sexta-feira, 31 de agosto de 2012

Seduzir

(Enquanto tudo evolui rapidamente, a Escola é a mesma. E, ainda assim, acredito que é possível ao Professor ganhar a concorrência. Basta que ele saiba seduzir...)


Quando Antônio era bebê e ainda podia ser contido pelo carrinho eu o colocava diante da TV para conseguir lavar uma louça em paz. Sim, é a mais pura das verdades. Num desespero por ver a louça se reproduzindo em cima da pia (sim, ela se reproduz!) e nenhuma condição de dar conta daquilo com ele fora do carrinho, era esta a minha solução: trava nas rodas e televisão ligada.
Mas para poder fazer isto, eu seduzi Antônio. E muito tempo antes de deixá-lo frente a frente com seu programa preferido, eu ensinei Antônio a assistir à TV... Sentava-me perto dele, e reagia a cada emoção sinalizada: diante dos monstros, a cara de espanto. Diante das fadas, a expressão de paz. Diante da dor, um ar de tristeza. Diante do susto, um pulo pro alto... E Antônio começou a estabelecer uma relação entre os sentimentos e as reações do corpo. Eu lembro que durante os jogos da Copa do Mundo (ele estava com uns quatro meses) ele balançava as perninhas como se chutasse a bola e vibrava – creiam! – quando o gol acontecia.
Logo depois que saiu do carrinho – liberdade inestimável para qualquer ser humano que completa um ano de idade – Antônio foi capaz de emocionar-se sozinho vendo TV: chorou pela primeira vez quando Pinóquio foi preso numa gaiola pelo dono do circo que queria ganhar dinheiro às suas custas... Hoje, ri das piadas do Chaves, compadece-se da menina pobre da novela Carrossel, e responde “de igual para igual” às alfinetadas dos vilões dos desenhos animados.
Eduardo Galeano tem um texto que fala sobre um pai que ensina o filho a olhar o mar. É um dos que mais gosto. E sempre que me vejo relendo o conto, lembro do meu passado tão recente com Antônio.
Hoje, no seu quarto há tantos livros! São duas cestinhas cheias deles. Histórias grandes, pequenas, com gravuras, sem gravuras... Antônio não dorme se eu não ler uma delas. E a hora da leitura é a hora do nosso encontro mais especial: são as várias versões da Karla que se multiplicam sobre a cama para definirem suas personagens. Uma diversão, que nem dura muito tempo assim, cansados que estamos, os dois, quando é chegada a hora de dormir...
Todo o interesse que hoje meu filho tem pela leitura vem do encanto que eu fiz questão de semear. Dá trabalho, mas é muito bom ver o interesse dele por qualquer tipo de leitura que tenha em mãos. Quando ganhou o Nintendo 3D não me fez qualquer pergunta sobre seu manuseio (nem sei se saberia lhe responder!): pôs o manual de instruções embaixo do braço, deitou-se no chão da sala e foi “pesquisando” e experimentando, até colocar o “treco” para funcionar. Hoje faz de tudo com aquilo. Coisas que custo a acreditar!
Tenho uma amiga que diz que as crianças hoje em dia já nascem com um chip. Isto pra mim é coisa de Nova Era, não gosto de pensar assim, não. Mas levando pelo lado metafórico, as coisas dentro desta máquina que chamamos de computador evoluem tão rapidamente que se piscarmos um pouco mais lentamente perdemos alguma informação.
