, se há um novo dia, se uma criança nasce, se há música tocando ao longe, se pássaros voam, se ovos se abrem, é porque há chance. Que tal mudar?
O exercício nem é tão difícil assim: basta olhar para o espelho. Cada um sabe, na sua intimidade, quem é que está lá do outro lado do objeto, verdadeiramente. Cada defeito, cada qualidade. Cada um sabe o que tenta esconder atrás da máscara. Cada dor, cada medo, cada covardia...
Imagina a alegria de Deus ao saber que hoje um filho seu decidiu abandonar a personagem e viver a sua vida, ser quem sabe que é!... Não há porque temer. Há um Deus que nos conhece sobremaneira! Vergonha de que, de quem?
Com tudo o que há de errado comigo, carrego o orgulho de ser quem eu sou. De não invejar ninguém, de não desejar ser diferente. De ser autêntica em minhas atitudes que, para quem bem me conhece, agora já estão sendo até previsíveis... Não há lugar na minha vida para perda de tempo cuidando do que é do meu próximo. Isto a ele cabe, unicamente.
Assim, sigo vivendo a vida que é minha. Cuidando para que Antônio aprenda a viver a dele, também. Como mãe de um menino ainda tão pequeno, ajeito-lhe os limites, mas sempre mostrando a ele as consequências das atitudes que se toma durante a vida. Com exemplos educo Antônio. Ele hoje sabe que é responsável por cada atitude que toma.
Assim espero estar contribuindo para que também ele construa a sua personalidade, independentemente da personalidade do colega ao lado. Com isto me preocupo, pois é ele quem vai se entender com Deus, quando chegar a sua vez. Da mesma forma, preocupo-me comigo. Em manter minha postura verdadeira, porque tem gente que confia em mim por isto, e não posso decepcionar quem aposta suas “fichas” em mim.
Eu sou, graças a Deus. E para quem quer ser o que não é, digo que ainda há tempo de desistir desta loucura. Deste fardo pesado demais para carregar por uma decisão profana de renunciar aos propósitos de Deus.

quarta-feira, 12 de setembro de 2012

Primeiro amor

(O texto de hoje é, neste momento, o meu preferido: Antônio está apaixonado, e descobriu que seu amor é correspondido! Há alguma coisa mais importante do que isto? Quem se arrisca a contestar?)

