quarta-feira, 30 de maio de 2012

A porta estreita

(Diante de tantos convites à felicidade, diante deste mundo que nos rodeia, resolvi escrever sobre a pintura de um quadro antigo que via na casa da minha avó.)


Quando eu era pequena e ia visitar a minha avó saía de sua casa sempre impressionada com um quadro que havia na parede da sala. Antigamente, os quadros eram pendurados nas paredes com um barbantezinho que lhes proporcionava um ângulo diferente: ficavam quase em diagonal, pendendo sobre nossas cabeças de criança.  Alguns causavam medo!
No quadro a que me refiro aparecia pintada uma estradinha, que bifurcava em seu final, dando origem a dois caminhos diferentes: um, com uma porta larga, bonita, que anunciava uma estrada cheia de animadas pessoas, movimentos sugerindo músicas, muita fartura de alimentos, e uma alegria aparente nos rostos robustos e corados. O outro caminho iniciava com uma porta feia e extremamente estreita... Pouca gente, silêncio, solidão. Nada sedutora!
Um dia minha mãe explicou-me o que o quadro representava: A porta bonita – de fácil acesso – e convidativa, era a porta do inferno. A estreita, por onde poucos passavam, era a porta do céu. E com aquele jeito de mãe, que agora só entendo porque sou também, foi me dizendo que nem sempre o caminho mais bonito a seguir é o que agrada ao coração de Deus.
Enquanto fui crescendo minha mãe reportou-se àquele quadro com suas ameaçadoras palavras. E muitas coisas que eu quis experimentar na minha adolescência viraram “porta larga” na minha vida: sair com amigos à noite, namorar antes dos quinze anos, ficar na calçada da escola quando acabava a aula, ir a festas de aniversários de amigos sozinha... Rapidamente ela me convencia (ou me calava) com seus argumentos de que o final daquela história que eu queria ensaiar seria um inferno bem vermelho...
A cena, a pintura, jamais deixou meus pensamentos. Pouco se vê, hoje em dia. Às vezes encontro coisa semelhante, mas igual aquele quadro “caindo” da casa de vovó, nunca mais. Mas embora lembrar-me dele cause-me certo desconforto, acalenta meu coração a lembrança dos minutos em que minha mãe foi só minha, explicando-me o sentido da gravura.
Hoje estou velha demais. À beira de completar quarenta e quatro anos, vejo a profecia do quadro se cumprir, com uma pequena – mas preocupante – diferença: a porta que dá acesso ao céu anda ficando ainda mais estreita, enquanto a outra, a concorrente, estende-se a cada dia, com seus atrativos formidáveis! E atormenta-me o fato de estar neste mundo, nesta estrada que está quase bifurcando, e que precede à opção da escolha.
Dia desses, dirigindo, li uma frase num para-choque de caminhão que mudou muito dos meus hábitos. Dizia assim: “Estou tão perto de Deus quanto escolhi estar”.
Estou tão perto de Deus quanto escolhi estar. Repeti muitas vezes ao lê-la. Que responsabilidade! Caramba, foi quase um puxão de orelhas!
Aqueles convites maravilhosos no caminho largo do quadro afastavam as pessoas de Deus. E hoje sofro muito quando vejo este mundo – que não é dEle, sabem bem os que nEle creem – oferecendo essas vaidades instantâneas a pessoas com espírito vazio, que se deixam levar pelas promessas fúteis de uma alegria passageira. E tanta gente segue por aí, sem saber sequer onde chegar, vivendo o minuto com essa filosofia de “carpe diem”, como se o mundo fosse acabar amanhã e todos tivessem direito a realizar suas vontades...
Temos, sim, este direito, e Deus é tão bom que nos concede. Mas todas as escolhas implicam renúncias. Todos os atos implicam consequências. E Deus é muito, muito bom, mas, sobretudo, fiel.
A porta estreita está lá, pintada naquele quadro que hoje faz presença na sala de uma tia minha. Eu não a visito mais, nós nos perdemos. E ele deve estar lá, educando a nova geração da família. Tomara! Tudo que conquistei até hoje foi com muita dificuldade. Já escrevi por aqui sobre alguns obstáculos na minha vida. Nada, no entanto, perto de muita gente que passou coisa pior do que passei. Mas louvo a Deus por cada problema que tive que enfrentar na vida. Os desafetos, o cansaço do trabalho, a juventude “aprisionada”, os nãos – muitos! – que ouvi dos meus pais, o dinheiro – sempre pouco – para passar o mês, os ônibus superlotados, as bolsas pesadas com os cadernos das crianças, as madrugadas em claro para fazer os trabalhos da faculdade, tanta coisa de que me orgulho!
Meu orgulho é ter uma história de sofrimentos pra contar. Porque com cada um deles eu garanti um passo a frente a caminho da porta estreita, mesmo que com atitudes humanas demais tenha dado dez para trás. Na verdade, acho – com a pretensão de quem ousa sentir-se uma filha de Deus – que Ele me escolheu desde o dia em que vovó pendurou o quadro na parede. Já na ideia de vovó Deus estava presente. E eu escolhi estar perto dele desde que atentei para aquela figura. Sempre estive curiosa por saber o que havia por detrás daquela portinha tão humilde. Porque, apesar de nada atraente, predizia uma paz tão grande como a que sinto neste momento em que escrevo, só de me lembrar... Um tom azulado... Matizes perfeitas...
Quero conhecer o céu. Preciso ser abençoada pelo sacrifício de lembrar-me, diariamente, que nada daquilo que vejo em primeiro plano neste mundo fará com que eu conheça o lugar onde está Deus: as falcatruas, os desmandes, as mentiras, as maldades, tampouco as felicidades fugazes, os sorrisos loucos, as alucinações...
Diante do apelo incansável da mídia e similares insisto na porta estreita. Ainda tenho longo caminho a percorrer, estou consciente disto. E tropeçarei muitas vezes, certamente. Mas quero viver de modo a ter explicações a dar a Antônio quando ele perceber a gravura, porque uma hora vai acontecer com ele, sei. Porque lembro das palavras assustadoras da minha mãe, sim, mas o que ela não me disse naquele instante enquanto olhávamos o quadro juntas mostrou-me com seu exemplo de vida. E aprendi, graças a Deus.
Hoje sei que não valeria a pena ter ficado na calçada da escola. Sei o que aconteceu com as meninas que ficavam lá, naquele tempo. Sei que o melhor mesmo é esperar os quinze anos pra começar a namorar. Sei que foram importantes os nãos que ouvi dos meus pais. Nossos pais nos ensinam o caminho da porta estreita. Deus abençoe nossos pais por isto!