Diante desta evolução acelerada, a sala de aula está lá, do mesmo jeito. O quadro, que era negro, agora é branco. O que era um giz branco, agora é uma caneta azul. E só.
E quem seduz? Porque por incrível que pareça, ainda é possível seduzir a criança, apesar da concorrência tecnológica.
Os livros das cestinhas de Antônio não seriam nada se eu não o convidasse à leitura, não lhe apresentasse o que há por detrás daquelas capas, o que se pode encontrar descerrando aquelas páginas, uma a uma... Assim também, nada haveria de bom naquela caixa de imagens – nada mesmo! – chamada televisão, não fosse eu ter me sentado ao lado de Antônio e o seduzido: há coisas boas, venha ver!
Cadeiras, mesas, quadro, giz. Sobre as cadeiras, meninos e meninas. Sobre o tablado, o adulto. E a sedução, que deveria estar viva naquele espaço de concreto, está lá fora, no que se pode ver pelas janelas ou frestas da porta: o amigo da sala ao lado que já foi dispensado e agora transita pelo corredor, o carro bonito com som alto que passa na rua, o jogo de futebol que os outros meninos curtem na quadra da escola, a cabeleira ruiva da menina que corre feliz na calçada atrás do seu cachorrinho...
E na inexistência de sedução por parte de quem deveria ser o responsável por fazê-lo, os dias passam, os anos passam, e aquilo que era antes uma “pelada”, um som bacana, um cabelo ruivo saltitante, transforma-se agressivamente e sob nossos olhos, num cigarro, num pacotinho de drogas, num bar. E nossos alunos vão trocando a vida pela morte enquanto damos nossas aulas copiando o plano de aula dos anos anteriores, sem qualquer modificação, como se não precisássemos trocar o HD do computador para não sermos ultrapassados.
O quadrado e o concreto podem ser os mesmos, as escolas não precisam de grandes mudanças em suas estruturas físicas para salvar os jovens de tudo o que lhes conduz à morte. O agente da sedução chama-se Professor. E este é o que é, onde quer que esteja. Porque onde quer que esteja, onde quer que vá, carrega consigo um coração pulsando, no mesmo ritmo que pulsa o coração do seu aluno. Onde quer que vá um Professor, ele leva seu conhecimento, sua paixão. E onde tem paixão tem que ter a sedução, senão ficamos fadados ao amor em uma via só, coisa tão triste de se ver acontecer!
Saber seduzir, eis o desafio! Nada haveria naquele mar tão grande diante dos olhos do menino, não fosse o pai a explicar-lhe cada detalhe, como no texto de Galeano. E foi o que exercitei com Antônio, desde que percebi que ele já interagia com seu entorno. Hoje meu menino observa atentamente o caminho das formigas, acompanha o desabrochar das flores do quintal da nossa casa, brinca traduzindo as formas das nuvens, procura a coruja, busca novos prismas quando fotografa as coisas por aqui.
É possível. Ensinar os conteúdos é possível. Aprender os conteúdos é possível. Concorrer com tudo o que há de mais novo lá fora é possível, mesmo que se tenha apenas umas pedras de giz nas mãos e um quadro-negro na parede. Basta que tenhamos o coração aberto, preenchido pelo orgulho de sermos Professores. Basta que saibamos seduzir.