Ele já havia mandado algumas indiretas, em conversas no carro, na saída da escola. Mas eu não havia percebido...
Ontem, na hora em que fui buscá-lo, pela porta da sala de aula olhei a cena mais bonita da minha vida. Cenas podem ser, sim, as mais bonitas da nossa vida, porque cenas são pontuais: a vida passa, as coisas são substituídas em sua importância. Assim, a vida segue. E aquela cena de ontem foi, verdadeiramente, para mim, a mais bonita, até que a próxima aconteça: Antônio sentado, copiando o dever do quadro. Mão esquerda na testa, meio que apoiando a cabeça, um olho no quadro, outro nela, na Eduarda.
Antônio estava atrasado, coisa que há muito tempo não acontecia com ele. Essa fase passou, graças a Deus. Fases passam, graças a Deus! Mas ontem ele estava atrasado por uma justa causa: uma menina linda, com cabelos pretos, franjinha, e um arco vermelho com um laço aveludado, tirava todas as atenções do meu menino. E eu vi o amor. Aquele do qual mal nos lembramos quando chegamos aos quarenta e quatro anos...
A professora avisou-me do seu atraso. Nada fiz. Sorri. Eu e Antônio nos falamos pelo olhar, em certas horas não são necessárias palavras. Ela estava tão próxima dele, como seria possível ele dar conta de um dever no quadro com aquele doce de menina ao seu lado?
Sentei-me na mureta da escola e o esperei. E, tentando lembrar-me dos meus amores da infância, só consegui visualizar Renato, menino pelo qual me apaixonei quando estava na quarta série, mas que ninguém soube, porque ele tinha enormes orelhas de abano e, eu, vergonha de declarar...
Antônio segurava com as mãos o cabelo, que está crescido. O movimento de ir e vir caderno/quadro e, no meio do percurso, a olhadinha para Eduarda. O sorriso, quando eu lhe disse “estou aqui” e ele me respondeu “já vi”... O sorriso dele me apontou a menina. Estava lá, a escolhida para ter todo o amor do meu filho!
Dias atrás conversou com o pai: queria comprar uma caixa de bombons e uma rosa para dar à menina. Depois, foi comigo o desabafo: que ela chegara há pouco na escola. Que era linda, linda! E que estava namorando com ela. Quando eu perguntei se ela também estava namorando com ele, respondeu-me “não sei”, elevando os ombros numa atitude própria da inocência que eu queria tanto – embora isto seja um absurdo! – que meu filho não perdesse...
Pediu-me para ir com uma roupa diferente numa tarde dessas, quando lhe punha o uniforme... Estava me dando sinais e eu, pateta, não percebi.
Mas ontem, aquela cena... Ah, aquela cena! Deus a conserve em minha memória afetiva enquanto eu viver, não quero esquecer o que vi. Um corado diferente nas bochechas, um sorriso “entregador”... E o orgulho veio depois, a prova de que faço o certo com ele, embora eu – e todas as mães que existem, creio! – ache sempre que estou errada nas minhas ações de educadora: segurou firme minhas mãos quando deixou a sala e me disse que precisávamos conversar...
Eu já sabia e, enquanto nos aproximávamos do carro, já agradecia a Deus a bênção que Antônio é, para mim. Agradecia por estar vivendo aquilo, aqueles instantes tão importantes na vida que já é dele. Entrou no carro, ajeitou a mochila, aproximou-se de mim e disse-me: “Mãe, Eduarda gosta de mim, também. Ela quer ser minha namorada.”
“Como assim?”, eu lhe perguntei, improvisando uma expressão de alegria, surpresa, dúvida... E, ligando o carro, vim para casa escutando sua história: ele falou para Eduarda que todos os meninos da sala estavam gostando dela – inclusive ele! (corajoso, esse meu menino...) – e ela lhe confessou que é dele o seu coração. Simples assim, como se diz na linguagem virtual. Agora, resta ao pai (promessa feita) comprar, na ordem imutável, uma caixa de bombons, uma rosa e uma boneca Barbie sereia...
Coisa mais linda! O bom disso tudo não é ver um filho que nasceu ontem completar seis anos e revelar o homem que será. O bom é saber que todas as orações que fiz a Deus foram ouvidas e, no Seu tempo, vão sendo atendidas... Quando me lembro de Antônio no meu ombro, vomitando, vomitando, vomitando o leite que acabara de receber do meu peito, quando lembro que a orientação do médico era a de ficar com ele no ombro por quarenta e cinco minutos, quando me lembro do cansaço que sentia... As coisas pareciam que não iam avançar, muitas vezes chorei tanto minha solidão com ele, sofri tanto e, no entanto, era possível que me esquecesse de tudo, bastava que Antônio lançasse um sorriso pra mim. Uma boca banguela aberta, cheia de vida, e pronto: passava todo tipo de dor.
Ontem, quando chegamos em casa, ele me disse que era o dia mais feliz da sua vida, por conta de descobrir que seu amor por Eduarda é correspondido. Não fez o dever de casa, e eu nem insisti, percebendo a sua ansiedade! Optou por fazer o desenho, a carta de amor pra ela:


A alegria do desenho fala por si, revela o sentimento.
E eu, novamente, aprendendo com meu filho de seis anos. Desta vez, que o amor é mais importante do que tudo nesta vida. Que é prioridade, que é felicidade. Que merece atenção e respeito. Que deve ser declarado, confessado, compartilhado. E que nada nesta vida se compara à emoção de se viver o primeiro amor.

sábado, 8 de setembro de 2012

Por viver

(A alegria de Antônio por viver inspira-me! Agradeço a Deus, todos os dias, por ter em casa esse professorzinho que me ensina a dar valor a cada segundo do meu dia...)


