quarta-feira, 27 de junho de 2012

Alguém entende o que eu pisco?

(A ciência do mundo inteiro pesquisa novas possibilidades de comunicação entre as pessoas que perderam a capacidade de falar... E os olhos andam falando, com esta tecnologia de ponta. Tenho tido dificuldades para me comunicar e, então, estou treinando, também. Mas será que... Alguém entende o que eu pisco?)


A ciência avança nas pesquisas em busca da melhor forma de comunicação entre os seres humanos. A robótica, a cibernética, tudo hoje está voltado para a globalização. Um objetivo: unir povos, mobilizar pessoas em prol da qualidade dos séculos que virão. Todos juntos pelas futuras gerações...
A sociedade se prepara, ainda que lentamente (pelo menos sob nossa ansiosa ótica), para conviver com tudo o que for diferente. A educação é para todos, e este é um direito garantido em lei. Não há questionamentos. Tem que ser assim.
Todos os diferentes têm que se comunicar. Entre si, com os diferentes deles... E as inteligências do mundo inteiro hoje estão inventando modos de garantir que esta comunicação se dê, verdadeiramente. Artefatos de metal, fios, computadores, chips e etc., podem garantir a uma pessoa que perdeu os movimentos dos membros do seu corpo que demonstrem suas reações, suas maneiras de pensar, seus talentos, seus conhecimentos, através do simples piscar de seus olhos...
E aí, me veio ao coração uma dúvida, que chegou com um aperto: alguém entende o que eu pisco?
Algo tem me incomodado recentemente. Ando acordando à noite, ando levando tempo demais embaixo do chuveiro. Eu divago, e não me dou conta de que há água e luz sendo desperdiçados enquanto penso num jeito de me fazer entender. Isto tem até me saído bem caro no final do mês!
Há um tempo, acontecia com menos frequência. Eu observava isto quando na presença de pessoas que me conheciam pouco, entre estranhos... Agora olho pro lado e, ainda que próxima de gente que conheço há tanto tempo e tão bem, duvido se o meu discurso tem saído da minha boca em língua portuguesa...
E como não me é muito difícil viajar nos pensamentos, andei pedindo a Deus que não me designe a sorte de ter os membros do meu corpo paralisados nem por um instante: eu, definitivamente, não saberia como me comunicar...
Treino os olhos, diante do espelho: o movimento para a esquerda seria indicador de negativas, enquanto olhando para a direita afirmaria, respondendo a estímulos. Não. Posso desistir da ideia.
Quem me conhece, sabe que todo o meu corpo fala. Com certa facilidade expresso minhas opiniões: falo, e enquanto falo, gesticulo demasiadamente. Meus olhos gritam, embora contidos pelas lentes dos óculos. Estão sempre atentos. Eu enxergaria tudo, não fosse o astigmatismo... Uma veia na garganta salta, ameaçadora. Enrijece meu pescoço. Minha voz se esgota, concluo minhas frases sempre rouca, sem respiração, com o coração palpitante... Minhas pernas balançam – hábito adquirido após a convivência com minha amiga Assiany – delatando a impaciência, a vontade de reagir a uma situação qualquer que me tire do sério... Faço tudo: falo, escrevo, desenho, represento, imploro... E nada, ou quase nada do que digo é compreendido.
As frases feitas das redes sociais são bem interessantes. Noutro dia, li uma: “Sou responsável pelo que falo e não pelo que você entende”. Bonito de se ler. Chegou-me numa hora certa. Compartilhei entre amigos, desabafei. Mas teve gente que não entendeu a mensagem da frase e eu me entristeci.
Eu não consigo desistir. Ainda que pra mim isto soe como um convite a calar-me. Não conseguiria. Daí, fico em frente aos espelhos da minha casa ensaiando olhares e piscadas. Esquerda, direita. Uma, duas, três. Pouca velocidade, muita velocidade...
Numa dessas tentativas – visão patética de qualquer um que presenciasse a cena por aqui – imaginei como deve ser a vida de um aluno paralítico, com o seu nível de desenvolvimento cognitivo preservado. Enturmado numa sala de aula de primeiro ano de escolaridade porque ninguém sabe o que ele sabe. O menino, já com seus doze, treze anos de idade, dominando todo o alfabeto que conseguira aprender por conta de ter um irmão de sete anos que passou pelo processo de alfabetização e fez todas as suas tarefas de casa ao seu lado. O menino não fala, não se movimenta. E, na escola, é obrigado a frequentar a sala do primeiro ano, porque é pra lá que empurram sua cadeira de rodas todas as vezes que o sinal da entrada toca. Ele não faz nada além de piscar os olhos desesperadamente, mas ninguém entende o que ele pisca.
Eu sou um menino destes. E tenho pernas e braços que se movimentam, tenho uma voz atrevida que desobedece aos limites impostos pelos calos nas cordas vocais e ganha o espaço num clamor incansável por uma escola pública verdadeira. Às vezes tentam me empurrar em sentido contrário e, como minha fala definitivamente anda se perdendo no acaso, no espaço ocioso dos pensamentos de outrem, agora dei para treinar o piscar dos olhos.
Fiquem atentos. Vou precisar de gente que leia o meu olhar daqui por diante. Porque vou falar através deles em algumas situações onde for necessário fazê-lo.
E quando todos estiverem entendendo meus olhares serei a pessoa mais feliz do mundo. Porque verei ser possível descobrirem nas escolas os meninos paralisados e lerem nos seus olhos o potencial que têm.
Resta-me, agora, pensar no que fazer com meus dedinhos. Ultimamente eles andam falando muito mais do que eu. Mas esta é uma outra história...

sábado, 23 de junho de 2012

Entre viver e esperar as provas do bimestre


(Uma mulher ameaçada de morte quer sair da cidade, mas não pode. É que está chegando o fim do bimestre e seus filhos têm provas nas escolas.)