sábado, 25 de agosto de 2012

Cada minuto é um milagre

(Ouvi meu amigo Marcio cantar uma música - linda! - que fez para seu filho e renovei todas as promessas de amor incondicional ao meu Antônio. Deixei meus pensamentos seguirem o caminho das notas musicais que saíam do violão de Marcio... E escrevi.)
Marcio compôs uma canção para a chegada do seu filho ao mundo. Eu a ouvi há dias. O meu filho, Antônio, já tem seis anos. E enquanto ouvia aquela belíssima canção pude comprovar, mais uma vez, que cada minuto de nossa vida é um milagre.
Divagando em meus pensamentos – ouvindo o som maravilhoso que Marcio concebia dedilhando o violão – ri de mim mesma, emocionada: a música me trazia a alegria de ter parido Antônio.
É verdade aquilo tudo que ele cantou. Eu vou escrever aqui os milagres de todos os dias, que nem sempre percebemos, preocupados que estamos, sempre, com a vida que se tem que levar...
São muitos os milagres. Eles são sinais de vida nova, de esperança. Não é possível que haja um Deus decepcionado com o ser humano, se há um Deus que nos apresenta, a cada minuto, um serzinho novo na face da terra, uma criança no seio da mãe.
O sol brilha amarelo no céu porque uma criança nasce. O céu abre-se num azul indescritível para receber o sol, porque uma criança nasce. Botões explodem novas cores de flores no chão porque uma criança nasce. A terra é fértil, a grama é verde porque uma criança nasce. Se um arco-íris sorri depois de uma tempestade é porque uma criança nasce. E se ouvimos cantos famintos de passarinhos filhotes boquiabertos e maravilhosamente desesperados, é porque uma criança nasce. O mundo a espera, a natureza se prepara, os anjos de Deus erguem seus braços. Todo movimento divino se retrata num dia alegre, que vemos diferente por um único motivo: o nascimento de mais uma criança. Estamos salvos, este ainda não é o fim.
A música falava em girassóis, e eu fiquei lembrando do texto “Somos todos girassóis”, postado aqui, recentemente. Giramos em busca da vida. Deus se agrada disto, porque ainda que pareçamos podres, inclinados que estamos à mídia, aos apelos sociais, ao que é vulgar, ao que é de um mundo que não é do Nosso Senhor, Ele brinca com a dança do sol ao redor da terra e tem compaixão de nós, pescoços virados para a luz.
Antônio foi uma alegria na minha vida. A despeito do cansaço físico extremo de uma mãe de trinta e sete anos e cinquenta e cinco quilos que optou por viver seus dias sozinha com seu filho desde o seu nascimento, aquela presença milagrosa sob o mesmo teto que eu veio tomando espaço, ensinando-me como se dão as coisas, como se aprende a viver com um professor de um pouco mais de cinquenta centímetros.
No desespero das noites, cada amanhecer, um milagre. No desespero dos dias, cada anoitecer, milagre também.  Cheio de significados desde a primeira ultrassonografia – formato indiscutível do corpo do meu pai! – veio enchendo de significados minha vida, e vem fazendo isto há seis anos. Quando dorme, bateria carregando, olho pra ele e agradeço a Deus o milagre que destinou a mim. Obrigada, Senhor!
Há dias e noites chuvosas, há chuvas de granizo. E naquela noite inesquecível, enquanto acompanhávamos a queda daquelas pedras de gelo que iam rapidamente cobrindo o terreno gramado de nossa casa, crianças nasciam por aí afora. Nas noites mais estreladas, o brilho da criança que nasce. Na lua cheia onipotente, a criança que nasce. No eclipse, travessia estratégica do sol pela lua, a criança que nasce.
Tudo é milagre desde que abrimos nossos olhos e enxergamos o vulto embaçado do sorriso de nossas mães. Maravilhosa a canção de Marcio! Que encha os corações daqueles que a ouvirem!
Antônio é milagre diário em minha vida, assim como sou para a dele. Não o fosse, e não veria aqueles olhinhos de jabuticaba me sorrindo todas as vezes que nos encontramos... Que responsabilidade ser um milagre! Você é milagre para a vida de quem?
Pois é. Hoje é sábado. Amanheceu um dia lindo! Poetas como Marcio estão vendo no dia uma inspiração para suas novas criações. Crianças empurram ventres pedindo para nascer. Sementes estouram, ovos e casulos se rompem, pedras novas se criam, cansadas das batidas das ondas. Nada muito novo, na verdade. E, no entanto, tudo milagrosamente engendrado.
Em cada movimento do planeta Terra, uma população do futuro chega ao mundo.
Viver é um milagre. A gente vive cada minuto da vida. O que fazemos enquanto o ponteiro dá voltas no relógio marcando o próximo é o que nos aproxima ou nos afasta de Deus. Só depende da gente.
Longa vida a Marcio! Deus o abençoe com inspirações leves e profundas como a que o levou à canção. Deus abençoe sua voz mensageira. Eu achava que amava Antônio – vida surgida da minha vida! – e descobri que posso amá-lo ainda mais, depois que Marcio cantou pra mim que cada minuto é um milagre.

quinta-feira, 23 de agosto de 2012

Tania Ávila

(Pra quem conhece Tania Ávila, e que sabe que seria impossível comemorarmos o Dia do Inspetor Escolar sem uma homenagem àquela mulher...)