Antônio vem me ensinando, todos os dias, que viver é maravilhoso.  Bem, na verdade, não sei se eu é que tenho ensinado isto a ele. Pouco importa. O bacana é ver como meu menino ama a vida!
Agora mesmo, está lá, dormindo, mas foi para a cama contra a sua vontade. Depois que almoçamos, eu impus-lhe a ordem: Hoje é sábado, poderá ficar acordado até um pouco mais tarde mas, para isto, precisa dormir...
Ficar acordado até mais tarde significa viver mais, para Antônio. Foi uma troca razoável e, depois de me olhar fixamente nos olhos – treinamento do qual não lhe deixo escapar – aceitou a imposição. É isto, eu imponho, mas ele sempre tem a chance de argumentar. Às vezes acaba me convencendo. Menino inteligente, este! Obrigada, Senhor!
A alegria de Antônio é por viver: acorda cedo, faz “seu trabalho” de abrir janelas e portas, liga a TV e fica lá, interagindo com seu desenho preferido. Algumas vezes sou acordada pelos seus gritos, pelo barulho dos pulos que dá de um sofá para o outro... Noutras, assiste com olhos fixos na telinha a vida de Jesus. Quando chego perto me pergunta coisas, ou me conta o que aprendeu com a entonação da emoção de quem sofre com as injustiças feitas com Cristo.
Cada minuto para ele é importante. Vigia o relógio. Já descobriu que para que o minuto passe é preciso que sessenta segundos se vão. Dá valor aos sessenta toques do ponteiro do relógio, me ensina a fazer o mesmo. E não é que dá tempo de fazer muita coisa? Já experimentou? Pois tente!
Dormindo “pesado” agora, eu o observo. Lindo, meu filho! Cara de homem, expressão séria de quem está resolvendo algum problema em seu sonho...  Completamente desligado do meu tempo, agora, vive o seu. Costuma me perguntar com o que pode sonhar. Eu lhe digo uma personagem, um super-herói, e ele agradece. Constrói o próprio sonho, determinado. E, depois, entregue aos anjos, vive o sonho que lhe vier, com a mesma intensidade com que vive ao acordar.
O viver de Antônio é limitado, ainda. Isto, por minha culpa. Os adultos é que tolhem as crianças. Somos nós quem lhe apresentamos o medo, toda criança nasce corajosa. Somos nós quem lhe apresentamos a decepção, toda criança nasce cheia de esperanças. Somos nós quem lhe apresentamos o não. Criança é sim. Criança é sim, porque criança é vida, e a vida é um sim!
Ando cheia de problemas, enquanto Antônio tem solução pra tudo: esconde as meias embaixo do sofá quando peço que as guarde. Ora, se lhe digo que “não quero vê-lo com as meias nos pés” e que “não quero ver essas meias por perto”, ele me resolve o problema. Se lhe digo que quero que coma o pão todo e que não quero ver sobras, as cadelinhas ganham felizes os pedacinhos picados. Não, Antônio não está errado em suas atitudes. Errada estou eu, ao pedir-lhe coisas tão absurdas. Ou peço coisas erradas, ou da forma errada. Antônio está certo.
Quando abre os olhos, olha para a janela. Quer ver logo se é sol ou chuva, dia ou noite, frio ou calor o que o espera para viver. Anima-se ou desanima-se, então. Mas nunca desiste: criança tem sempre opção. Vai depender do que vir pela vidraça a brincadeira a ser selecionada. Pronto, está vivendo, a despeito do que o céu lhe reservou.
Há seis anos e meio Deus me mandou esse presente, para que eu envelhecesse sem esquecer-me de louvar a Ele pela vida. Há seis anos e meio, em vez de entristecer-me, alegro-me, aprendo. Digo a Antônio que “sei de todas as coisas” (as mães têm essas besteiras, comumente), quando na verdade ele é quem sabe muito, e me ensina também.
Há alguns dias tenho sentido uma tristeza profunda, dolorida... Acordado com aquela sensação de quem desperta de um sonho ruim e, no entanto, constatando que o pesadelo é real. E, dispensando confissões a amigos, ou procura por médicos, recebo de Antônio o que tem pra me dar, o que me cura: o amor, o apreço que tem pela vida, a vontade que tem de sugar cada instante que lhe é oferecido por Deus.
Olhando pela janela, vejo que a natureza toda vive. O vento balança as árvores e flores, promovendo a reprodução das sementes. Pardais e rolinhas brincam de pique, apostam corridas (voadas?) aproveitando-se da velocidade que o vento lhes permite. O sol brinca com as poucas nuvens que arriscam-se a escondê-lo. Ele ri. É soberano. É o meu rei. Sabe disto. O sorriso é para mim, sim. E, esquecendo por segundos todo o mal que me rodeia, tenho por alguns instantes seis anos e meio. E agradeço a Deus por viver.

quinta-feira, 6 de setembro de 2012

Todo mundo na mira

(Não estou gostando nada, nada da maneira como vem se espalhando a poeira dos "facekids" que, loucos por um minuto de fama, vêm expondo nossas escolas ao ridículo. Não concordo com este tipo de conduta. Daí, resolvi compartilhar com vocês.)


