sábado, 28 de abril de 2012

Ou bem é público, ou bem particular

(Para que chamarmos "público", se cada um quer o seu "particular"? Ando tendo dúvidas a respeito de como fazer omeletes sem quebrar ovos. Escrevi sobre esta difícil receita...)


Tenho virado as chaves da porta da sala onde trabalho muito preocupada, quando finda o dia. Uma sensação que experimentei durante os dezesseis anos em que tranquei a sala de aula no fim do turno: sempre deixei o trabalho pensando que poderia ter feito mais, e melhor...
Uma vez disse isto num desses encontros de Professores (não lembro se foi num Conselho de Classe) e uma amiga interpelou-me bravamente dizendo que com ela acontecia justamente o contrário: sempre que terminava seu dia letivo ficava feliz por ter feito um bom trabalho.
Minha amiga não havia entendido absolutamente nada do que eu tentara dizer, e ela foi só a primeira da série de pessoas que dia após dia percebo já não entendem absolutamente nada do que digo, do que defendo. Preciso de um laudo psicológico que me convença de que não estou ficando louca...
Hoje começa um “feriadão” que me trará noites de insônia, bem sei. A passada já preconizou isto. Tudo por causa da porta fechada no final do expediente.
Em 1993 ingressei para o serviço público. Ingresso tardio, mas opcional. Comecei, então, a experimentar a interpretação das pessoas acerca do que é ser servidor público. Eu vinha, graças a Deus, de uma lida de dez anos na rede particular de ensino, onde aprendi a respeitar o diretor da escola, chegar na hora para o trabalho, cumprir minhas obrigações de planejar aulas, preencher diários de classe, corrigir cadernos e provas, não faltar, prestar satisfações quando cometia algum deslize, e dar boas aulas, independentemente do público que me esperava sentado nos bancos da escola. Era isto, ou o desemprego.
Mas desde que conheci o serviço público comecei a perceber que ali não funcionava assim. E havia um discurso podre que soava nos pátios na hora do recreio – ou dentro da sala dos professores – de que “éramos efetivos”. Todos os dias, na rede municipal e, depois, na estadual, eu fui observando com muito sofrimento, o desrespeito dos meus colegas com o diretor da escola, o desleixo no planejamento e aplicação das atividades escolares e a falta de comprometimento com seus alunos. Não se prestava satisfação a ninguém quando se faltava ou atrasava, e bastava que se percebesse um aluno fora do “padrão A de comportamento”, para ouvir a célebre frase: “Ou ele, ou eu”.
Olhando para trás, agradeço a Deus por tudo o que vivi. Pela experiência na escola particular até conhecer a pública. E pela experiência na pública até chegar aqui. Estar na Inspeção Escolar construída dessas práticas fez com que eu realizasse um trabalho diferente e, principalmente, intencionalmente pedagógico, para além de burocrático.