Deus nos inspira. Não tenho qualquer dúvida disto. Ao músico, quando compõe aquela canção que fica marcada para sempre nos corações que dela precisavam; ao poeta, quando seleciona as palavras necessárias para compor a poesia que narra a vida daquele que a lê; ao cantor, quando abre a boca e canta todas as dores de quem o ouve...
Mas Deus também Se inspira. Eu acredito que certas pessoas vêm ao mundo como verdadeiro presente de Deus para ele. E, em minha opinião, este é o caso de Tania Ávila.
Eu penso num céu bem azul e confortável. Em dias ensolarados, porém fresquinhos, em que Deus se assenta para compor o que será o próximo ser humano a vir ao mundo. E fico aqui, diante desta tela agora tão aconchegante quanto o céu, enredando meus pensamentos, tentando imaginar o dia da criação de Tania.
Uma divina intenção de que fosse alguém bastante inteligente. E Ele não erra. E quis pra si a patente da criação: não delegou a anjo algum a continuidade da obra. E, ainda que tivesse sido benevolente ao conceder a ela a inteligência disponível, deu-lhe qualidades maiores: a humildade, a generosidade, a bondade.
Bastava que fosse inteligente. Veio parar no serviço de Inspeção Escolar, o que já era previsto por Deus. Bastava que dominasse artigos e capítulos de legislação, ou que simplesmente os soubesse consultar quando necessário... Bastava que tivesse – por inteligência – facilidade na argumentação a favor ou contra uma situação que lhe fosse apresentada. Bastava que sua inteligência convencesse...
Mas os meninos e meninas das escolas públicas não sobrevivem se o Inspetor Escolar for somente inteligência. E ela soube apoderar-se dos dons recebidos de Deus e usá-los a favor das criancinhas...
Hoje temos Tania, e temos tudo, porque Tania é tudo para nós. Deste misto abençoado de inteligência, razão, humildade, generosidade e bondade vamos nos alimentando, sobressaltados pelas coisas que descobrimos todos os dias a respeito dela: que nada guarda, que compartilha, que dá, que pede, que ouve, que respeita, que estende a mão, que sente saudade, que ri, que brinca, que chora, que se emociona.
Já não há mais o que esperarmos dentro daquele espaço de gabinete que ousa limitá-la. Àquele que chega, o calafrio de aproximar-se e, no entanto, nos primeiros minutos, a descoberta do que é aquela mulher sentada do outro lado da mesa: Gente! Cheia das curiosidades a respeito de quem somos, o que fazemos, como pensamos, do que vivemos... Ela tem tudo a dar e, no entanto, quer nos ouvir, quer aprender.
Todos nós presentes hoje, aqui, por um momento na vida sonhamos ser como Tania. Muitos em suas situações profissionais, muitos diante de um problema que parece não ter solução, muitos diante de um texto que apresenta dúvidas ortográficas... O que talvez nem todos saibam é que Tania é alguém que se deseja ser em muitos outros momentos na vida: na maternidade, na história de superação, no amor pela vida...
Eu quero ser como ela. Não tanto. Acho que Deus não disponibilizou tantas habilidades pra mim. Mas quero receber meus amigos com aquela disposição, sempre. Quero ter palavras certas, respostas certas. Mas quero ser corajosa o suficiente, como ela, para dizer “não sei”, quando estiver diante da dúvida. Quero ser imprescindível, ser querida. Quero que Deus me abençoe com o dom da persistência, da jovialidade, do compromisso, do amor, virtudes sem as quais não se chega a Tania alguma nesta vida.
Neste dia especial, uma oração breve, que sairá do coração de cada um aqui presente levará a Deus o nosso agradecimento pela vida de Tania. Agradeceremos a Ele confessando-Lhe – ainda que Ele saiba! – que todo o tempo dedicado à sua criação foi, para nós, presente também. Obrigada, Senhor!
E à Tania agradeceremos sobretudo pela parte que lhe coube de compor o que somos com a simples presença em nossas vidas. Direta ou indiretamente, cada um de nós que exerce o ofício de ser Educador e o faz em prol dos meninos e meninas indefesos de Cabo Frio traz consigo um pouco dela.  O futuro agradece a você. Muito obrigada por você existir, Tania Maria Gomes de Ávila.

segunda-feira, 20 de agosto de 2012

Um monstro vestido de gente

(Há monstros à solta. E não são nada parecidos com os monstros de Antônio... São como nós! Tive medo de um monstro que encontrei hoje.)