sábado, 26 de maio de 2012

Léo

(É uma história que todo mundo conhece. Uma história triste, que envergonha o lado bom da nossa classe. Mas ele existe. E quando vocês lerem, lembrarão dele, com este nome, ou com outro nome qualquer.)


Nunca foi bom aluno. Sempre insistiu em sentar-se no final da sala de aula, naquele local que chamam de cozinha. Cadernos mal cuidados – muitas folhas arrancadas! – tarefas copiadas pela metade, mochila bagunçada, suja por ser atirada em qualquer canto.
Teve algumas suspensões na escola: debochado, chegou até a xingar uns professores que achava “chatos”.
Mas Léo era bom em Geografia. Nada de estudar e, no entanto, sempre tirava notas boas nas provas. Colecionou algumas repetências ao longo do Fundamental, nunca nesta matéria. Pelo contrário! Suas notas eram as melhores da turma. Foi sempre assim, e Léo nem sabe por quê.
Quando terminou o Ensino Médio, já atrasado, aos vinte anos de idade, Léo não sabia o que fazer da vida. Nunca trabalhara, mas agora era preciso decidir entre trabalhar ou ingressar na Faculdade. Tinha sido assim a conversa com seus pais no fim do ano. Uns dias de descanso no quarto, pouca reflexão e a decisão tomada e informada aos pais: optou por cursar a Faculdade.
Léo passou alguns dias jogado pelos sofás da sala, pensando que carreira seguir, a que se dedicar... Nenhuma das profissões lhe apetecia...  Até que uma ideia lhe veio à cabeça: “Acho que vou fazer Faculdade de Geografia... Sou bom nisto... Tirava notas boas na escola... Já é!”
Quatro anos de Faculdade de Geografia. Léo matou as aulas que pôde, copiou trabalhos no “Google”, trocou alguns favores como caronas pros amigos por ter o nome acrescentado em trabalhos de grupo. E, com 75% de frequência – contados nas pontas dos dedos – conseguiu receber seu diploma, depois de pagar para alguém escrever sua monografia. Ele a defendeu, Léo não tinha problemas com a disciplina.
Formado, teve que trabalhar, não havia mais jeito. E, por coincidência, naquele ano foram abertas as inscrições para o concurso público de sua cidade. Orientado pelos pais, fez sua inscrição, para que se tornasse um servidor público, para que tivesse estabilidade no emprego...
A prova foi num domingo, e Léo havia saído no sábado com seus amigos. Balada. Chegou ao local da prova de óculos escuros. Marcou o que enxergou. E uma hora depois saiu. Foi dormir, estava exausto.
Léo foi aprovado no concurso: 74º lugar. “Melhor que não passar”, disseram-lhe os pais.
Desempregado durante todo este tempo, dois anos depois Léo recebeu a informação, via facebook, de que estava sendo chamado para apresentar-se na Prefeitura Municipal: chegara sua vez de assumir a matrícula de Professor de Geografia, devido a muitas desistências...
Com a roupa um pouco mais ajeitada e documentos nas mãos, Léo tomou posse do cargo, escolheu a escola de lotação, e iniciou sua vida profissional.
No primeiro dia de aula percebeu que aquilo ali não tinha absolutamente nada a ver com ele: um bocado de garotos e garotas enjoados (eram turmas de 6º ano de escolaridade), insuportáveis, chamando ele de “tio” toda hora, pegajosos... Outra parte rebelde, debochada, delinquente... Léo não teve dúvida: pôs uns seis alunos para fora de sala (lembrou de sua época de escola), tirou pontos de mais uns quatro e começou a “dar aulas” de Geografia, depois que garantiu o silêncio absoluto.
Todas as vezes – as muitas! – em que Léo pensava em largar a profissão lembrava-se do seu salário. E desistia, depois de concluir que seria impossível ganhar R$ 1.300,00 tentando outro emprego. Onde? Fazendo o quê? Então, resolveu contar as semanas para o dia do pagamento. Aturou os alunos, fez o básico do que podia e, de quatro em quatro aulas viu a semana passar e, de quatro em quatro semanas o dinheiro entrar na conta do banco. Simples assim!
Dois meses depois de ter começado a trabalhar na escola um colega foi chamado num concurso de outra cidade e precisou exonerar-se. Surgiu, então, a possibilidade de Léo “dobrar”. Ele não titubeou, e passou a ter um salário mais confortável. Agora era só contar de oito em oito, ao invés de quatro.
Um ano antes de terminar seu estágio probatório Léo cursou Pós-Graduação em Gestão Escolar. Garantido o enquadramento (o estágio foi avaliado pela diretora, que então era sua namorada), comprou seu primeiro carro zero. O aumento no piso salarial pagava as prestações. Léo nunca mais deixou de dobrar como professor. E, fazendo amigos na sala dos professores, conseguiu também um contrato na cidade vizinha. Começou a trabalhar à noite. Coisa mais fácil: Léo assinava uma frequência de 18h às 22h, mas nunca deixou a escola depois das 20h.
Ele agora tem carro zero, uma poupança legal e, com o terceiro vínculo começava a avistar a possibilidade de tentar um empréstimo na Caixa Econômica para comprar um apê...
Daqui a alguns anos Léo terá mais de quarenta anos e estará esperando a aposentadoria chegar. Até lá, pensa até na possibilidade de ser Diretor, já que sua Pós lhe permite: uma gratificaçãozinha qualquer, além do “presente” de sair de sala de aula...
Eu conheço muitos Léos. E eles me dão vergonha... Seguem na linha contrária a dos meus pensamentos de educadora. Fazem o que não gostam. E abusam da paciência dos seus alunos, que são os que mais sofrem com a decisão errada que eles tomaram há alguns anos atrás.
Mas para onde iriam esses tantos Léos, se tivessem a coragem, a honradez de deixar o ofício de professor? Onde trabalhariam para receber mais de três mil reais por mês, com direito a fins de semana na praia, feriados, recessos, pausas no mês de julho, festas de fim de ano e um janeiro inteirinho para descansarem? Onde trabalhariam mal sem serem punidos? Onde poderiam ser péssimos ao realizarem suas funções, sem perderem a estabilidade profissional?
Não há lugar para Léos e afins no mercado de trabalho privado. O único lugar que acolhe este tipo de gente é o serviço público. E pessoas deste calibre me causam nojo, porque imprimem suas marcas desmerecendo o pobre coitado do educador que hoje ainda quer trabalhar, fazer o seu melhor.
Somos ainda maioria, eu creio. Apesar dos Léos da vida. Difícil é sair da sombra onde eles teimam em nos esconder com suas atitudes anti-cidadãs. Que Deus nos envie luz, para possamos ser notados. Que os valores que defendemos não sejam subestimados diante dos valores que os Léos da vida e seus BBB’s pregam. Que sejamos lembrados como bons professores que fomos, pelo respeito ao dinheiro público e por fazermos o certo. E que quando chegar a hora de nos recolhermos para dar a vez à juventude que nos substitui, haja um povo novo – inteligente e competente! – esperando ser chamado na lista dos aprovados nos concursos públicos.