Uma mulher é ameaçada de morte. Mãe de quatro filhos, procura as escolas onde as crianças estudam para solicitar a transferência delas. Ela quer sair da cidade.
São duas as escolas. Da primeira, sai aliviada: a Diretora garantiu-lhe adiantar as provas de segundo bimestre para sua filha mais nova, que cursa o 1º ano de escolaridade. A segunda, onde estão os outros três, ela deixa um tanto preocupada, pois a Diretora lhe disse que os meninos só começarão a fazer as provas na semana de avaliação, que começa daqui a oito dias. E que só poderão transferir-se, no prazo que ela deseja, se não ficarem em recuperação.
Essa mãe conversou comigo sobre isto, e nem se deu conta de como suas palavras afetaram-me como sova bem dada...
Eu fiquei lá, ouvindo suas palavras. Gente simples, olhar cabisbaixo, autoestima inexistente. Um desespero inibia seus movimentos, ao mesmo tempo em que se revelava em todo o seu modo de agir. Ela estava perdida. Mas soube até onde caminhar. Tinha dúvidas, precisava ouvir de alguém que aquelas respostas que ouvira nas escolas onde confiara seus quatro filhos eram as respostas certas numa situação como a dela.
Ao ouvir a mulher, senti vergonha. Medi as palavras, contive-me, temerosa de que na sua inteligência – todos têm alguma – ela percebesse o meu mal-estar diante do que me dissera. E observando sua boca se mexendo freneticamente, embolando-se em palavras que já nem valiam mais a pena serem ditas, deixei a mulher falar e comecei a pensar, cá com meus botões...
Envergonhei-me da ação da primeira escola. E quis tentar visualizar uma equipe técnico-pedagógico-administrativa atendendo a uma mãe em estado de sofreguidão e tendo a dizer, apenas, que “adiantará as provinhas da menina”. Não há outro meio de se avaliar. Ninguém consegue imaginar que um aluno possa deixar a escola e levar, no seu histórico escolar, uma nota que não tenha sido resultado da correção de um papel chamado prova. E naquela primeira escola eles persuadiram a mulher tão capciosamente que ela saiu aliviada de lá.
Reagi com semelhante vergonha à ação da segunda escola. Diante de uma mãe com sua vida ameaçada, apresentou-lhe o “calendário de provas do segundo bimestre” e, ainda pior do que isto, mostrou-lhe também o “calendário das provas de recuperação do segundo bimestre”, advertindo-a de que haveria a possibilidade de um de seus filhos precisar dele...
Após ouvir o relato da mulher – e simultaneamente ter viajado em meus pensamentos – quis traduzir para ela o que as escolas lhe haviam dito: “Mãezinha, a senhora tem que pedir para o moço que quer lhe matar, para esperar que seus filhos façam todas as provas, senão, vai ficar difícil!...” Mas meu compromisso com a educação não me deixou fazê-lo. E calei-me, mais uma vez. Mas o fiz em respeito a ela, porque nas circunstâncias em que o nosso encontro se deu, de nada adiantaria eu agravar as coisas dizendo-lhe a cruel verdade das falas ouvidas nas duas escolas.
Meu Deus, quando isto vai acabar? Quando é que poderemos viver livremente, avaliando alunos pelo crescimento que vão tendo ao longo do caminho, sem estancar as coisas em datas consolidadas mês a mês, a despeito da vida que cada um leva?
Até quando precisaremos de um papel com respostas às perguntas que escolhemos fazer e que julgamos determinantes na aprovação ou retenção de um aluno para dar-lhe o veredito?
O que há de desumano entre as paredes das escolas, que reforça a pais e mães – para além de a seus alunos – a ideia de que são obrigados a viverem conforme as regras da escola, e não o contrário? Quem está a serviço de quem?
Saber de um velório sentido no cemitério da cidade, onde se testemunhou uma mãe morta com um tiro na cabeça e quatro menores chorando ao redor do corpo, desesperados, causaria algum desconforto nas escolas? Certamente, ninguém pensou na gravidade do caso.
São os pais que indicam a forma como a escola caminha. É assim que penso. A comunidade é que dá o tom. O calendário escolar serve ao entorno. As mudanças, os imprevistos, fazem parte do contexto, e são perfeitamente permitidos. Nesse sentido, como não há previsões para ameaças de morte, a escola tem que se mobilizar e se reestruturar, se for o caso, quando algo similar acontece.
Mas o que vi foi a incompetência. E ver colegas de profissão agirem num profundo desrespeito com a vida do seu semelhante causou-me acanhamento.
Todo dia é um recomeço. Recomeçarei todos os dias, quantos forem necessários, até poder ter a alegria de nunca mais passar por aquele misto de sensações terríveis que passei naquela tarde, naquele encontro com aquela mãe. Neste dia saberei que nada nas escolas impede o caminhar de um ser humano. Saberei que as pessoas não são o resultado do que escrevem num papel, numa determinada semana agendada. São mais, muito mais que isto, e têm o direito de viver, e de fugir do que lhes ameaça a vida, sem terem os seus passos interrompidos pelas escolas e suas burocracias absurdas.
Deus guie os passos daquela mulher. De minha parte, alertei-lhe de que, se quiser, faço as coisas de outro jeito, impondo às escolas que avaliem as crianças independentemente do dia que o calendário prevê que isto aconteça. Mas ela pareceu-me concordar com as sugestões das escolas, e eu respeitei sua decisão. Ao sair, eu a abracei. E enquanto estávamos abraçadas pedi perdão a Deus por tudo o que fazemos de errado nas escolas. E pedi a Ele, também, para protegê-la e aos seus quatro filhos, até que terminem as provas, até o final do segundo bimestre.

terça-feira, 19 de junho de 2012

Barro nas mãos do oleiro

(Amanhã é meu aniversário. Há quarenta e quatro anos Deus apresentou à luz um bocado de barro disforme, e iniciou Sua obra em mim...)


Ainda há muito por fazer, até que a obra esteja pronta. Mas ninguém sabe dos desígnios dEle...
Desde o ventre da minha mãe sou barro nas mãos de Deus. Hoje, às vésperas de completar meus abençoados quarenta e quatro anos, vim aqui agradecer ao Senhor pelo dom da Vida.
Rubem Alves escreveu um texto lindo (“Sobre o tempo e jabuticabas”) falando sobre essa vontade que se sente de viver quando se nos aproxima a morte. Conta que na velhice a gente se sente como uma criança que, tendo se fartado rapidamente de jabuticabas numa tigela, percebe as poucas restantes e decide saboreá-las lentamente, agora, uma por uma, já que estão chegando ao fim...
Desde que li o texto comecei a saborear as minhas jabuticabas mais devagarzinho, embora eu ache que o li, também, tarde demais.
Mas a leitura – ainda que tardia – valeu a pena, pois passo a ideia adiante, sempre que posso, para as pessoas do meu convívio. Antônio “sofre”... Tem tanto a comer, a lambuzar-se ainda e, mesmo assim, insisto que viva, viva, viva!
Eu sou tão feliz! Obrigada, Senhor! Barro meio indefinido, reconheço, meio desajeitado, mas com essência, uma essência divina, um desejo de Deus que se transforme em obra rara...
Todos os dias Deus se dispõe a moldar-me, a desfazer algo que não deu certo no dia anterior, a propor uma nova forma. E eu, entregue por completo, lanço-me às Suas mãos: “Faz, Senhor, o que quiserdes de mim.”
Minha entrega é espontânea. Estou diante dEle como aquele aglomerado de barro disforme. E vivo cada dia que recebo de presente quando o Sol atravessa as frestas da janela quebrada do meu quarto sem medo, com Ele. Confiante. Feliz.
Minha passagem por aqui é rápida, hoje.
Pretensão, uma só: dividir com meus amigos essa alegria que sinto todas as vezes que a data de vinte de junho se aproxima. Todas as vezes em que olho pro espelho e percebo uma ruga a mais no rosto, uns cabelos brancos a mais... Meu corpo dá sinais de que vivo e, se viver é uma bênção de Deus, meu corpo dá sinais de que Deus está comigo, oferecendo mais uma oportunidade de eu melhorar, melhorar, melhorar, até chegar o dia de estar com Ele, definitivamente.
Eis a partilha: esse barro envelhece à disposição das mãos divinas, as mesmas que o trouxeram à luz. Convive com vocês, amigos do blog, do facebook, do trabalho, de casa, esperando a hora de ficar pronto e ir-se de uma vez. Por enquanto não penso muito nisso, porque querer mesmo eu queria viver enquanto Antônio viver... Mas estarei inclinada a deixar este mundo assim que o Senhor meu Deus sussurrar em meus ouvidos: “vaso pronto, vem comigo”...
Amanhã vou acordar e agradecer, como de costume. Não sei por quanto tempo farei isto, não sei quantas jabuticabas me restam, mas agradecerei. Amanhã tenho jabuticabas extremamente doces para saborear, pois passarei meu dia em companhia dos meus pais e do meu filho. Verdadeira família: pais e filhos. Eu filha, eu mãe... Total comunhão com Deus.
Que me resta dizer, senão, “obrigada, Senhor”?