Há um Deus acima de nós, eu creio.
Atitudes indecentemente egoístas de certas pessoas às vezes levam-me ao desespero: será que tem gente que duvida da presença viva de Deus?
Hoje minha cabeça dá voltas e meu coração apertado me convida a chorar. Preciso de um banho quente. Gosto de combinar a temperatura da água que cai do chuveiro com aquela que me aquece as maçãs do rosto: lágrimas quentinhas, salgadas, companheiras na minha aflição. Não sou nada neste mundo. Nada. Deus olha lá de cima para o planeta Terra e vê a muitos, mas não me vê. Ah, Senhor, volta Seus olhos pra mim!!!...
Temo passar meus dias neste mundo e não conseguir livrar-me da visão que tenho. Trata-se de uma visão estranha, involuntária: vejo manchas escuras ao lado de gentes... Um sentimento de que estão acompanhadas de algo muito pesado, muito terrível...
Preciso chorar, hoje. E não sei se conseguirei controlar o meu desespero antes do banho, uma vez que sentei diante desta tela agora. Tudo para fazer aqui em casa, e nada farei enquanto não expurgar minhas angústias...
Todos somos um só, e é nisto que acredito. E tem me causado tristeza – e, particularmente hoje, um certo medo – ver pessoas olhando para si como se fossem as únicas no mundo.
Eu não sobreviveria sem o padeiro. Tampouco sem o médico que retirou Antônio da minha barriga, ou o que me retirou da barriga da minha mãe. Preciso do rapaz que poda minhas amendoeiras tanto quanto da professora que alfabetiza Antônio, tanto quanto do meu dentista. Sempre fui muito observadora, neste aspecto: quando tomava o ônibus para ir para o trabalho, em São Gonçalo, às 5h 50’, antes de reclamar do sono avaliava quantas pessoas tinham acordado antes de mim. No caminho, a conclusão de que eu não existia no mundo sozinha: o motorista do ônibus não fazia sua primeira viagem; para alguns passageiros aquele já era o segundo ônibus do dia. Bancas de jornais abertas testemunhavam que jovens já haviam separado os jornais desde a madrugada. Enfim, todo mundo vivia, a Terra girava, as coisas aconteciam e eu, “só” pegava o ônibus às 5h 50’. Tarde, perto da rotina daquele tanto de gente.
Escrevi sobre um monstro em construção no texto anterior. Um monstro jovem, com todas as chances – ainda que desperdiçadas pelo seu criador! – de reversão.
E Deus colocou-me diante de um monstro ainda pior: um monstro adulto, criado. Um monstro egoísta. Um monstro vil, sujo, indecente, perigoso, inescrupuloso.
O monstro tinha uma pretensão: levar vantagem sobre os outros.
Quem almeja levar vantagem sobre os outros não se vê como parte de um todo. Deus criou a humanidade. Espera, pacientemente – e senta-Se em nuvens fofas enquanto isto – que a humanidade se dê conta do que Ele espera dela. Mas ninguém tem tempo para pensar nisto, ocupadas que estão as pessoas com os quilos que se deve perder para alcançar as medidas que a mídia cobra.
É o inferno que cobra as medidas. É isto o que penso. E o afã de ter o que nunca se teve – porque Deus não as criou assim – leva as pessoas a garantirem suas vagas no inferno individualizando-se, esquecendo-se de que precisam do homem que conserta o elevador para chegarem ao 35º andar.
Os “personal everythings” dão conta de “tudo o que se quer fazer, desde que sozinho”. E nessa involução fomentam o inferno do “eu”, num mundo tão bonito que Deus criou para “nós”...
Hoje me senti amedrontada, e esta foi uma sensação nova no meu atual contexto... E, posso dizer, talvez tenha sido a pior das sensações vividas até agora.
Eu sou todo mundo. Vibro com os movimentos de alegria e tristeza, solidarizo-me, quero fazer tudo ao mesmo tempo. Minha energia pra lá de balzaquiana não acompanha a velocidade dos meus pensamentos. Os dias passam, perco prazos, datas, porque os planos foram feitos também sob o mesmo pensamento dos demônios de que tudo deveria dar errado.
Eu creio num Deus acima de nós. Bom o suficiente para perdoar os pecados de todos. Os pecados da pior das criaturas, desde que haja verdadeiro arrependimento em seu coração. E do jeito que sinto vergonha de ser humano quando diante de um monstro-humano como estive hoje, penso que Deus deve entristecer-Se, envergonhar-Se também. Às vezes ouso enlouquecer e imaginá-Lo tapando os olhos e ouvidos, perplexo diante daquilo que sonhou ser gente.
Acho que estive confusa por aqui, hoje. Mas devo confessar a vocês que o medo me assombrou de tal maneira que já não sei o que será do futuro do meu filho. Preciso ter uma conversa séria com Antônio na hora dormir. Preciso dizer a ele que há monstros lá fora, e que eles não são peludos, não possuem garras afiadas, não grunhem... São da nossa estatura, falam baixo, são delicados e belos. E quero avisar a Antônio que pode ser que ele viva quarenta e quatro anos até estar diante de um.

sábado, 18 de agosto de 2012

Uma moça de doze anos

(Eu ouvi um pai me dizer que já não há o que fazer pela filha, porque "ela é uma moça de doze anos de idade..." Eu tenho um filho de seis anos, que amanhã terá doze anos de idade... Eu tive doze anos de idade, e meu pai fez muita coisa por mim... Eu não consegui ouvir isto e ficar sem escrever...)