Hoje do lugar onde estou vejo a lagoa de Iguaba, linda, linda, a despeito de tudo o que dizem sobre ela. Vejo um céu azul e o Sol, e é o que me alimenta. Já declarei meu amor pelo Sol noutro texto, não serei repetitiva. Mas para olhar a lagoa e meditar, precisaria estar de costas para a educação da minha cidade, porque teria que virar a minha cadeira, deixar de ouvir as pessoas, quiçá trancar a porta e não fazer mais nada. Então, dou aquela olhadinha assim que chego à sala, faço minhas orações, peço a Deus as forças que me forem necessárias para viver o dia, e O vejo me abençoando, quando passa um barquinho lá no fundo da lagoa com um pescador solitário ou quando observo uma garça alçando voo, resistente ao vento, em busca do que o pescador trará.
Venho sendo convidada para a batalha por defender um serviço público que se quer particular em alguns muitos casos... Batalha diária, aparentemente invencível. Hoje ando preocupada com a visão, pior, com a conclusão a que as pessoas vêm chegando de que o que é público pode ser particular, dependendo do caso de cada um.
Todos querem solução. Mas só alguns aceitam fazer sua parte. Como se quisessem provar uma deliciosa omelete, mas não houvesse quem oferecesse os ovos.
E, tendo visto os sonhos que eu tinha quando prestei concurso para professora da rede pública despencarem à medida que eu ia tomando pé do que acontecia verdadeiramente lá dentro, há algumas semanas venho tentando convencer-me de que não é isto – aquilo tudo! – o que estou vivendo agora.
Ou bem a coisa é pública, ou bem é particular. Se só concordo com mudanças quando nada “respinga” para o meu lado, não sei olhar para o que é público. Não há particularidades no público. Não há o meu. Só há o nosso.
Eu desisti de ser professora da rede pública de ensino quando me envergonhei de dizer que o era. E retornei ao trabalho nas escolas particulares. Porque nasci pra ser subordinada, talvez. Nasci pra respeitar o que é do outro, nasci pra respeitar o meu aluno na forma como ele entrou em minha sala de aula. Nasci para cumprir as obrigações do regimento. Nasci para trabalhar honestamente em troca do meu salário. Nasci para trabalhar em troca do meu salário.
Desde que sou Inspetor Escolar da rede pública orgulho-me do que faço. E envelhecer – esta dádiva de Deus! – fez-me sentir ainda mais vontade de trabalhar quando encontro gente pequena querendo ser o público só para satisfazer o seu particular. Deus é tão bom pra mim que não me anima a desistir desta vez.
Quanto tempo vai durar, eu não sei. Vai durar o tempo que Deus quiser. Mas se eu conseguir fazer com que algumas pessoas – nas quais ponho toda a minha fé – percebam que vaidades pessoais não levam ninguém a lugar nenhum quando tudo o que se quer é fazer o bem para TODOS, terá valido a pena.
Hoje ainda me olho no espelho sem ter vergonha da imagem que vejo refletida. E fico feliz por trancar a porta resoluta. Luto pelo justo, não pelo que me satisfaz. Pelo que venha a ser bom pra todo mundo, não só pra mim. E luto com minhas próprias armas, não preciso de escudos, nem de subterfúgios. Enquanto for assim, ficarei onde estou. Enquanto Deus quiser. Hoje o meu particular é ser público, ser fiel aos meus propósitos, ser leal. Porque na hora em que dizer que estou nesta função causar-me vergonha, nada me impedirá de voltar a ser a profissional que sou: exercerei o ofício de Inspetor Escolar com o mesmo orgulho de sempre, graças a Deus!