sábado, 16 de junho de 2012

Dia, noite, dia

(Todo mundo tem um calendário em casa, no trabalho... Calendários marcam os dias que passaram, que estão por vir... Assim nossa vida segue. Observamos mecanicamente os calendários, mas pouco pensamos no real valor dos dias...)


Calendários marcam datas. Geralmente padronizados, ficam expostos nas mesas, paredes e geladeiras, alertando naquele quadrado lógico de numerais que estamos vivendo mais um dia...
Calendários são objetos frios. Fazem sua parte. E, por serem tão extremamente necessários, acabam por tornarem-se imperceptíveis em sua grandeza maior...
O que há de grande naquele seu calendário (você tem um, não?) é o registro da vida. E nem nos damos conta disto!
Uma vez conversei com uma pessoa que me apresentou um novo modo de ver a vida: ela me disse que dias e noites são acionados por um interruptor que Deus tem lá no céu. Sim, esta pessoa não acreditava no movimento de rotação da Terra, mas, sim, num movimento mecânico de Deus, diante de um interruptor: bastava que o tocasse, era dia. Repetir a ação era providenciar a chegada da noite, e assim por diante...
Foi estranho ouvir aquela defesa... Prefiro acreditar no que meus Professores me disseram, naquilo que também eu disse a meus alunos durante muitos anos. Usei muitas laranjas, lanternas e bolinhas de isopor para provar que a Terra gira em torno de si mesma e do Sol...
Mas seria pecado negar que, às vezes, durmo pensando nisto: Um interruptor...
Isto explicaria de forma mais convincente a rapidez como arrancamos as folhas dos nossos calendários... Meu Deus, ainda ontem era o mês de maio! Ainda ontem a janelinha de Antônio apareceu! Ainda ontem carreguei Miguel nos braços, pela primeira vez, quando minha irmã deixou a maternidade! Ainda ontem conheci o amor! Ainda ontem era criança, a calcular a idade que teria quando o ano de dois mil chegasse...
É, estamos vivendo. E independentemente se pensamos na ação mecânica ou física da coisa, o fato é que o tempo se vai com cada dia ou cada noite que chega e pouco nos damos conta disto. Talvez até nos demos conta, mas será que damos a importância devida?
Os minutos que se passaram entre eu ligar o notebook e chegar a este parágrafo não voltam mais. Que outras ações poderia eu ter realizado em vez disto? Perdi um amigo em 1985, assassinado. E até hoje lamento os minutos que precederam ao fim de sua vida. Tudo bem, Deus sabe a hora de cada um estar com Ele, prestar contas do tempo passado aqui na Terra, mas é impossível um ser humano – ainda que temente a Deus – não pensar no que poderia ter acontecido se, minutos antes, algo tivesse sido diferente.
Segundos modificam vidas. Faltar oxigênio no momento de um parto, esforçar-se sobremaneira à beira de um campeonato, dizer sim ou não... Imagine dias, meses, um calendário inteiro?
Viver é uma bênção, não me canso de dizer. E o que fazemos quando, abrindo os olhos pela manhã, recebemos o presente de Deus que é o convite pra viver? Quando acordo Antônio, sempre digo a ele assim: “Bora acordar, e viver o dia de hoje?” Tento fazer com que ele perceba que cada dia tem o seu propósito e, com isto, fazer com que ele valorize seus minutos.
Crianças sabem viver muito melhor que nós, é fato. Dão a importância real aos fatos mais sublimes da natureza, eu já escrevi sobre isto antes. Antônio me acompanha nas façanhas por uma foto da coruja que mora aqui perto de casa. Quando passamos à noite pela rua vem com a cabeça para fora da janela do carro espiando, procurando por ela, e basta observar a expressão de seu rosto para ver-lhe a alegria: olhos iluminados pela lua, cara séria. Quando a vê, fala baixo: “Mãe, olha ela ali!”, e seguimos, parceiros, em busca do ângulo, quietos para não sermos percebidos, tentando a foto, mais uma vez. Ainda não conseguimos a ideal, a coruja é indubitavelmente mais esperta que a dupla aqui.
O que me importa é que Antônio cresça valorizando atitudes como estas. Basta. Estou no caminho, espero. Porque se meu filho passar os dias que o seu calendário lhe apresentar buscando o melhor ângulo pra ver as coisas lindas da natureza, já estarei satisfeita em minha velhice. É, até porque calendários seguem simultâneos, não nos permitem viver o mesmo tempo que os filhos. Segue, Antônio, eu deixo você passar...
Dia, noite, dia... E lá vai a vida e o que nós vamos fazendo com ela... Ações geram consequências, e um dia nos vemos respondendo por tudo aquilo que fizemos. Às vezes, é imediato. Às vezes, demora tanto que chegamos a pensar que Deus deve ter esquecido. Que nada!
Minhas reflexões vão aumentando, agora, à beira de soprar as quarenta e quatro velinhas... É certo que nesta época ficamos mais melancólicos, pensativos, mas não será também esta uma intenção de Deus? Mais um ano nos foi dado, e o que fizemos com ele? Quantos mais teremos pela frente? E, tendo mais alguns – a gente sempre espera que muitos! – a viver, o que pretendemos, verdadeiramente? Afinal, os que ainda vêm nos modificam. Ficamos mais experientes – sábios, até, os que aproveitam a vida! – mas os ânimos já não são os mesmos, a nossa condição física já limita o que nos provoca o viajar dos pensamentos...
Até que um dia (noite, dia, noite, dia) nos daremos conta de que não há muito mais por onde caminhar. Quem tem crianças por perto percebe isto tão logicamente que chega até parecer cruel! Quero escrever sobre o sabor das últimas jabuticabas na tigela – texto lindo do meu lindo Rubem Alves, mas quero deixar para fazê-lo no dia do meu aniversário. Por enquanto, quero deixar como mensagem este meu pensamento de hoje.
Quando eu terminar de escrever este texto, o dia terá findado, também. Deus vai completar a volta da Terra, ou mexer no interruptor, mas verei a noite se anunciando... Esta é uma hora linda de se observar o céu: há sol e lua, nuvens, e umas estrelas atrevidas que já brilham antes das outras...
É lindo ver o céu! Lindo ouvir o canto das andorinhas voltando para as árvores (eu queria poder fotografar o canto das andorinhas nos finais das tardes!), lindo ver a lua surgir do mar, pastilha amarela, imitando o sol, confundindo a gente, que se perde no tempo!
Talvez não haja preferência de Deus pelo dia ou pela noite. Acho que Ele dá preferência pelo que fazemos com as vinte e quatro horas que nos são oferecidas quando riscamos a lápis, no calendário, o dia que se foi. E meu desejo pra hoje é que pensemos na valia de cada minuto, no tanto que ele pode definir o que será do próximo.
Enquanto festejo as páginas que viro no livro da minha vida com Antônio, cedo a ele o monte de páginas em branco que lhe esperam, e conto as poucas que me restam. Não há mais o que agendar para “bem depois” no meu calendário. Preciso tornar algumas coisas mais urgentes, sinalizar com marcador de texto na agenda: “fazer hoje!”, “fazer agora!”... Porque não sei como está a minha situação lá, no calendário de Deus...
Hoje liguei pra casa (pra casa... pra minha verdadeira casa, eterna casa, a casa deles) e convidei meus pais para virem almoçar comigo no dia do meu aniversário. E, diante da possibilidade de tê-los aqui na quarta-feira mesmo (o dia) ou no fim de semana, não hesitei em optar pela quarta. Agora, você já sabe o segredo...
Previsivelmente, a tarde chegou agora. Linda, como eu gosto de assistir. Uma prova de que nem tudo o que escrevo é loucura. Uma prova de que Deus existe. Espero que de lá de cima Ele esteja orgulhoso dos minutos que usei organizando estas palavras.  E que abençoe a cada um que, da mesma forma, optou por gastar os seus lendo isto que acabei de escrever.