quinta-feira, 24 de maio de 2012

A gente se vê!

(Já não sei como explicar essa alegria de ver meu filho crescer... Que sentimento é este, esta alegria que dói? Estou cedendo espaço para a vida, que agora é dele... Antônio dia desses disse-me uma frase. Escrevi sobre o que senti ao ouvi-la.)



Antes eu o passava para o colo da “tia”. E era assim que nos despedíamos: um sorriso banguela, depois um chorinho – meu e dele – e o portão da escola se fechava, quase no meu nariz avermelhado...
Ontem, na escola, eu e Antônio estávamos esperando o sinal tocar para a entrada dos alunos. Sentados lado a lado, conversávamos sobre o que lhe esperava e eu tecia minhas recomendações: obediência à Professora, rapidez e capricho (como se as duas coisas fossem possíveis no 1º ano de escolaridade) na cópia do dever do quadro, diversão na hora do recreio (sem abusos!), etc., etc., etc.
Quando ouvimos o sinal tocar, um menino – um rapazinho! – levantou-se e despediu-se de mim. Evitou que eu adentrasse o espaço da escola. Antônio deu-me um beijo estalado no rosto, fez um “papo firme” com as mãos e falou: “A gente se vê!”.
Como assim, a gente se vê???
Onde está aquele bebê banguela que demorava a soltar-se do meu pescoço até passar para o colo da tia?
Antônio me deu vários “tchaus”, enquanto eu o seguia pateticamente, desprezando seu olhar pedindo “fique aí”. Até que percebi minha idiotice e travei, numa das calçadas do pátio da escola e deixei-o ir, viver sua própria vida.
Ah, meu Deus, será mesmo que meu menino de seis anos está a caminho dos sete? Aquele ensaio de janelinha (o dente ainda não caiu) já significa que preciso me afastar uns metros? Que será de mim?
Quando fiquei sozinha com Antônio aos três dias de nascido (pra quem não leu tem texto por aqui falando desta experiência) olhei pra ele e pensei: “que será de mim?”... Agora venho percebendo que esta é uma frase comum das mães, em suas eternas etapas... Que será de mim, agora?
Meu Deus, obrigada por este presente que se chama Antônio! Jamais me cansarei de agradecer! Obrigada por permitir-me viver estas experiências! O menino que me enxotava no portão da escola hoje o fazia com um olhar cheio de afeto e saudade. Era a sua necessidade de viver que me pedia pra sair de cena. Ali o espaço é dele, tudo é novidade, ele ainda o está reconhecendo, demarcando. E isto era algo que ele precisava conquistar sozinho. É a inteligência da criança, inteligência natural, inexplicável dom de Deus!
Eu estudei tanto, para aprender hoje com ele. É quem tudo me ensina. Quando lhe peço - quase obrigo! – que seja rápido com as coisas, ele me pergunta: “Como é que você quer que eu faça rápido, se eu só sei fazer devagar?” Quando lhe digo que não quero que desenhe enquanto almoça ele me diz: “Eu não estou desenhando enquanto almoço, estou almoçando enquanto desenho”... E entre uma tirada e outra (coisas que na minha época se chamava de respostas malcriadas) me revela uma inteligência, uma perspicácia, uma astúcia que inflam meu ego enquanto agradeço: Obrigada, Senhor, obrigada, Senhor!
São só seis anos. E nem sei o que me espera pela frente. Mas vejo com orgulho e um amor infinito que a vida está só começando. E sou feliz, porque se há tanta vida esperando por Antônio ganho, meio que por tabela, uns anos de vida de presente, também. Quero viver imensamente, porque quero fazer de tudo para que Antônio seja feliz. Esperto como é, curtirá a vida com sabedoria, aproveitando as coisas boas, reconhecendo e negando as más, crescendo e tornando-se um homem de verdade, íntegro, justo, companheiro, fiel, amigo, solidário. Isto é quase uma oração, ouve aí, Senhor!
A gente se vê, meu filho querido. Ele quis me dizer que a gente se veria na hora da saída. Eu, porém, um pouco mais vivida que ele, recebo a frase como um dever a cumprir. A gente se vê pela vida... Eu, sempre ao seu lado, mesmo que a metros – cada vez mais largos – de distância. Vejo você nas formaturas que se seguirão, no passar dos anos, no cair dos demais dentinhos, nos pelos crescendo, no choro pelo primeiro amor. Quero estar aqui, em todos esses momentos, Antônio. A gente se vê!

domingo, 20 de maio de 2012

Saudade