domingo, 22 de abril de 2012

22 de abril

(Em 22 de abril comemoramos o Descobrimento do Brasil. Tudo isto porque Ivo viu a uva e Fifi é a foca de Fábio. Loucura minha? Infelizmente, creio que não.)


Na minha concepção, o Brasil existe desde que Deus criou o mundo. Sei lá, mas eu acho que quando o mundo foi criado, água e terra foram definidos. Nos continentes, as demarcações. E numa delas, o que Deus esperava que fosse o Brasil.
Povoada a Terra – pela forma como Bering ou Niède Guidon defenderam – aos índios coube ocupar a parte mais bonita: e eles vieram e multiplicaram-se, inspirados pela sedução de nossa natureza inigualável! Inteligentes, não precisaram saber que “Ivo viu a uva”, tampouco que “Fifi é a foca de Fábio” para inventar sabores, temperos, iguarias e deliciarem-se com elas. Provaram bichos, plantas, minerais. Sábios índios!
Viveram o paraíso que Deus oferecera a Adão e Eva com direito a comer a maçã sem precisar ver a serpente. E plantaram, em respeito a uma rica natureza encontrada.
Até que receberam uma visita insolente num 22 de abril. Diante de uma barulhada de naus atracando e um cheiro insuportável de portugueses sem tomar banho há meses viram homens fincando uma bandeira num punhado de terra e dizendo em alto e bom tom: Descobrimos o Brasil!
Os índios não sabiam ler nem escrever. E Pero Vaz de Caminha trazia consigo uma carta. Ponto para os portugueses: agrediram os homens, estupraram as mulheres, roubaram o que puderam e saíram, avisando que voltariam assim que pudessem...
Na escola eu aprendi que o Brasil foi descoberto por Pedro Álvares Cabral (a gente dizia: “um cascudo não faz mal”, quem se lembra?), e que isto se deu em 22 de abril de 1500.
Em 1996, no curso de Pós-Graduação da UFF, recebemos um rapaz que havia sido vítima do massacre de Eldorado dos Carajás. Ele fora convidado para falar sobre a luta do movimento dos sem-terra. Contando sobre sua infância, revelou-nos ter sido alfabetizado numa aldeia indígena, por professores indígenas. O rapaz aprendeu lá que o Brasil foi descoberto por Pedro Álvares Cabral.
Ando às voltas com o processo de alfabetização de Antônio, que está com seis anos de idade e cursa o 1º ano de escolaridade, embora já saiba ler e escrever. Antônio nada me disse sobre o feriado de hoje. Está dormindo agora, e eu não vou acordá-lo para questionar dele o que se comemora em 22 de abril. Tenho certeza do que ele me responderá.
Todos os índios enganados, iludidos, violentados e mortos em 1500 nos contam a história de um Brasil que era um antes de Cabral, e tornou-se outro depois dele. O Brasil foi criado por Deus, e descoberto pelos primeiros andarilhos que lá chegaram. Eu disse tanto isto aos meus alunos!!! Não se descobre um lugar que já é habitado. Mas sempre evidenciei a força da convenção da escrita. Nada havia de registro nas mãos daquelas criaturas inocentes e analfabetas. Isto Portugal apresentou, e muito bem feito. Bastou, para tornar-se dono do Brasil.
Quem tem o poder da caneta tem tudo, ainda hoje, quinhentos anos depois. De nada adiantou o saber – tamanho! – que os índios possuíam acerca daquela terra. Foram reprovados e expulsos dela. Como de nada adianta, quinhentos anos depois, Antônio saber ler e escrever, se quem tem o poder da caneta nas mãos quer que ele cubra os pontilhados que formam a letra b. Se as questões da prova exigirem perfeição ao cobrir a letra, Antônio será reprovado, mesmo sabendo escrevê-la.
Em 22 de abril de 2500 não estarei mais aqui. Mas espero que as coisas estejam melhores para os descendentes de Antônio. Para isto, faço como os índios, vou plantando minhas sementes, em respeito à natureza, tentando abrir olhos e ouvidos de uma gente que não aprendeu a avaliar, mas aprendeu a reprovar e a expulsar.
E sigo na defesa de que os índios descobriram o Brasil. Um Brasil lindo, saudável, rico e cheio de vida, que começou a morrer depois daquela invasão criminosa e desumana. É mais ou menos como a escola faz com meu Antônio e outras criancinhas: recebe-os lindos, saudáveis, ricos e cheios de vida e, ao começar a apresentá-los o alfabeto – quase como uma violação – mata-os diariamente, na tentativa absurda de que cubram perfeitamente os pontilhados...
Ninguém cobre pontilhados para aprender a viver! Se a vida sempre seguiu em frente, por que a Escola insiste em andar pra trás?
Neste momento, percebendo Antônio acordado, perguntei a ele se a “tia” lhe falou alguma coisa sobre o dia de hoje. E fui surpreendida, desta vez: Antônio não sabe quem foi Pedro Álvares Cabral. Nada sabe sobre o Descobrimento do Brasil. A “tia” não lhe disse nada.
E eu, já não sei o que pensar...

quinta-feira, 19 de abril de 2012

Chefes podem ser bênçãos

(Elas me estenderam o abraço na hora em que eu mais precisava. E são minhas chefes!)