quarta-feira, 13 de junho de 2012

Leão e urubu

(Eu acredito que os animais também vão para o céu... E suspeito que Deus não pretendia hierarquia alguma quando criou os seres vivos... Animais, plantas e homens. Cada um com sua importância, seu valor.)


 
Eu creio que no céu tenha animais, também. Falo do céu que acredito. Naquele para onde vão as pessoas do bem quando morrem. As de coração puro como o das crianças. As humildes, as honestas. As que não usam o santo nome de Deus em vão.
Ainda não fui convencida, embora algumas pessoas já tenham tentado argumentar a respeito da ausência dos animais no céu. Continuo acreditando que há espaço reservado para eles por lá. Porque trago comigo uma suspeita de que Deus não estabeleceu hierarquia quando criou os seres vivos. E, na medida em que vamos “evoluindo”, acho que plantas e animais têm passado nossa frente na fila de acesso aos braços de Deus...
Vamos conversar sobre isto? Permitam-me, vou escrever o que penso.
Penso que quando Deus criou as plantas, os animais e os seres humanos não lhes impôs graduação. Deu-lhes características diferentes, valores diferentes e ordenou-lhes viverem, se não me engano, com um sopro.
Deus criou o leão: Soberano. Imponente. Astuto. Belo. Forte. Temível. E criou o urubu, com aquelas suas características que dispensam apresentação. Qual dos dois animais é o mais importante para Deus?
Ele fica por lá, o rei das selvas, abatendo outros animais para alimentar-se e à família. O urubu vemos por aqui mesmo, retirando das estradas os animais atropelados, alimentando-se de suas carniças, evitando novos acidentes. Que seria de nós sem os urubus? E, no entanto, vivemos do mesmo jeito, sem leões por perto.
Quando Deus soprou as plantas, soprou o jequitibá. Seria o homem melhor que aquela árvore que dura mais de mil anos, pode chegar a medir quarenta metros e ter quinze metros de circunferência?
Mais de dez homens são necessários para um “abraço” num jequitibá. Imagina a proporção de uma árvore desta diante de um só ser humano? Certamente, Deus a vê primeiro, de lá do céu, que ao homem. Este sim, então, que diminui a cada dia, afasta-se dos olhos de Deus a cada dia, a cada atitude...
Quem é o melhor: o leão ou o urubu? Vivemos a classificar as pessoas, a rotulá-las, a separá-las segundo nossos conceitos. Uns são leões, outros urubus. Desprezamos a natureza à nossa volta esmagando formigas, chutando cachorros, esfaqueando tubarões e baleias. Colocamos os filhotes de gatos nos sacos, arrancamos plantas, invadimos reservas, colhemos sem plantar. E o fazemos porque nos julgamos melhores que o resto das criaturas.
Nada somos. E não consigo imaginar que animais que venham ao mundo para sofrerem tanto não tenham direito ao céu quando morrem. Não me parece que a ideia de Deus tenha sido esta: nascer, sofrer, morrer e pronto. Não quero pensar assim.
O homem recebeu de Deus a razão. Sim, aprendemos na escola que isto é o que nos diferencia: somos seres racionais. Que argumento racional usaria o homem diante de um leão faminto?
Que argumento racional usaríamos para sobreviver por um milênio? Para conquistarmos a imponência de um jequitibá? É sombra, é alimento, é produto, é oxigênio, é vida e, no entanto, sua simplicidade fica subjugada à gana “racional” do homem. Como ficam subjugados também a baleia, o tubarão, os gatos, cachorros e formigas.
Leão ou urubu, jequitibá ou eucalipto, homem, fomos todos criados pela mesma mão misericordiosa de Deus. Com o mesmo valor, eu creio. E se há alguma diferença, desde a criação até os dias de hoje, eu penso que a obediência aos propósitos de Deus manteve-se entre animais e plantas, diferentemente do que aconteceu com os homens, que abusaram do poder do dom do raciocínio e atropelaram-se com ações desordenadas, malditas e indignas aos olhos de Deus.
Quando Antônio nasceu e me vi sozinha com ele aos três dias de vida, foi o meu instinto quem conduziu as coisas aqui em casa. Impossível eu explicar como as coisas foram acontecendo por aqui. E deram certo. E foi assim, porque segui a minha irracionalidade, deixei meu lado animal cuidar de Antônio: os cheiros, os avisos, as sensações, os gostos, os olhares, os gemidos... Não havia palavras, razão. Só mãe e filho, tentando uma comunicação que pediatras, psicólogos, terapeutas e afins talvez hoje condenassem. E Antônio está aí. Vivo entre nós. E eu estou aqui. Sobrevivemos.
Somos todos filhos de Deus. E estamos sob o Seu fiel julgamento. Ver uma criança ser posta num saco de lixo dói no coração de Deus na mesma medida em que dói ver gatinhos recém-nascidos ensacados. Na mesma medida em que dói ver o jequitibá abatido pela usura do homem.
Nos dias de hoje, em nossa sociedade, chamar alguém de animal é ofensa. Vai ver no reino deles chamam de homem os atrozes de qualquer espécie... Uma sacada, no mínimo, inteligente. Digna do céu. Quem contesta?

domingo, 10 de junho de 2012

Olhos nos olhos

(Mais um pouquinho das minhas histórias de amor com Antônio... Ando tentando ensiná-lo a assumir as suas atitudes, de frente. Olhos nos olhos.)