Agora é festa: está todo mundo na mira das câmeras fotográficas e dos celulares. Você está bonito hoje?
Estou espantada. E acho que estou sozinha. E fico com medo, porque minha cara de espanto não é bonita, e posso sair feia na foto...
A poeira dos facekids voou longe. E hoje já não se dá mais aulas nas escolas: os alunos – nossas crianças! – estão a fotografar tudo o que vêem pela frente. Descobriram, agora, que as paredes das escolas estão ruindo, que o professor de Ciências não vai há um ano e meio, que não há trancas nas portas dos banheiros e que as cadeiras onde se sentam só têm três pernas.
A sortuda da menina conseguiu uns minutos de fama no horário nobre – ou pobre? – da televisão. Havia uns milhões de pessoas olhando para a tela, naquela noite. E, desejosos por serem famosos também, os pais presentearam seus filhos com os modelos “top de linha” dos telefones celulares. E o conselho dado pela manhã, em vez de ser o de obedecer à professora, foi o de filmar tudo o que vir de errado na escola.
Não gostei. Não gostei do que vi. Umas mães com cachecóis e casa arrumada delatando a espera pelo repórter... Tudo muito bonitinho!
Nossas escolas abrem todos os dias e recebem seus alunos. As Secretarias de Educação abrem todos os dias e recebem seus funcionários. O direito à salubridade é respaldado em legislações pertinentes: número de alunos por turma, condições de higiene, segurança e acessibilidade. A cidadania é um direito, tanto do professor quanto do aluno.
Pensar que daqui a alguns dias, pelo jeito que a coisa evolui, poderemos fechar as secretarias me dá medo. Pensar que estaremos monitorados vinte e quatro horas por uma criança me dá medo. Não pelo que filmarão, mas pela forma como a democracia está sendo conduzida, neste caso.
Pais devem estar nas escolas, mas não para aparecerem na TV. Ou será que agora a televisão ficou responsável também por isto?
Mães e pais revelando que não conheciam o interior da escola onde confiaram seus filhos. Não sabiam quem eram seus professores, não sabiam quem era a diretora. Eu devo ter perdido a parte em que confessaram não saber nem o endereço de onde a escola fica...
Do outro lado, a escola, que não seduz, não traz os pais “pra dentro”, não divide, não delega atribuições. A escola que não propaga um grêmio estudantil, que não exige das outras esferas a solução para aquilo que lhe aflige e que está além de suas competências... A escola impotente e omissa. A escola que ninguém quer.
Tudo errado. Tudo errado. E a gente lá, assistindo e concordando. Pior, tendo a ideia de fazer o mesmo, de comprar uma câmera nova para o nosso filho. Há escolas que registram em seus Regimentos a proibição do uso de aparelhos celulares. E os alunos andam pelos corredores infringindo a lei e...?
Que nos sirva de lição a brincadeira, pelo menos: podemos começar a repensar os valores que andam implícitos no nosso currículo oculto. Porque, certamente, estamos fazendo muita coisa errada, se observarmos que, de um dia para o outro, ficamos expostos, à mercê de um “rec” na câmera...
Ou então, no final, isto tudo acaba num novo BBB, com professores, equipe técnico-administrativo-pedagógica e responsáveis concorrendo a milhões de reais, conforme forem atingindo pontos num ibope da televisão.
Vai ver, a intenção é esta. Quer saber? Fala sério!

quarta-feira, 5 de setembro de 2012

Filho teu não foge à luta

(Ontem uma faca foi cravada no meu coração. E, com ele ferido, acordei de um sonho! Escrevi este texto sangrando o amor que sinto pela cidade onde escolhi viver: minha pátria amada, Iguaba Grande! Não sei se ontem foi o fim ou o começo, só sei que Dona Aranha foi lançada ao chão, e estava fardada!)