(Este texto fiz sob encomenda. Uma amiga muito querida, Assiany, pediu-me que escrevesse sobre a saudade que sente de sua avó. Eu, como não vivi tão intensamente um amor como este, acabei me sentindo neta, também.)

Minha avó optou por ser minha mãe quando eu nasci. Dizem que ser avó é ser mãe duas vezes. Eu queria ter sido filha dela duas vezes, mas o tempo não deixou.
Todas as lembranças que carrego comigo de minha infância têm a ver com minha avó. Principalmente, as melhores: assistir à TV deitada no sofá, brincar à vontade e ser muito, muito bem cuidada...
Os obstáculos que minha mãe encontrou para tocar a sua vida após meu nascimento foram obras de Deus. Sem tempo para trabalhar e cuidar de mim restou-lhe, por felicidade – dela e minha, principalmente – entregar-me a vovó. Senhor, obrigada!
Que tempo maravilhoso! Que saudade!
Até então, eu não sabia que avós morriam. Caramba, ninguém havia me dito isto! E quando dei por mim, estava a despedir-me – tão rapidamente! – daquela que fora um dia tudo na minha vida. Vovó foi indo embora, levemente, sem me avisar. Eu, já adulta, porém eternamente neta, não quis ver, não quis perceber, e continuava a sugar-lhe as energias nos agora poucos instantes que restavam para nossa convivência.
Eu cresci entre os dias em que ela me levava para a escola e ia me buscar. Deixei suas mãos quando comecei a fazer sozinha o caminho da escola de ônibus, depois no meu próprio carro. Foi assim que cresci, com o tempo passando, sem dar-me conta. Ela também não atentou para o fato de eu ter – neste “curto” espaço de tempo – me tornado uma mulher. Sempre teimou em me chamar pelo apelido de criança. E esta era a parte que eu mais gostava!
Mas quando Deus nos empresta alguém, é por tempo determinado, Ele vem buscar depois. E foi assim que aconteceu: chegou a hora de vovó voltar para o céu, de onde veio emprestada por Deus, que já previra que um dia minha mãe precisaria ter um anjo ao lado quando sua filha nascesse.
Obrigada, meu Deus, pela vida da minha avó! E mais ainda, porque o Senhor a destinou para mim!
Nosso tempo de infância passa rápido. Não é suficiente para entendermos os sentimentos. A gente não percebe quando ama alguém de verdade, tampouco a intensidade desse amor. Só sente que ama. Mas acredita que as pessoas são eternas, ninguém explica muito bem essas coisas de morte para as crianças, e não sei se as crianças entendem bem o que acontece.
Sei que minha infância passou num lampejo e todos os dias sinto saudades do meu tempo de criança, porque sinto saudades da minha avó.
Antes de ela ir embora passeamos de carro algumas vezes. Eu dirigindo, ela ao meu lado, assustada, temerosa como se desse o volante àquela pequenininha que ajudou a crescer. Vovó não me viu adulta. Enxergou-me sempre como criança, como que tivesse congelado a figura que dela se despediu quando deixou sua casa para morar em outra cidade. Eu, mulher feita, aos olhos azuis dela, uma menina. Sempre me viu com os olhos do coração. Que neto cresce?
Durante os passeios, pouco reconhecia seu bairro. Às vezes era necessário que eu lhe dissesse onde estávamos, embora bem próximos de sua casa. Às vezes, quando conversava, eu lhe completava as frases que ficavam perdidas em seus pensamentos. Às vezes eu lhe ajudava a reconhecer pessoas, ainda que fossem parentes bem próximos. E nada, nenhum desses sinais, preparou-me para ver vovó partir.
Hoje eu vivo a vida, porque ela não para pra eu chorar minha saudade. Nunca mais fui à casa onde passei meus melhores anos. Não penso na dor. Tento imaginar que estou distante somente por questões geográficas, que ela ainda mora no mesmo local. Depois “cai a ficha” e fico inventando pretextos para me convencer de que as coisas são assim, mesmo.
Sinto muita saudade! E temo não ter podido ser filha duas vezes pra ela. Fecho os olhos, me recordo dos nossos dias, pedindo perdão a Deus se a magoei algum dia ou por algum motivo. Mas, pelo que lembro de nossa convivência, Deus me diz que não. Porque só lembro de seu sorriso amarelado, seus olhinhos azuis, simpáticos, me permitindo viver.
Avós permitem que netos vivam. Eis o seu segredo! E hoje eu vivo, graças a minha avó!