Sempre foi este o nosso primeiro contato. Mesmo durante as noites escuras em que eu levantava sobressaltada para observá-lo no berço, foi sempre através da troca de olhares que nos comunicávamos. Eu procurava por aqueles olhinhos de jabuticaba para saber se estava acordado. E, constatando que estavam abertos, restava-me descobrir o motivo – fome, fralda cheia, frio, calor, medo, saudades de mim (essa parte eu gostava muito!) – e resolver o problema.
Nossos olhares acostumaram-se rapidamente – ou geneticamente – um com o outro. Sentado no carrinho, tomando banho de sol enquanto eu lhe preparava alguma refeição, era pelo olhar que dizia que me amava. E olhando pra ele eu retribuía a confissão. Dali surgiam uns ensaios de sorrisos, meu e dele. Sem palavras. Elas estavam todas ali, no espaço entre os seus olhinhos e os meus.
Antônio foi crescendo e, a natureza foi lhe definindo o olhar: aguçado, impressionante, atento, expressivo. Eu, no papel de mãe, orgulhosa de sua beleza, agradecendo a Deus pelo brilho dos seus olhos, desde que ouvi do seu pediatra que isto era sinal de saúde. Amém!
Nas fotos, seus olhos sempre dizem alguma coisa. Uma alegria inerente à infância, uma insatisfação por minha insistência...
Quando nos falamos, é olhando um nos olhos do outro. O combinado é este, aqui em casa. Na hora das palavras de afeto, olhos nos olhos. Na hora da bronca, também. Ninguém desvia o olhar. Tenho tentado ensinar a Antônio que um homem deve sempre assumir o que faz. E quando a gente assume o que faz – esteja certo ou errado – faz isto encarando a situação frente a frente. E por muitas vezes aqui em casa a expressão “olha pra mim enquanto falo com você” é dita.
Estabelecido este vínculo, Antônio e eu nos comunicamos pelo olhar. Quando acordo está me olhando, já, há algum tempo. Pisca. Sorri. Me diz “bom dia” e o dia começa. Só aí, começa. Meu dia sabe que, pra começar, preciso do sorriso dos olhos de Antônio...
Fora de casa ensaio os limites olhando pra ele, também. Antônio já entende o meu “não pode”. Nada preciso dizer. Ele já ouve meus olhos. Quando a situação é engraçada, basta que nos olhemos, para a gargalhada sair: acontece demais quando estamos juntos eu, ele e o seu pai. Rimos muito das expressões estressadas do pai dele. Trocamos pensamentos... Este é o nosso segredo, o pai dele nem sabe! E, às vezes, fica perguntando: “por que é que vocês estão se olhando, hein?”. Nada dizemos. E voltamos a rir, até chorar.
Treinei por três anos manter Antônio no berço. Por nenhum dia permiti que dormisse na minha cama. Levantei milhões de vezes – ele acordava de hora em hora para mamar! – e por nenhuma delas decidi deixá-lo ao meu lado. Tudo por medo de que se acostumasse a dormir comigo. Errei.
Hoje eu é que durmo com ele. Não me importa que esteja cometendo o equívoco. Resolvo isto depois. Mas não largo nada deste mundo para acordar pela manhã sem ver aqueles olhinhos escuros quase grudados nos meus. Estamos ligados, não há mais jeito. Nossa troca de olhares tem peso, o peso do amor que sentimos um pelo outro.
Hoje Antônio despede-se de mim no portão da escola, mas, mesmo que me exija ficar a uns metros de distância, ele o faz olhando-me nos olhos.
Enquanto ouço a queixa da Professora de Espanhol sobre seu comportamento “ruim” durante a aula, vejo um menino enrubescido, envergonhado, mas olhando-me profundamente nos olhos, assumindo a verdade dos fatos. Nada preciso dizer. Sabe que errou. Desculpa-se, ainda que eu não abra a boca para dizer uma só palavra.
Assim seguimos, eu e ele, travando esta luta diária, difícil, que é educar. Ele me entende, na maioria das vezes. Eu procuro desarmar-me do adulto que há em mim para entendê-lo, sempre que possível. Importa é que seguimos juntos, olhos nos olhos.
Tenho um homem de verdade, aqui em casa. Homem, no sentido mais íntegro da palavra. Porque aquele que fala sem olhar nos olhos do outro pra mim, não é homem. Aprendeu a esquivar-se, a corromper-se. Isto, eu não tenho aqui. Tenho, sim, um menino lindo que, enquanto cresce, experimenta o adulto que será. E eu, de posse da força que as palavras proferidas por uma mãe têm, rogo a Deus que encare a vida com seus olhos inteligentes, sempre de frente. E que eles estejam lá, jabuticabas ávidas, por muitas e muitas manhãs ainda, ao meu lado da cama, a desejar-me bom dia.

sábado, 9 de junho de 2012

Quem vem?

(Tenho presenciado umas posturas estranhas ultimamente, onde "estou" trabalhando... E resolvi fazer um convite, pra saber quem vem comigo, já avisando que sorrisos não me enganam... "Estou" lá, mas "sou" Karla Pontes. A de sempre.)