Eu não escolhi ser professora por vocação. E, no entanto, nasci com a ingrata vocação de ser mentirosa. Mas como minha vida foi, desde sempre, guiada por Deus, Ele achou por bem trocar esses meus dois defeitos de fabricação e fez a Sua parte, o milagre: encaminhou-me para a mais nobre das profissões, e livrou-me do pecado da mentira.
Eu contei algumas, quando criança. Contei pra minha mãe que estava com febre, algumas vezes que senti falta do toque de suas mãos em mim. Era um carinho ligeiro na testa. Só o tempo de constatar que não havia febre alguma e tudo voltar à distância normal... Contei aos meus amigos de escola umas histórias irreais sobre minha casa, depois sobre minha vida: claro que, aos dez anos, eu já havia tido um namorado. Até mais que um, quando na verdade, meu primeiro beijo – naquele a quem chamei de namorado justamente por isto – experimentei aos dezesseis!
Mas uma mentira irresponsável me fez passar uma vergonha tão grande que tenho certeza – consultando meus arquivos – de que foi a última: Eu estava na sexta série e tinha uma amiga chamada Ana. Sua irmã, poucos anos mais velha, Vera, vendia Avon. E, tendo sido apresentada à revista, comprei algumas coisinhas, prometendo pagar quando a mercadoria chegasse: umas maquiagens e bijuterias...
O pouco dinheiro que papai nos dava, a mim e à minha irmã, para os gastos com a cantina da escola não foi suficiente. E quando a mercadoria chegou, eu não tive dinheiro para pagar. Aí, veio a mentira. Primeiro pra Ana: pago amanhã, e amanhã, e amanhã... Depois, para a irmã dela: vou pagar, sim; esqueci o dinheiro em casa...
Um belo dia, num fim de semana, estávamos nos aprontando para sair de casa, quando a campainha tocou.  E em poucos minutos a minha vida virava pelo avesso: Ana e sua irmã Vera, do outro lado da porta, cobrando o dinheiro ao meu pai, que as atendia. Meu Deus!
Bem, o final da história meus leitores já devem ter previsto: foi o mesmo que sentir uma faca cravada no coração ver meu pai – ainda lembro-me da cena – abrindo a carteira e contando o dinheiro para fazer o pagamento. Ralhou comigo ali mesmo, na frente delas, vergonha pela qual não quero nunca mais passar, enquanto viver. E a mentira riu de mim, com suas curtas perninhas, zombosa da minha atitude. Foi uma situação horrível, inesquecível. Todavia, foi a presença de Deus na minha vida, como que livrando-me deste mal terrível que abate tantas crianças, que é o hábito de mentir...
Liberta do pecado, tendo crescido, fui destinada, também por Deus, à profissão de professora. Sem saber o que fazer da vida quando terminei o primeiro ano básico do segundo grau, a opção foi o Curso de Formação de Professores por conta de um emprego que minha mãe me cobrara procurar desde que fiz treze anos de idade. Esta história já contei em mais de um texto daqui, não vou me alongar. Importa registrar a forma como, conduzida pelas mãos de Deus, tornei-me professora, deixando os “defeitos de fabricação” de lado e aprendendo a viver.
Aquela atitude do meu pai foi só mais uma, somada a tantas outras, que ao longo desta minha vida de quarenta e quatro anos, traçaram para mim a figura do que é ser honesto. Meu pai me ensinou a ser forte, e a não fugir da luta. Pagou a conta, sim, naquele dia, mas recebeu cada tostão de volta, depois, enquanto eu passei alguns dias sem lanchar na escola.