sexta-feira, 18 de maio de 2012

Socorro! Estou saudável!

(Há uns dias uma poluição visual tomou-me os olhos: um amontoado de atestados médicos!!! Preciso desabafar, para não adoecer!)


Esta semana uma tristeza, melhor dizendo, uma perplexidade tomou conta dos meus pensamentos durante o dia e por alguns instantes da madrugada também: tenho visto pessoas adoecerem...
Minha tristeza não advém da doença que assalta meus amigos profissionais da educação. Ela rasga meu peito porque alguns dos meus amigos resolveram adoecer. Optaram por adoecer. Descobriram que adoecendo resolvem uma grande parte de seus problemas: podem fugir deles.
Eu fiquei triste demais esta semana.
Já não encontro mais as mesmas pessoas nos reencontros de amigos que há muito não via. Vejo rostos tristes, enrugados, rígidos. Olhares perdidos, embaçados, entregues ao nada. Corpos engordados ou emagrecidos por uma emoção descontrolada. Ossos sem movimento, articulações doloridas, músculos retesados. Vozes roucas, trêmulas, diminuídas. Calos, muitos calos nas gargantas. Corações palpitantes, acelerados, elevando pressões. Ou calmos demais, baixando-as. Cérebros insuficientes, promovendo lacunas no fazer, no pensar, no agir de cada um. As pessoas que outrora testemunhei vivas estão mortas, diante de mim, elencando seus atestados médicos. E o que quase me leva ao desespero é que elas o fazem com um sentimento que – atônita – eu ouso definir orgulho.
É isto mesmo. Todos apresentam orgulhosos os seus laudos, como se fossem prêmios. Cada papel assinado por um médico perito assegura a ausência temporária ou definitiva do espaço da escola. Vitória!
Aí eu comecei a pensar em tudo isto e quando dei por mim estava triste. E me vieram algumas dúvidas, que resolvi compartilhar.
Já não sei em que ordem as coisas acontecem: não sei se profissionais da educação adoecem porque trabalham, porque não sei se chegam a trabalhar a ponto de adoecerem. Basta que “esquentem” a cadeira e logo são apresentados os primeiros atestados. São, primeiramente, comprovantes de comparecimento ao consultório de um determinado especialista. Depois, atestados de dois, três ou quinze dias (esta quantidade sempre cresce, nunca diminui) para afastamento das atividades. Até que a coisa evolui para o afastamento definitivo. Professores que não podem estar na presença de crianças, serventes que não podem inalar fortes odores ou carregar determinado tipo de peso...
Estou saudável, e ando preocupada. Porque tenho sido uma estatística cada vez menor no meio onde trabalho. Que será que há comigo?
Dia desses vi uma professora que me apresentou licença médica de quinze dias trabalhando numa escola em outro município. Outra, que entregou na secretaria da escola um atestado comprovando pneumonia, de mochilas nas costas, na rodoviária, com fones nos ouvidos, óculos escuros e um ar alegre de quem sai de férias para descansar. E um professor que foi sorteado num desses prêmios de operadoras de cartões de crédito com uma viagem à Bahia providenciar, quase imediatamente, um atestado médico para os dias em que iria precisar se ausentar para usufruir da sorte.
Em meio aos enganos – profissionais da educação e médicos peritos que enganam – sofro com a ausência de respostas as minhas incansáveis perguntas. Alguém sabe o que acontece com quem mente? Venho tentando ensinar a Antônio a não mentir, a sustentar a verdade, será que caminho na direção inversa?
Todo mundo que inventa um estado de saúde deplorável para favorecer-se com ele faz algo muito grave, imagino.
E, vendo tanta gente ao meu redor deixar de ser quem era, ando confusa com as verdades... As fisionomias que chegam quase a revelar certo prazer de se estar doente causam-me pavor. Não quero ser assim, não quero ficar assim. E peço a Deus que me livre do infortúnio de adoecer, mas, sobretudo, de querer adoecer para levar alguma vantagem com isto.
Pobres dos médicos que se prestam a atestar inverdades. Pobres dos profissionais da educação que vão em busca disto. Pobres daqueles que brincam com o dom maior que Deus concedeu aos homens, o de ter saúde.
Nesta busca aflita, apressada e incessante por colecionar visitas a consultórios e montar seus portfólios médicos, meus amigos estão se esquecendo de olhar pro espelho. E bastaria que dedicassem a ele, ao espelho, alguns minutos preciosos, e veriam a autodestruição provocada. Tudo o que há de velho, tosco, rígido na imagem refletida mostra o que cada um fez consigo cada vez que pôs nas mãos um atestado comprovando algo que não tinha.
Hoje alguns dos meus amigos estão doentes e loucos. Ou a caminho disto. Acreditam veementemente na doença que têm. Sabem de cor quanto está a pressão, a glicose, o ácido úrico, as taxas, taxas e taxas. Sabem nomes e telefones e endereços de todos os médicos em cada uma de suas especialidades. E são felizes por isto. Porque de tudo o que sabem, lhes importa que saibam que não podem estar na escola. Não hoje, não amanhã, nem depois de amanhã.
Socorro!  Isto sim é um caso grave: o descaso com que se lida com a saúde. E nossos meninos estão lá nas salas de aula, esperando encontrar gente sadia no tablado para a aula começar. Estão lá, os nossos meninos, estes sim, cheios de saúde, uma saúde que os faz correr pelo pátio da escola, brincar durante a aula e ficar de castigo por isto.
Estão saudáveis porque são jovens ainda. Porque suas vidas estão começando agora. Porque nem refletem profundamente sobre o tipo de ensino que recebem, porque nem sabem que o professor que está no tablado hoje já tem consulta marcada para amanhã.
Fico por aqui, dando graças a Deus por estar viva, por descobrir-me envelhecendo e surpreendendo-me com a honra que é envelhecer. Por ter saúde, por trabalhar todos os dias, por ser fiel ao meu compromisso de educar. Pedindo a Ele que abençoe os que enveredaram pelo caminho dos laudos e atestados sem saber a gravidade de suas ações. E, verdadeiramente, rogando por dias melhores a quem já não tem mais o que prever sentir na vida. Amém!