Sua voz ainda soa insistente em meus ouvidos. Espero que escrever, escrever, escrever, livre-me da lembrança auditiva daquele desabafo feito com um sentimento que desconfiei ter sido orgulho. Terá sido, meu Deus? Não é possível! Não, meu Deus, tira de mim a impressão de ter enxergado naquela atitude tanta vaidade!...
Vou organizar meus pensamentos, para compartilhar com vocês o que testemunhei há dias.
Estive diante de um homem, pai de uma menina que está afastada da escola. Para defender-se da acusação de negligência abre a boca e solta a voz proferindo palavras que – por Deus! – eu não queria ter ouvido. Eis a frase: “Tenho em casa uma moça de doze anos. Não posso obrigá-la a ir à escola.
Imediatamente meu coração me levou aos meus doze anos. Eu cursava a oitava série, tinha aulas de História com a Professora Marlene, dobrava a manga da camisa para que algum professor faltasse (era a simpatia da época!), e estava apaixonada por Zé Eduardo, um menino tão magro, mas tão magro que todos o chamavam pelo apelido de “papel”. Zé não sabia de nada, ninguém soube do meu amor. Sempre amei e sofri sozinha, já escrevi bastante sobre isto. Eu era uma criança aos doze anos! Uma menina! E nesta época, lembro ainda muito bem, o cinto do meu pai ficava pendurado num preguinho, no alizar de madeira da porta da área, avisando que naquela casa havia respeito, hierarquia, e a desobediência seria corrigida com cintadas nas coxas...
Nunca precisei experimentar o cinto. Nem lembro, inclusive, em que momento ele deixou de fazer parte da decoração da porta. Sei que saiu de lá.
Sei que nunca faltei às aulas. Ia para a escola (mesmo dobrando a manga da camisa do uniforme), todos os dias, sem maiores questionamentos. Eu sabia que meus pais tinham que trabalhar, sabia do sacrifício que se fazia para se providenciar o mínimo de conforto em casa. Sabia que trabalho, para eles, era coisa de há muitos anos, e que não demoraria muito para eu ter que, também, arranjar o meu. E foi exatamente assim que aconteceu: meu primeiro emprego eu consegui aos quatorze anos. Nem mocinha eu era!
Hoje a moça de doze anos diz ao pai “não vou!”, “não quero!”, e é obedecida em suas vontades por um pai perdido que já não sabe mais em que ordem se estabelece valores no dia-a-dia de uma família.
Quando me falou da filha como quem falava de uma mulher tentei interpelá-lo compartilhando com ele minha ideia a respeito de Antônio. Meu filho tem seis anos. Daqui a apenas outros seis terá doze. Fechei os olhos e tentei visualizar a cena: Antônio me dizendo “não vou!”, após a ordem “vá para a escola!” Impossível, para mim. Que Deus continue acompanhando de perto a criação que dou ao meu menino. Que não chegue o dia de ficarmos do mesmo tamanho. Eu não quero Antônio rapaz, se é por atitudes assim que se define o amadurecer de uma criança...
Eu disse a ele, embora com a certeza de quem não foi ouvida, que ainda há tempo de reverter a situação. Porque sempre acredito que há tempo. Acho que filhos não têm idades. São nossos enquanto existirmos. Se houvesse um tempo determinado para filhos se tornarem independentes, Deus já não caminharia ao lado de muitos deles. E, no entanto, é incansável na companhia: segura nossa mão até nossa despedida desta vida, basta que queiramos...
Mas aquele pai não ouve ninguém. Certo de que faz sua parte, segue, deseducando uma criatura pela qual é responsável. Disse pra mim que se obrigá-la a ir à escola estará assinando uma reprovação por falta, porque sabe que a menina não entrará, diante do portão. Ele é fraco, e eu tive pena dele.
Que nos resta, senão, entregarmos famílias como essas nas mãos de Deus? Valores distorcidos, enraizados, difíceis de serem revertidos. Quem manda em quem, quem obedece a quem? Numa interpretação clandestina das leis, dos ECAs da vida, vamos nos perdendo entre direitos e deveres, utilizando pequenos artigos, alíneas, incisos a favor dos jovens, sem contextualizar situações, determinar os responsáveis pelas ações e, sobretudo, pelas consequências das ações.
E estão por aí, soltos, pais, filhos, professores, alunos. Todo mundo misturado e perdido numa confusão legal que inibe a atitude rigorosa e disciplinar de um professor, enquanto convida o jovem aluno a agir como se fosse alguém que ele ainda não é.
Nos olhos do pai eu vi medo. E vi, também, uma certeza de que faz o correto. Ele teme a filha, por isto faz tudo por ela. Cria o monstro que o devorará dentro de pouco tempo e arrisca-se a ouvir do próprio monstro, enquanto devorado, a acusação – corretíssima! – de ser o único culpado por sua própria morte.
A pior morte é esta: morrer em vida. Ver a criatura pronta, e arrepender-se do que criou. Eu imagino uns choros de Deus, de vez em quando, diante dos canalhas que transformaram o milagre de suas vidas em pecado. E imagino que este pai – pobre homem! – há de chorar bastante: a moça já tem doze anos. Ele diz que já fez sua parte. E eu, peço a Deus por ele.