Sorrisos não me enganam. Tenho quarenta e três anos.
Palavras negativas nada acrescentam. Então, desprezo logo que as ouço. Repreendo, tenho Deus comigo. Voltam na mesma medida para quem as proferiu. Nem ligo.
Carinhos físicos não excitam a pele de quem já viveu o bastante para perceber pragas rogadas. Voltam, também, na mesma medida.
Quem vem comigo nesta luta, então?
A despeito da parte pervertida do contexto, sigo na luta por uma educação pública de qualidade. E sei, exatamente, os que estão caminhando comigo. Sorrisos não me enganam, já estou me repetindo.
Há quem acredite, e sou muito feliz por isto. Há quem tenha guardado no seu coração a imagem da Karla Pontes de tempos atrás. Sempre pensei o mesmo, não há mudanças pelo fato de às vezes “estarmos” coisas que nunca estivemos antes. Somos. Eis o que importa para Deus: o que somos.
Sou Karla Pontes. Uma Inspetora Escolar orgulhosa de seu passado de Professora, do seu presente de Professora (sempre, eternamente!). Agradecida a Deus por reencontrar muitos dos meus alunos e, mais recentemente, alguns dos meus Professores. Inspetora Escolar que sempre defendeu a categoria como “o ápice” da Educação. E o rótulo devo à estirpe que encontrei aqui, quando aqui cheguei para conhecer a função. Aprendi com as melhores, e trago comigo a certeza de que era o plano de Deus pra mim, para me tornar uma pessoa melhor, uma profissional melhor a cada dia. Não preciso discorrer sobre isto, todos os que me rodeiam sabem que vou morrer dizendo que somos o que há de melhor na profissão de Educador.
Jamais me restringi ao espaço de Secretaria Escolar, embora por algumas vezes tenha sido chamada de “mera vistadora de papéis”. Não preciso nem dizer que quem atribuiu-me a expressão nada sabia sobre Inspeção Escolar. Nada sabia sobre mim. Palpitava, como palpitam muitos, os muitos que me julgam, sem me conhecerem...
Quem vem comigo nesta luta, então? Tenho sido rodeada por muitos e, no entanto, a cada dia removo um da minha lista de possíveis candidatos. Porque sorrisos não me enganam.
Então, faço o convite:
Quero lutar por uma escola pública que ofereça aos alunos uma educação verdadeira. Nada de pôr a culpa nos pais. Chega deste discurso idiota de que “se a família não estiver presente...” Ora, a família – quando existe! – tem mais o que fazer. A vida corre lá fora afogando todo mundo em contas pra pagar e nem espera o fim do mês para isto. As pessoas têm que correr de um lado para o outro, perdidas, trabalhando sem descanso, para prover o mínimo dentro de casa. Não têm tempo para a escola. Não há tempo, quando a escola convida pais para reuniões às quatorze horas da tarde. As pessoas trabalham e, se forem à reunião, perdem seus empregos. Donos de supermercados e comércios em geral não andam muito preocupados em manter funcionários empregados, tampouco em saber da vida escolar de seus filhos.
Quero lutar por uma escola pública que ofereça aos funcionários uma forma digna de trabalho. Mas isto pressupõe que cada um faça o seu serviço com perfeição e solicitude, o que implica fazer o seu sem vigiar o que é função do outro. Significa cumprir seus horários pontualmente, sem comparar-se àquele que não o faz, e o que é ainda pior, tomar este que não faz como exemplo a seguir. Significa dar o melhor de si diante do grupo, diante do seu superior, diante dos alunos. Estes sim, frutos das famílias que mesmo que não existam em sua forma tradicional pagam os impostos que lhe garantem o salário ao final do mês.
Quem vem comigo nesta luta?
Quero lutar por uma Educação de Jovens e Adultos que ofereça perspectivas positivas de futuro à clientela. Quero ver os velhos lendo e escrevendo, compondo suas histórias nos registros, antes que a memória lhes falhe. Quero ver os jovens verdadeiramente “correndo atrás” do tempo perdido, vislumbrando caminhos, alegres, e associando esta nova forma de ver a vida à Escola. Quero dar por findada a necessidade da EJA na minha cidade. Oferecer a modalidade em período diurno para atender àquela mãe que, apesar de perceber a distorção idade/série de seu filho, teme por permitir que ele estude à noite... Mas, para isso, precisaria de uma escola comprometida com o ensino noturno, com a dinâmica evidentemente diferenciada no trabalho com jovens e adultos. Precisaria de uma comunidade escolar com perfil voltado para este fim, e não de professores que optassem pela facilidade da “vertical” na montagem de seus horários de trabalho.
Ah, a alfabetização! Quem vem comigo no sonho de ter crianças alfabetizadas – no real sentido da palavra – ao final dos primeiros três anos de escolaridade? Efetivamente prontas para ler e escrever o mundo, para criticar, para justificar, para interpretar, para pensar?
São tantos os planos! E não sei se falar sobre cada um deles fará por diminuir a quantidade dos sorrisos. Espero que sim.
Prefiro dizer logo – se é que falta alguém entender o óbvio – que nunca estive na Educação à toa – nem nos bancos da sala de aula, nem no tablado, nem nas mesas de secretaria de escola, muito menos agora, diante da  janela de vista bonita. Gosto de trabalhar, de queimar neurônios pensando em como fazer melhor, de perder noites de sono anotando ideias, e de sonhar, sonhar muito, sonhar alto!
Estou feliz onde estou. Impossível negar. Causa-me algum desconforto, é certo, saber que mesmo “estando” não consigo realizar tudo o que quero. E que as barreiras às vezes vêm de onde menos se espera. Mas quem olha para aquela vista bonita da janela é a Karla Pontes. É quem é, não quem está. E da janela vejo uma Iguaba tão bonita que estufo o peito de orgulho por ser cidadã daqui.
Quem vem comigo nesta luta? Eu sei bem, quem vem.
Vem comigo dois tipos de gente: os que já vêm há algum tempo, mesmo sem saber pra onde vou. Os que estão comigo. Os parceiros. Os que matam a saudade num abraço forte, nas mãos dadas, nos e-mails carinhosos, nuns sorvetes lambuzados, nuns almoços de improviso... Aqueles que às vezes me pedem, brincando, pra sair de perto, de tanto que se sentem empolgados quando falo sobre as possibilidades de fazer acontecer algo de bom. Aqueles a quem chamo e dizem “vou”, sem saber a direção, como faz Antônio quando estendo a mão e ele a segura com força, na rua, sem sequer saber onde irei levá-lo. Ele confia. Pronto! Vai comigo onde eu for. Vêm comigo, os meus Antônios...
O outro grupo é formado por quem me conheceu agora, e já comprou “a briga”. Estar do meu lado (distantes ou próximos) nem sempre é fácil... Mas vêm comigo, e não hesitam. E eu já sei quem faz parte deste grupo. Adoro novidades. Gente nova (não importa a idade), oxigênio a alimentar a minha vida!
Essa gente toda – não são muitos, mas é o suficiente! – é que garante o meu tesão por trabalhar, por viver! E nem sempre está sorrindo pra mim, muito menos recebendo meus sorrisos. Às vezes eu atravesso essa gente toda com meus choros, minhas quedas de Dona Aranha...
O convite está feito. É trabalho à beça. Mas dispenso fingimentos. Vem quem quer, mas que venha pra fazer, pra somar, pra crescer. Porque do meu lado não tem lugar para gente que não gosta de trabalho e, à beira de completar quarenta e quatro anos, posso orgulhar-me em dizer que já sei identificar este lodo de gente que acha que sorrindo me engana. Estou ligada, fique certo! E agora, quem vem?

quarta-feira, 6 de junho de 2012

Professor Jorge Vicente

(Deus fez Sua obra completa em minha vida: Tendo lido meu último texto postado (sim, eu CREIO que Ele leu), permitiu-me estar diante de meu querido professor! Hoje eu o abracei, vcs acreditam?)