quinta-feira, 10 de maio de 2012

Janela aberta: eis a vida!

(Este texto escrevi em homenagem a Antônio: uma janelinha anda se abrindo em sua boca, convidando-o a viver. Finalmente, o primeiro dentinho mole!!!)

Para mim, foi ontem. Eu olhava diariamente as gengivas rosadas de Antônio, então com sete meses, procurando por algum sinal esbranquiçado que me anunciasse a chegada dos seus dentinhos...
Há dois dias, no entanto, Antônio, agora com seis anos, presenteou-me com uma novidade: o primeiro dentinho mole.
São as mesmas gengivas, rosadinhas, lindas, vigiadas diariamente por uma mãe ansiosa... Desta vez a espera era pela queda, não pelo surgimento dos dentinhos. Então, para Antônio, foi igualmente emocionante viver a experiência. Quando veio até a cozinha revelar-me o descoberto – um dentinho que se movia pra lá e pra cá – recebeu de minha parte um abraço apertado. Ali eu me despedia do meu bebê. Eu comuniquei a ele que agora começaria uma nova etapa em sua vida. Antônio chorou, comovido com meu discurso de mãe-quase-idiota. Ficamos assim, os dois, por alguns segundos abraçados (quem se lembra do “para sempre”?), sem dizer mais nada, como que sofrendo uma alegria. Sofrer uma alegria... é possível, hoje sei.
É sofrida essa alegria de ver o filho crescer. Agora que a janelinha se abre no sorriso de Antônio vejo a vida se lhe apresentando, convidando-o para explorá-la. E sinto meu corpo tomado por uma emoção indescritível: não sei se lhe digo para ir, ou se lhe imploro para ficar.
Coincidentemente (se é que isto é uma palavra que pode ser usada por alguém que crê em Deus), no mesmo dia em que soube do movimento do dentinho – ousado, querendo brincar – havia levado Antônio para uma nova escola (É, eu não resisti à Fifi...). Deixei meu filho no portão às treze horas, solicitei uniformes para ele, e saí. Quando voltei para buscá-lo, às dezessete horas, encontrei a minha espera um menino uniformizado, lindo, enorme, com as etiquetas da camiseta para fora quase como que esfregando em meus olhos um crescimento que eu teimava em não ver: Antônio, dentro de um uniforme tamanho 10, vestido como os outros, mochila nas costas, vivendo...
Eu não sei bem onde foi parar aquele bebezinho que eu punha sentado no sofá e abria a boca para tentar enxergar algum dentinho... Não sei se está tão longe, pois quando olho seu sono durante a noite, vejo aquela mesma cabecinha redondinha coberta por cabelos pretos que eu via ao retirá-lo do berço para amamentá-lo. E nessa mistura de passado – tão recente! – presente e o futuro que às vezes insisto em arriscar prever, segue Antônio, descobrindo a vida que lhe é própria, desprendendo-se de mim, desenhando os primeiros capítulos de sua história...
Janela aberta: eis a vida, meu menino! Vá gozá-la, porque é algo maravilhoso viver! Queira Deus que eu consiga entusiasmar Antônio com essa sensação que tenho de que Deus nos abençoa cada dia que nos permite abrir os olhos pela manhã e oferece um Sol lá fora... O dia, a oportunidade de fazer o bem, de ser e fazer alguém mais feliz.
O dentinho, primeiro de outros tantos que virão, será colocado sob o travesseiro, assim que deixar a boca de Antônio. E eu o porei lá orando, agradecendo a Deus pela vida do meu filho, por merecê-lo, por ter sido escolhida por Ele para apresentar Antônio à luz.
Hoje foi esta a emoção. Uma janelinha abrirá novos horizontes para Antônio, e eu preciso urgentemente me preparar para o que vem depois, embora eu quase possa jurar que, por mais que uma mãe se prepare, tudo é imaturamente emocionante numa hora dessas. Amanhã os dentes permanentes tomarão posse de seus lugares e receberão, um pouco mais a frente, os inevitáveis aparelhos ortodônticos e “Cia”. E serei mãe de um pré-adolescente, de um rapaz, de um homem, ainda que veja um bebê com os olhos do coração.
Isto é viver. Simples, quando tanta gente insiste em complicar. Faltou luz enquanto eu escrevia este texto, e Antônio já brincou arriscando todas as possibilidades de se divertir numa casa escura. Acho que eu, na idade dele, estaria chorando numa situação dessas... Mas meu herói é destemido, é cheio de VIDA. Mostra para todo mundo o dentinho que está prestes a cair. É criança. Sonha. Espera pela fada do dente. Dia desses me contou que deseja que a fada ponha mil reais no travesseiro. Riu. Estava fazendo piada comigo. E eu, velha boba, aos quarenta e três anos, posso dizer a quem quiser ouvir que meu melhor amigo é o meu filho, um futuro banguela, de seis anos de idade.