segunda-feira, 6 de agosto de 2012

Confissão sob encomenda


Ela encomendou-me este texto: quer lhe confessar que está apaixonada.
Não sabe como fazer. Não há mais a beleza do viço iluminando-lhe a pele, já passou dos quarenta anos. Mas por estes dias deu-se conta de que só pode ser amor o que está sentindo. E é por você. Sem saber como lidar com este sentimento que desconhece idades pediu-me que rascunhasse algumas coisas, que traduzisse para o código da escrita tudo o que pulsa em seu coração.
Bem, vamos lá. Mudou o perfume. Numa das conversas informais nas horas de descanso do trabalho percebeu que você gosta dos aromas doces. Agora desfila perfumada, tentando acostumar-se com o próprio cheiro. É estranho mudar. E foi tão radicalmente! Sua preferência sempre foi pelos cítricos...
Tem passado com maior frequência diante da porta da sua sala. Mas não sabe se está sendo notada...
Anota cada roupa que veste, diariamente. Porque faz questão de observar suas reações. Sublinha de vermelho aquelas com as quais se vestiu e arrancou de você alguns elogios. Concluiu que você gosta mais quando ela usa vestido. E agora não quer mais saber de comprar calças compridas...
Já gravou no pen drive suas músicas preferidas. E, confessa, não é coincidência, não. Prestou atenção no que você ouve enquanto trabalha e passou a deixar plugado o objeto no seu computador. Até que tem a ver com o gosto dela, felizmente. Sendo assim, ficou fácil puxar conversa – e esticá-la, esticá-la – elogiando a voz de Marisa Monte, o ritmo de Zeca Baleiro, o violão do Vercillo...
Ela está apaixonada por você.
Todos os dias chega ao trabalho bem cedo. Quer estar lá, já, quando da sua chegada. Quer recebê-lo com o melhor sorriso. Tem ensaiado vários sorrisos no espelho, em casa, depois que escova os dentes. Tenta que seja simpático, sem ser banal. Experimenta um ar de sensualidade. Desiste, temendo parecer vulgar. Ela já passou dos quarenta...
O coração a mil por hora reage prontamente ao ouvir seus passos na escada. E quando você entra, nenhum daqueles sorrisos ensaiados acontece. O que há lá é uma desgraça de um sorriso sem jeito. Em resposta ao seu “bom dia!”, um bom dia aprisionado não se sabe se pela timidez ou pelos aparelhos ortodônticos. Sim, ela usa.
Então, a encomenda: pediu-me que viesse até a tela revelar a você que o ama. Ama desde que o viu andar pelos corredores do prédio procurando a sala onde trabalharia. Ama desde que, ao se apresentarem um ao outro, percebeu que você tinha as mãos macias. Ama.
Foi para casa naquele dia em que conheceu você, pensando em você. Passou do ponto do ônibus. Andou quase um quilômetro para chegar em casa. E tudo o que quis foi tomar um banho gelado e dormir cedo para ver chegar logo o dia seguinte e estar com você novamente.
Estreitados os laços com as conversas no café, passaram a almoçar juntos, também. E aí as semelhanças nos gostos foram incomodando aquela que já não acreditava mais na possibilidade de se ver apaixonada. E ela foi sendo cada vez mais feliz. Que é o amor, senão estado de felicidade?
Hoje está aqui, papagaio de pirata no meu ombro, a falar desesperadamente sobre o que lhe aflige o coração. O que lhe aflige? Uma bênção divina, o maior dos sentimentos: o amor.
Está apaixonada. E eu vim escrever para que você leia que aquilo tudo o que sente aí, no seu coração, por ela, é amor, também, e isto se chama reciprocidade. Vim para que você leia que não deve perder mais tempo com medo de saber se vale a pena investir nesse romance. Ela é sua, assim como você, desde que a conheceu, descobriu-se dela.
Quantos anos vocês tem? Pouco importa. Estão fora da faixa etária dos que se apaixonam? Não sei se isto existe. Sei que há meses que, entre uma fala atrapalhada e outra, a vida os convida pra dançar e vocês perdem esta oportunidade...
Fiz minha parte: eis o texto. Do amor, sempre soube. Só cegos não veriam que é amor o brilho dos olhos, o corado das bochechas, o tremor nas mãos... Tenho mais de quarenta anos e, graças a Deus, reconheço o nobre sentimento, porque amo, também.
Espero aproximá-los com minhas palavras. Mas não posso ir além. Desejo a vocês coragem, porque disto é feita a vida. E quando somos corajosos a vitória é mais curtida. A confissão taí. A vida de vocês também, esperando ser vivida.
Ela está apaixonada. Você também. Vamos tratar de viver?

sábado, 4 de agosto de 2012

Somos todos girassóis

(No meu quintal observo as plantas voltadas para o Sol, mesmo quando modifico a posição dos vasos... Sempre que percebo, também eu estou voltada para ele, o rei. Escrevi sobre esse presente maravilhoso de Deus.)