Ainda estou sob o impacto da forte emoção: estômago apertado, nervos à flor da pele... Mas vim até aqui para testemunhar a presença de Deus na minha vida.
Não bastou que eu escrevesse o texto no fim de semana citando o nome dele, atribuindo a ele a responsabilidade por minha preocupação no uso da língua portuguesa. Não. Deus queria mais pra mim. E, trinta e quatro anos depois, deu-me ele, o próprio Jorge Vicente, num abraço do qual jamais me esquecerei.
Hoje estive presente num evento da Academia de Artes, Ciências e Letras de Iguaba Grande. Sentei-me bem ao final da fila de cadeiras, acompanhada que estava de Antônio. Deixei-o, assim, mais à vontade para distrair-se.
De pé, do lado oposto ao meu, um senhor de cabelos brancos chamou-me a atenção. E observando os detalhes dos sorrisos, da atenção dispensada às pessoas, do carinho e da simpatia não tive dúvidas: tratava-se da figura do Professor Jorge Vicente.
Que coisa instigante é o tempo! Bastou que eu o reconhecesse para ter, novamente, por alguns minutos, nove anos de idade. Boquiaberta fiquei, como no dia de sua primeira aula: camisa cor de abóbora, calça marrom, cabelos de um preto incontestável, atitude política, aula interessante, respostas para as perguntas feitas pelos alunos, domínio de conteúdo e amor, amor, amor pela profissão.
Jorge Vicente tinha um jeito, já, diferente de lecionar. Combinava coisas com os alunos, lançava umas bolinhas azuis e vermelhas nos cadernos para atribuição de pontos. Estabelecia um “campeonato”, onde o primeiro aluno que levantasse a mão tinha a vez para responder em voz alta às atividades propostas. Dava pontos nos livros, corrigia o dever de casa, e ensinou-me que o antônimo de jamais é sempre. E eu aprendi isto errando uma questão do livro: respondi que era “sim”. Errei. Aprendi.
Ele nos ensinou que errando se aprende. Colocava apelido nas crianças. Chamava meu amigo Wellington de “cotonete de orelhão”... E era muito, muito respeitado por todos da sala, uma vez que sabia aproveitar todos os momentos dos seus cinquenta minutos de aula. Jorge Vicente era um professor jovem – lindo! – da rede pública de ensino do município de São Gonçalo, e valorizava o que fazia com sua postura profissional de PROFESSOR.
Meu testemunho estava ali, a poucos metros de distância: Deus não só olha por mim, como lê o meu blog. Leu neste fim de semana, compadeceu-se de minha saudade e permitiu-me aquele abraço que imaginava nunca mais poder viver. Jorge Vicente quebrou o protocolo – e eu, então, que nem sabia que havia! – como membro da Academia e tomou-me nos braços, depois de um discurso idiota que fiz, diante de uma plateia que esperava, certamente, palavras mais contundentes de uma Subsecretária de Educação. Falei apenas da emoção de vê-lo ali, confusa que estava. Abraçados ficamos alguns segundos e foi ali, só ali, que percebi que éramos do mesmo tamanho.
O que me levara à dúvida (“será ele?”) tinha sido exatamente o tamanho. Ora, na perspectiva da aluna de nove anos, eu trazia comigo a imagem daquele forte homem bem maior do que eu. No entanto, ao senti-lo tão de perto pude ver que cresci. Acho que só hoje me dei conta disto.
Extremamente emocionada, só pude dizer a ele: “Deus o abençoe, Deus o abençoe!” Foi louvor, foi gratidão, foi emoção, foi alegria.
Talvez eu não durma esta noite. Ficarei a lembrar-me daqueles dias no Castello Branco. Vou recordar o dia em que ele avisou à turma que a dispensa para o recreio seria por ordem da maior nota obtida no bimestre. E que, tendo citado o nome de todos os alunos, deixou-me por último, assustadíssima por imaginar ter tirado zero. Desfazendo a “cara feia”, brincadeira proposital, mostrou-me seu diário de classe: minha nota havia sido a melhor da turma. E parabenizou-me, carinhosamente.
A noite mal dormida – já prevejo! – fará com que eu recorde com riqueza de detalhes a festa do final do ano em que ele apareceu na escola munido de uma filmadora (caramba, quem possuía uma filmadora em 1978?) e filmou-nos a todos, com tamanho carinho.
Obrigada, meu Deus! Que faço por merecer tanta graça? Nada. Quando pensava em assistir unicamente à entrega de um prêmio a uma aluna da rede pela redação vitoriosa, recebo o presente maior: o meu professor querido, inesquecível, que por tantos anos trago no coração em forma de saudade!
A presença de Jorge Vicente no evento da Academia retrata que ele não desistiu, trinta e quatro anos depois. E trouxe-me ainda mais ânimo, mais motivação, mais energia.
Vou com tudo na luta por uma educação pública de qualidade na minha cidade. Com a mesma garra com que iniciei, em 1984. Foram tantos os erros cometidos, tantos! Tantas histórias pra contar! Mas se eu tive um professor que me ensinou que errando se aprende, não tenho motivos para parar.
Deus o abençoe, Jorge! Inexplicável e inesquecível a alegria de vê-lo, depois de reviver há tão pouco a emoção dos meus dias no Castello Branco. Como chamar isto de coincidência? Impossível! Ouso crer ter sido alvo da atenção divina – ainda que por curto espaço de tempo – que, por nada fazer pela metade, completou os parágrafos daquele texto de domingo passado com o nosso abraço, trinta e quatro anos depois.

domingo, 3 de junho de 2012

Colégio Municipal Presidente Castello Branco

(Hoje resolvi escrever sobre um colégio público onde estudei de 1978 a 1982. Na verdade, escrevi sobre alegria de ter estado lá, e no muito que trago dele comigo ... Quem dera que nossos alunos de nossas escolas públicas fossem felizes como eu.)