terça-feira, 1 de maio de 2012

Para voltar do feriadão

(Passei meus dias de feriadão pensando sobre a Escola. Em particular, sobre a Educação de Jovens e Adultos... E escrevi sobre uma triste conclusão a que cheguei: o ensino regular diurno fabrica a clientela da noite. Que tal refletirem sobre isto, junto comigo, antes que o feriadão acabe?)


Andei pensando em muitas coisas neste feriadão... E ainda não consegui decifrar o enigma do “público, sim, desde que me convenha...” Mas cheguei à conclusão de que não seriam quatro dias em casa que me fariam desvendar este segredo e, aí, desisti de fazê-lo, já que escrever sobre o assunto aliviou-me um pouco o coração.
Então vim aqui para escrever sobre a Educação de Jovens e Adultos.
Eu fiz as contas: estou em Iguaba Grande há doze anos. O Ensino Fundamental tem a duração de nove. E diante de uma demanda de tantos alunos – que observando as pastas dos arquivos escolares chego a pensar que são os mesmos – me pergunto se não estou enganada quando penso que já deveria ter havido uma considerável redução na procura por matrículas para esta modalidade...
Quando cheguei a Iguaba e comecei a trabalhar, a rede pública oferecia o ensino noturno em quase todas as suas escolas. Turmas cheias, muita movimentação, reuniões com os professores pela manhã, planejamento, capacitação, etc. De lá pra cá, infelizmente, os objetivos foram mudando e chegamos ao ano de 2009 com uma única escola a oferecer a oportunidade para todos os cidadãos da cidade. Isto significou – eu nem precisei ficar aqui para constatar – um esvaziamento de alunos ao longo do tempo. Passados doze anos, ainda falta muita gente dar conta de um Ensino Fundamental que duraria nove e, em caso de semestralidade, apenas quatro.
O que houve? O que está havendo com nossos jovens e adultos que optam por ficarem sem o diploma a terem que frequentar as salas de aula? O que está havendo com nossa escola, a escola tão venerada por nossos pais?
Alguma coisa destoa quando vivemos num mundo onde só tem valor quem estuda e tantos dos nossos meninos chegam à juventude sem seu histórico escolar concluído. Aí, fui parar pra pensar nisto nestes quatro dias de descanso. Fui olhar pra trás, voltar ao tempo, pensar no que vi, no que vivi. E não gostei do resultado da minha pesquisa pessoal.
Eu vi que a escola anda por aí reprovando em massa os meninos (e agora as meninas, também) “dispersos”, “insuportáveis”, “desatentos”, “debochados” etc., sem saber muito bem se eles sabem ou não a matéria lecionada. Porque professores os retiram de sala no primeiro movimento “suspeito”, para que o resto dos quarenta e cinco minutos de aula siga bem, sem surpresas.
Eu vi a escola, inclusive, dando presença nos diários de classe para os alunos postos para fora de sala. Registrada a presença, podem sair, os alunos, à vontade. Há até quem os convide antes do “bom dia”. Então, garantida a frequência no final do ano letivo, não há reprovação por faltas: os alunos perdem o ano por terem muitas características, mas não por infrequência ou por desconhecerem o que tinham que ter aprendido.
Eu vi a escola duvidando do resultado de alunos ao final do bimestre: diante de resultados de cor azul – para surpresa dos professores! – as afirmações, como juras de pé junto, de que “colaram, só pode ser!!!”... Eu vi uns professores surpresos com a média “azul” de seus próprios alunos: numa viagem de ônibus para a escola num dia de conselho de classe final, a professora virou-se para a outra e disse, espantada: “Sabe quem passou? Juan! Olha, eu podia jurar que ele iria repetir o ano. Mas fiz as contas mais de mil vezes e ele conseguiu ficar com 5,0 na média!
Juan livrou-se, por pouco, de ser um candidato a aluno da EJA. É o que a escola regular faz, todos os dias, com suas aulas chatas, descompromissadas e descontextualizadas: convida – quase como coação – os alunos a reagirem com seus corpos falantes e, a partir daí, expulsa-os, reprova-os, fadando cada um deles a retornar alguns anos depois, procurando por vaga à noite.