Plantei azaléias no meu quintal, cantinho perto da garagem. Azaléias são flores de adaptação difícil. As minhas estão lindas. Já estão lá há um ano. Vieram da loja cheia de botões. Todos desabrocharam. Depois foram caindo as flores. Esperei. Escondi dela minha ansiedade. Só cuidei: molhei, tirei as folhas secas, apliquei remédio contra pragas. Ela retribuiu-me com novos botões, novas flores, e folhas verdinhas!
No cantinho onde está a azaléia tenho também buganvilles e vincas. Todas estão floridas, como se a primavera já as estivesse namorando... E eu tenho todas elas tão bonitas, porque neste cantinho eu tenho o Sol.
Hoje acordei extremamente constipada. Levantei-me e fui ao encontro do Sol – estrela maior! – para “ter” com ele, e ver se me curava... Entrei na fila: todas as flores do meu cantinho estavam conversando alegremente com ele.
Somos todos girassóis. Por mais que eu mude os vasos de posição, sempre que observo, os caules estão girando ao encontro do rei. E também não fui eu lá?
É lindo ver a sabedoria da natureza! Lindo ver a troca literal da energia sol X verde acontecendo para que o mundo melhore. Como pode o homem julgar-se melhor que uma vinca, que uma azaléia?
Girassol é a flor que assumiu seu amor, sua dependência total pelo calor do rei. Recebeu, pois, este nome. Todas as plantas poderiam tê-lo recebido. Não estão todas elas, sempre, voltadas para sua fonte de energia?
Amo o Sol! É meu amigo, meu parceiro. É quem me lembra da existência de Deus. Existência física, verdadeira, magnânima. O Sol é um presente de Deus. Uma aliança, quase como o arco-íris. E promete vida longa aos que dele necessitam para viver.
Imaginando olhar a Terra na perspectiva do Sol, ela deve apresentar seu verde inteiro numa só direção. Que prosa o nosso astro rei deve ficar... E, a despeito das rotações e translações da Terra, para onde quer que o Sol olhe, verá sempre suas plantinhas – todas girassóis – a admirá-lo, segui-lo, apaixonadas!
Bobagem, mesmo, pensar um dia que o Sol é que girava ao redor da Terra. Até ela, o nosso planeta, é um girassol também.
Hoje aqui em casa tudo está à sua procura: as roupas no varal, as cadelinhas de banho tomado, eu desejando a cura para a gripe, Antônio com sua caixa de brinquedos, as toalhas de prato de molho no cloro e meus girassóis travestidos de azaléias, buganvilles e vincas. Nas minhas duas amendoeiras, andorinhas apresentam o rei aos filhotinhos (ou o contrário, quem sabe?) e me parece que eles já sabem que é preciso tomar dele um pouco de calor... É a simplicidade da vida acontecendo. Obrigada, meu Deus!
Nesse pouco da vida – que pra mim é tanto! – vou vivendo. Mostrando a Antônio o que há de mais bonito: o beija-flor espalhando os tons de cores pelo ar enquanto sacode as asas e mexe com o orvalho deixado na ixória (é lindo, isto!), a aranha “congelada” num ar, que estupefato Antônio descobre que é uma teia invisível, que ela mesma recolhe quando necessário, a engenharia (eu diria inteligência) dos marimbondos tecendo a casa, e lá já deixando ovos... A maravilha da lagarta preta e suas incontáveis patas, as cores das vincas, sem repetição, o louva-a-deus...
Tudo isto, girassol se movendo. Não teríamos visto nada, se hoje não tivesse um belo Sol no céu. Basta que ele apareça, garanta a presença na manhã e já vai todo mundo se animando, caprichando no espetáculo também.
Agora que escrevo, ele já ensaia a despedida: tem gente precisando dele do outro lado do mundo. Vai lá, meu rei! Incansável, vai começar tudo de novo lá no Japão. E o mais bacana é que nem assim nos abandona. Esbanjando generosidade deixa a lua, a noite inteira, nos fazendo companhia, brilhando intensamente com a luz que é dele, também.