Alguns monstros atravessaram meu caminho. E foi preciso que passasse muito tempo para que eu descobrisse que eles estão ao meu lado, e não em cima do telhado esperando que eu dormisse lá no berço, enquanto minha mãe me cantava canções de ninar...
Hoje, às quatro horas da manhã, iluminada por esta tela fria tão minha companheira, sofro uma insônia diferente, com medo de um monstro que está a alguns quilômetros da minha casa e, provavelmente, dormindo, sem sequer pensar em mim...
O que todos poderiam chamar de “sacanagem” (com perdão pelo uso da palavra, eu não encontrei coisa melhor), eu chamo de “sol da liberdade em raios fúlgidos” que brilhou no céu da minha pátria, neste instante. Sabe aquela história de livramento de Deus? Foi o que aconteceu. Glórias e Glórias a ti, Senhor!
Ontem, no caminho para casa, eu e o pai de Antônio viemos cantando o Hino Nacional para ele. Ele gosta, fica querendo entender as palavras mais difíceis, a gente fica tentando explicar... Ontem, eu e o pai de Antônio, com o mesmo sentimento de “faca cravada no coração” – o pai do meu filho tem uma honestidade impressionante, também! – cantávamos o hino enquanto eu ia me certificando de que minha história estava lá nas letras, nas frases tão bonitas: “um sonho intenso, um raio vívido de amor à terra desce...”, “mas se ergues da justiça a clava forte, verás que um filho teu não foge à luta”, ...
Minha pátria amada é, antes de tudo, Iguaba Grande. E hoje uma megatsunami me acordou de um sonho. Agora refeita, depois de dormir poucas horas, mais pelo cansaço do dia do que por sono, vim aqui para dizer a Deus, pela internet, obrigada!
Por tudo lhe agradeço, Senhor! Pelos sonhos que sonhei, pelas coisas que fiz, pelas coisas que tentei fazer... Agradeço pelos amigos que conquistei, pelos inimigos que percebi, pelos males que enfrentei, pelas dores, pelas alegrias, pelas gargalhadas, pela festa que minha vida se tornou para algumas pessoas. Agradeço pela oportunidade, pelo aprendizado, pela experiência... E, mais feliz ainda, uma vez que me vi digna de estar onde estive por estes dias, agradeço porque o Senhor ainda olha para mim, e ainda quer me salvar. Obrigada, meu Deus!
Sou filha de Deus. E jamais estaria num lugar onde Ele não está. Pude explicar-me para o meu pai, quando da dívida. Talvez ele, tendo ouvido um emaranhado de argumentos de criança, tenha se compadecido de mim, e me perdoado, embora aquele bigode fechado – olha ele aí! – tenha me causado medo por alguns dias.
Mas o que eu falaria diante de Deus, aos quarenta e quatro anos, professora formada simplesmente porque Ele quis assim?
Só tenho a agradecer por mais esta lição de amor, de piedade. Eu vivo minha vida meio esquisita, meio atravessada, mas Ele sempre me acompanha. Obrigada, meu Deus, porque, mais do que de glórias no passado, quero viver minha vida para ter paz no meu futuro. Amo ser professora e orgulho-me de poder andar revestida de verdade.
Dona Aranha está pronta para a próxima.
Filho teu não foge à luta.
Amém!