E não é o que fazem? Diante de uma sociedade que lhes impõe a obrigação de ter em mãos um papel legitimando uma escolarização, retornam muitas vezes à mesma escola de onde foram expulsos (leia-se excluídos, desprezados, expostos, minimizados...) para retomar os estudos de onde pararam algum tempo atrás. Eles retornam confusos, donos de uma estranheza, porque o tempo passou e seus amigos, aqueles que souberam driblar as façanhas da escola, estão fora dela já, cuidando de suas vidas e lembrando-se – e utilizando-se! – de muito pouco do que aprenderam lá dentro. Aí, aquela “peste” de menino volta homem feito esperando que não ele, mas que sua escola seja outra.
Nossa escola é exatamente a mesma, de dia e à noite. Eu não vou procurar porque não quero encontrar, mas grita em mim a dúvida de que não haja uma Fifi (a foca de Fábio) no caderno de um aluno do 1º ano de escolaridade, tenha ele seis ou sessenta anos. Não vou procurar Fifi, porque palhaços eu já vi aos montes, em folhas mimeografadas por professores que lecionavam nos dois turnos e aproveitavam a “matriz” para o noturno, também. Alguém aí já passou por isto?
Então, o homem feito renova sua matrícula (responsável que já é por si mesmo) na secretaria da escola, onde encontra – sempre! – uma ex-professora, agora readaptada, que o reconhece e conta para todo mundo, inclusive pra ele, todas as coisas que lembra tê-lo visto fazendo. Pronto! Ali está “a peste” de volta. Ao percorrer o caminho até chegar à sala de aula observa o prédio, nada diferente. Com um olhar minucioso quase vê seu nome cravado na madeira da carteira onde se senta. Que coincidência! Seu corpo falara durante a aula de Ciências há tanto tempo atrás, em que a professora ensinou que o cérebro era o maior osso do corpo humano. A aula maçante levou seu corpo a fazer melhor, com sua gilete: cravar o nome na carteira. A professora não viu, porque dormiu depois que exigiu que os alunos fizessem um silêncio impossível de se fazer quando se tem quatorze anos de idade.
O homem disse “boa noite” e procurou um lugar distante para se sentar. A aula seguiu como se nada tivesse acontecido. Ninguém lhe perguntou o nome, nada foi questionado sobre sua chegada, nada. Do professor da hora, um único aviso: “Aqui é lugar para estudar, não é lugar para bagunça. Se não estão a fim de aprender, podem sair, vocês são adultos, são responsáveis. Aqui não tem mais criancinha, não.
Este homem não fica por muito tempo nessa escola. Como seu professor também não ficou. Apenas está presente, fisicamente, por conta de garantir seu salário ao final do mês. Mas já não está mais lá, se é que algum dia esteve. E lutar por uma educação de jovens e adultos, e atrever-se em pensar em qualidade de ensino, requer a retirada urgente desse tipo de gente que insiste em preencher no espaço reservado à profissão em formulários a palavra PROFESSOR sem sequer ter noção do que é ser um. É por isto que anos passam e a EJA não resolve o problema do analfabetismo, da desescolarização dos jovens, da distorção idade/série. Não resolverá nunca. Porque se fabrica pela manhã a clientela da noite, e cada vez mais. Porque a doença chamada desistência que acometeu alguns professores vitimou em larga escala toda a comunidade escolar, inclusive diretores. E ninguém quer abrir os olhos para isto.
Hoje os jovens optam por viverem fora da escola porque são aceitos nos grupos onde ninguém precisa dela. E infelizmente, isto é fato.
E infelizmente, também, quem “ganha” esta briga é o professor. Há doze anos atrás entrava numa sala para dar aulas para uma turma de quarenta alunos. Hoje, há vinte lá. E expulsando durante o dia os alunos que não resistem às suas aulas patéticas, garante o ganha-pão do semestre que vem: alunos para a EJA. E segue trabalhando assim, a despeito das vidas que sacrifica enquanto insiste no paradoxo de dizer-se professor.
Eis minha proposta de reflexão, nesta volta de feriado prolongado. Escrevo como que pedindo perdão a Deus se por um dia fui um tipo de professor deste, o que é possível. Humano é atender aos apelos do cansaço, e tropeçar, algumas vezes. Mas fazer a vida do outro ser tropeço e queda constante é pecado. É sério. E havemos que pensar nisto. Sempre. Enquanto vivermos. Enquanto dissermos que somos professores.