Entrei lá em 1978. Vinha de uma Escola Municipal Paroquial, de poucos alunos, próxima (o nome já indica) da Matriz de São Gonçalo, onde havia estudado toda minha vida, desde o Jardim de Infância, sob os olhares assustadores e extremamente carinhosos do Pe. Eugênio... Mas a Paroquial oferecia somente o primeiro segmento. Sendo assim, tendo terminado a quarta série, minha mãe precisou transferir-me de escola.
O Castello Branco ficava no quarteirão seguinte à minha rua. Era só atravessá-la, para chegar à escola. Da minha casa eu ouvia o sinal bater. Uma sirene longa, forte para dar conta de mais de mil alunos por turno.
Ainda hoje me lembro da primeira vez em que ouvi o sinal tocar, de dentro da escola. Era o meu primeiro dia de aula. Um pátio enorme, uma quadra de onde não avistava as quatro paredes demarcatórias. Minha mãe levou-me até o portão e lá me deixou. Foi tratar da vida dela, trabalhar. Minha mãe fazia transporte escolar e, por isso, estava sempre longe de mim nessas horas de entrada e saída de escola.
Alguns minutos se passaram entre eu ouvir o sinal e entender que ele indicava a hora de formar na quadra. Ainda atordoada pelo tamanho do espaço e pela movimentação de mil crianças, fui perceber isto tarde demais: quando a inspetora de alunos conduziu-me à fila, fui a última. E não houve outro jeito, porque já estava começando o toque do Hino Nacional, e eu não podia ficar de fora.
Quando acabei de cantar o hino chegou a hora de subir, em fila, para a sala de aula. Como fui a última cheguei, portanto, por último também. E, tendo sido a última a chegar, restou-me a última carteira da sala. Canto esquerdo, fundo da sala. Carteira de braço, que eu nunca tinha visto igual na vida. E, pela primeira vez, senti saudades da Paroquial: lá as carteiras eram de madeira escura, acopladas às mesas, e sentávamos de dois em dois.
Todas as cabeças na minha frente na hora de copiar do quadro. Eu tinha nove anos naquela época. Meus companheiros de sala muitos, muitos anos!!! Principalmente os que ficavam lá atrás, perto de mim: garotos e garotas com mais de quinze anos (eu me lembro da dupla Robson e Alexandre), repetentes, terríveis nos seus comportamentos. Meu Deus, naquele primeiro dia eu tive vontade de sair correndo de lá!
Passado o trauma do primeiro dia – melhor dizendo, não o trauma, mas o dia – os outros vieram em sua sucessão necessária, e fui vivendo cada um deles, do jeito que podia. Apaixonei-me pelo representante de turma, o Ranieri. Que menino lindo ele era!... Fiz algumas amizades com garotas do mesmo tamanho que eu (da mesma idade não havia, definitivamente), comecei a me divertir na hora do recreio, a descobrir durante os “piques” os cantos e encantos do Castello Branco...
Eu era uma menina horrorosa: alta, magrela, pescoçuda, de testa grande. Usava os uniformes costurados, velhos, passados da minha irmã. Lembro de uma saia que tinha defeito nas pregas, ficava meio torta... A calça de tergal azul, cheia de pences – minha irmã sempre foi mais gorda do que eu – vivia “pescando siri” (ela era mais baixa, também). Os sapatos, kichutes barbudos, que eu só recebia quando ficavam apertados para minha irmã. E, não bastasse tudo isto, minha mãe tosou-me os cabelos por conta de umas lêndeas que apareceram na minha cabeça.
Acho que não preciso contar da reação da turma quando cheguei à escola com aqueles cabelos. Todo mundo que já frequentou uma escola algum dia pode imaginar. Mas o inimaginável foi o que aconteceu comigo naquele dia na aula de Ciências...
O Professor, Sr. Mário Avelino. Ele dava as últimas aulas da tarde e, por isso, na hora da saída, fazia questão de formar os alunos para descer quando batia o sinal. Duas formas no corredor: meninos e meninas. Ordem de tamanho, o que me tirava do final da fila de vez em quando. Pois bem, com a turma formada, aproximou-se de mim e disse: “Você não é um menino? Com esse cabelo, parece o Joãozinho... Melhor ir para a fila dos meninos.”
Feito. Ele me fez descer as escadas do Castello Branco na fila dos meninos. Uma brincadeira ridícula que jamais esqueci. (Hoje chamaríamos aquilo de bullying, não?)
Estas formas de convivência foram me ensinando a “me virar”, no Castello. E fui aprendendo a ser feliz. No meu aniversário, a Professora de História pediu que o representante da turma me desse um abraço. Meu Deus, meu coração quase saltou pela boca! Aos poucos fui conquistando meu espaço, por ser excelente aluna, apesar de jovem demais. De nada adiantara eu ter feito dez anos, porque eles foram fazendo quinze, dezesseis... Meu espaço fui conquistando sozinha, e foi bem interessante ver, ao final do ano, que eu já estava enturmada. Comecei até a usar óculos – para completar minha já tão caricaturizada aparência – sem envergonhar-me por isto.
Com o tempo, fui melhorando minhas performances: já conseguia agarrar a bola nos jogos de queimada e até queimar alguém. É, eu aprendi a dar uma boladas e, assim, conquistei mais alguns amigos, de turmas diferentes, porque na hora do recreio todo mundo fica junto e não tem idade. Dá bolada forte, entra no time. Não dá, fica assistindo, até aprender...
No Castello Branco eu estudei até 1982. E tenho muitas histórias pra contar. Passado o susto inicial, vivi aquele colégio sugando-lhe tudo o que pude. Em 1979 conheci minha melhor amiga, a Cláudia Márcia, que seguiria comigo até sairmos de lá. Ela me ensinou como era gostar de alguém. Não, eu não tinha me apaixonado por Ranieri, não. Só pensava que estava. Amar é pensar todos os minutos, sem parar... E eu ficava fechando os olhos e tentando pensar em alguém durante todos os minutos, forçando os olhos, e quando me esquecia, “já era”, tinha que começar a pensar de novo. De tanto insistir nisto, Claudinha fez com que eu me apaixonasse pelo mesmo menino que ela. Ora, ela ensinou-me a gostar de Anderson, então, gostei de Anderson, também. Isto nos levou a uma experiência sofrida demais e evolutiva demais: as brigas. Ficamos “de mal” algumas milhões de vezes, trocamos bilhetinhos “ameaçadores” outras milhões (nesta época eu já tinha a mania de corrigir a escrita das pessoas. E me divertia com os erros dela) e seguimos crescendo, sem perceber. Seguimos amarrando uma amizade que dura até hoje. Aprendi a amar a Cláudia enquanto amava Anderson...
Minha passagem por lá não registra suspensões, notas baixas, agressividade, desobediências. Meus pais não me permitiriam ousadias como essas. Sempre fui alertada de que em caso de alguma queixa da escola levaria uma surra na frente dos meus amigos. Meus pais nunca podiam ir às reuniões de pais (eu não sei por que as escolas ainda hoje fazem reuniões de pais nos horários em que eles estão trabalhando!), mas sempre me lembravam do alerta. Cabia-me fazer minha parte.
Todas as vezes que vou a São Gonçalo vou ao Castello Branco. Já não há mais conhecidos por lá. Parei de perguntar por ex-professores, porque cada vez que perguntava por um, recebia a noticia de que havia falecido. O último que soube, Mário Avelino. Chega.
Mas passando pela Rua Carlos Gianelli é impossível não sentir o sorriso acolhedor daquele prédio. Ele ri pra mim, verdadeiramente. Sente saudades de mim, tanto quanto eu dele. Ali escrevi minhas histórias, e o ajudei a compor a dele, também. Deixei lá anos felizes da minha vida, que só não posso dizer que foram os melhores porque os melhores vivo agora.
Vivo meus melhores anos agora, não há dúvida. Porque cada ano que se vive é o melhor, pelo simples fato de estarmos vivos. E viver é uma bênção!
No Colégio Municipal Presidente Castello Branco aprendi coisas demais. Inclusive, os conteúdos das disciplinas! Meu Português – onde tento não deslizar, como diz minha amiga Tania – devo aos Professores Jorge Vicente e Valdir. Meu amor pela Matemática, que ajudou-me a exterminar os medos dos meus alunos, nasceu quando tive aulas com o Professor Alberto. E por ali segui aprendendo, sobretudo, a viver.
Transferi meu título de eleitor para Iguaba Grande, por razões eticamente políticas. Isto fará com que eu deixe de visitar o Castello por uns tempos. Mas ele sempre estará lá, imponente, a lembrar-me de que não é preciso muito para ser feliz. Bastam uns amigos, umas queimadas, uns amores, umas vergonhas... Tudo isto misturado à evolução dos hormônios numa idade em que tudo o que se quer é viver.
Tudo o que eu sempre quis foi viver. E parte da minha vida, da alegria da minha vida, ficou lá, no Castello Branco. Como parte dele veio comigo desde o dia em que de lá saí. Levei a alegria de ter estado no Castello para as escolas onde trabalhei, para ser inesquecível, na mesma intensidade, no coração dos meus alunos. Hoje, apresento esta alegria a todos os que trabalham a minha volta. E o brilho do Colégio Municipal Presidente Castello Branco está nos meus olhos cada vez que luto por uma educação de qualidade. Porque foi lá naquele colégio – público! – que aprendi a ser feliz!