sábado, 1 de setembro de 2012

Alunos prontos

(Preocupada com o uso cada vez maior do jargão "Escola ensina, família educa" escrevi meus pensamentos sobre o assunto. Ah, que bom seria se os alunos já viessem prontos!...)


Eles têm vindo de casa sem a menor educação, e é por isto que não passam de ano”. Esta é uma conclusão comum em finais de tardes de encontros de professores. E eu venho arrumando na minha cabeça um emaranhado de desculpas – e agora até frases feitas de redes sociais! – de educadores em geral, decorando-as, e tentando me convencer de que dizem o certo. Mas eu não consigo!
Professores hoje dão aulas à terceira geração de alunos. É matemática: meninos e meninas estão sendo pais e mães aos quatorze anos de idade. Um professor leva, no mínimo, vinte e cinco anos para conseguir se aposentar. E, aposentado, geralmente volta ao trabalho, contratado, permanecendo numa sala de aula por mais um bom tempo...
Aí, é comum ver os filhos dos ex-alunos. Surpreendemo-nos quando, na primeira reunião de pais, encontramos aquele que já esteve nos bancos da sala, assistindo nossas aulas.
Agora os professores estão com os filhos dos seus ex-alunos, e esses meninos e meninas estão “grávidos”, também, uma vez que já têm a idade de quatorze anos. É, estamos ficando velhos: já somos “avós” dos nossos alunos.
A geração dos meus pais chegou à escola “educada”: um temor absurdo diante do professor que lhe sabatinava movimentando a palmatória, ou apontando para a caixa de milhos no chão. Esta geração chegou à escola com marcas no corpo oriundas da “educação” que recebeu de casa: ou eram marcas de surra, ou de trabalho pesado. Esta geração nunca olhou nos olhos de seus pais, nunca se atreveu a lhes dizer de suas opiniões. Sempre temeu, sempre se calou. E seu comportamento não foi diferente quando conheceu a escola.
Mas o progresso chegou. A mulher tornou-se independente por razões que se discute até hoje (eu, particularmente, acho que foi pela incompetência do homem de sustentar a casa...). E entre optar por trabalhar ou passar certas necessidades, o casal foi para a rua e esqueceu a criança em casa. Com pouco tempo para tratar de assuntos como educação, obediência, valor, virtude, hierarquia, respeito, à escola foi sendo atribuída, cada vez mais, a responsabilidade por resgatar uma educação que se perdeu no relógio de ponto dos empregadores.
O governo contribuiu, com a miséria instalada. Nenhuma família sobrevive com salários indignos. A família contribuiu, com a reprodução em larga escala: menos condições = mais filhos (e aqui não me remeto somente a condições financeiras, não). E para a escola sobrou receber, no ato da matrícula, a falta de educação.
É. É uma discussão e tanto, concorda, minha amiga Gisela? (Gisela é uma amiga que sempre toca neste assunto comigo...)
O que eu sei – e vou morrer defendendo – é que estamos nas salas de aula com nossa terceira geração de alunos e ainda reclamamos, dizendo que a falta de educação é que os reprova ao final do ano... Tem alguma coisa errada aí, não?
Não adianta mais esperar o sinal tocar e ver entrar enfileirados os alunos prontos, nos dizendo “bom dia, professor!”, sentando calados, colocando sobre a mesa as tarefas de casa todas feitas e esperando, num silêncio mórbido, o conteúdo que lhes iremos apresentar.
São crianças. Os adultos somos nós, como diz meu amigo Alvaro. Cabe-nos retomar o ponto de partida, porque o bebê que está na barriga da menina da terceira carteira será, provavelmente, nosso aluno, também.
O que tento dizer é que se ensinamos há vinte e cinco, trinta anos, algumas gerações já são produtos de nossas mãos. Já passaram por nós, e sofreram as consequências, na escola, da educação que seus pais não lhes deram: as notas num vermelho-sangue, que cravam no corpo como tatuagem um destino infeliz de quem está reprovado pelo resto da vida.
Penso que o momento é de parar com este discurso fácil e omissivo de que hoje não se pode dar uma boa aula porque os alunos não chegam à escola educados pelos pais. Deus, os pais estão na rua. Uns trabalhando, “correndo atrás” de uma vida que a mídia impõe, a despeito da realidade de cada um. Estão fazendo as horas-extras para melhorar o salário no que for possível, ou estão à procura de um emprego decente. Os pais estão por aí, analfabetos, sem poder identificar o que há escrito no caderno de tarefas de casa dos seus filhos. Os pais alfabetizados pouco ficaram na escola – reprovados que foram por nós mesmos! – e não acompanham mais os problemas que seus filhos que passaram do terceiro ano de escolaridade levam para casa para serem resolvidos. Os pais que estão nas ruas trabalhando ou tentando um trabalho, chegam em casa mortos num cansaço desconfortável que não lhes permite sentar ao lado de seus filhos para lhes perguntar como foram na escola. E ainda tem coisa pior! Tem os pais que não estão em casa, porque nem casa tem! Tem aqueles que deixam seus filhos na escola para traficarem, para roubarem, para beberem, enfim...
E a escola esta aí, e é um misto disto tudo o que compõe a fila quando formamos os meninos e meninas para cantarem o Hino Nacional semanalmente.
Talvez se esquecêssemos um pouco o conteúdo obrigatório do dia, e nos preocupássemos mais com a vida que leva cada menino e cada menina que se senta diante de nós, ganharíamos, em vez de perder. De nada adianta bater numa tecla só. Os anos, as décadas estão passando. Os índices nos mostram que a coisa está feia, e vamos insistir nessa fala medíocre de conselho de classe de que Joãozinho não passou porque é um mal educado? De que escola ensina e família educa? De que – meu Deus do céu! – a pena para crimes cometidos deve atingir também aos meninos de dezesseis anos? Até a lei ser aprovada já haverá quem lhe defenda a aplicação para os garotos de dez, pela lógica...
Somos todos responsáveis, enquanto nosso lugar de TRABALHO for a escola. Porque por lá passam os meninos que respondem aos inquéritos. Muitos tiveram seus nomes escritos na nossa lista de chamada. Somos seus cúmplices.
O dever da escola é atingir aos pais, já que entende que algo não está dando certo. Os pais devem ser convidados a fazerem parte da escola, quase como que obrigatoriamente, como fazemos com os alunos, exigindo-lhes a presença. Foi melhor para o aluno, depois que a Lei os obrigou a frequentarem a escola? Será melhor para os pais, também. Quem ganha com isto? A escola. Todos nós.
Pensemos nisto. As barrigas estão rompendo todos os dias. Ainda dá pra salvar a geração que vem aí.