Há pouco menos de um mês algo em minha vida começou a mudar. Um telefonema fazia chegar aos meus ouvidos e ao meu incansável sonhador coração uma notícia boa: era chegada a hora de um novo desafio profissional.
Experimentei todas as emoções possíveis em breves minutos de conversa ao telefone. E tudo senti: medo, alegria, incerteza, orgulho... Descobri que quando a gente está sob o impacto desse misto de emoções fortíssimas, a gente é tudo ao mesmo tempo, e ao mesmo tempo não é nada.
O telefonema aconteceu quando eu estava no trabalho, numa tarde de sexta-feira. E aquele fim de semana não foi suficiente para que eu me acalmasse. Passei dois dias em casa ruminando ideias, sonhando possibilidades, sorrindo para o espelho, nervosa diante de um convite que, se aceito por mim, representaria uma grande responsabilidade.
Fragilizada pela confusão que os sentimentos fizeram no meu corpo, preparei-me para compartilhar a novidade com colegas de trabalho. Eu tinha dois obstáculos, no entanto: em primeiro lugar, o novo desafio provocaria mudanças no ritmo de trabalho de outras pessoas. Em segundo, eu contava com uma porcentagem, ainda que mínima, de chance de o fato não se concretizar.
Diante disto lá fui eu, preparar os colegas para um futuro – bem ali à porta – que me acenava mudanças radicais.
Costumo me chamar de Dona Aranha, apelido carinhoso que dediquei a mim mesma depois de perceber a total identificação da minha vida com as letras da musiquinha que tanto cantei com meus alunos nas salas do pré-escolar: eu, a Dona Aranha, a persistência em subir, apesar das quedas por conta da chuva fina...
Quando compartilhei a “novidade” pela primeira vez, recebi de Cláudia Lacerda meu primeiro abraço. Um sorriso que é só dela revelava a alegria da minha amiga com a notícia. Cláudia estava feliz porque sabia que eu estava feliz também. Cláudia Lacerda é minha chefe. Algumas vezes depois desse dia nós nos encontramos nos corredores do local do trabalho e nos demos as mãos: companheirismo. Cláudia sempre me perguntava como eu estava, quanto tempo faltava para as coisas acontecerem verdadeiramente... Olhar atento, esperançoso, alegre... Jamais esquecerei. Obrigada, Cláudia Lacerda!
As coisas verdadeiramente aconteceram, e há dois dias recebi de Laura Barreto o abraço abençoador. Foi colo de mãe, foi consolo, foi amizade, foi calmaria, foi parceria, foi humildade, foi mão estendida num momento em que minha cabeça já não mais funcionava como outrora. Eu entrei tão pequena no gabinete onde trabalha aquela mulher enorme, fortaleza, procurando ansiosa, envergonhada, sem graça, por um aceno de perdão. E encontrei uma mulher como eu, desprovida de vaidades, que não me negou a oportunidade de tentar sonhar.
Talvez Laura (que nome lindo!) não tenha nem se dado conta do quanto deixou-me emocionada naquele encontro... Mas nos dias que me restam para viver lembrarei dele. Sentada à mesa, postura de professora – havia até uma maçã, estrategicamente posicionada ao seu lado esquerdo! – ensinou-me que a vida é isto, simples assim: oportunidades, que não devemos jogar fora. Sorriu, brincou, orientou-me, emocionou-se, também, ao contar um pouquinho de sua história... Recebeu-me no final do expediente como se eu fosse seu primeiro atendimento, com a mesma paciência, embora seus olhos já revelassem cansaço. Obrigada, Laura Barreto!
Eu saí do gabinete da minha chefe revigorada, outra pessoa. Laura despediu-se de mim com um abraço apertado do qual por uns instantes não quis me desprender. E me disse palavras de fé, confiança, otimismo e esperança. Foi bênção.
Hoje, ao abrir por rotina a caixa de entrada dos e-mails, Deus me revelou, pela Internet, que está comigo: Lá estava Tania Ávila a abençoar-me com palavras lindas de uma amiga (para sempre amiga) de quem quer o meu bem. Eu li uma, duas, três vezes, até me convencer de que as merecia. Eram como um abraço, como mãos estendidas num adeus, mas recheadas do afeto e do carinho da saudade que se sente quando se gosta de alguém. Inexplicável identificação ouso ter com Tania, desde o primeiro dia em que a vi. Tania é minha chefe, também. Obrigada, minha amiga!
Passei por aqui para dizer que chefes podem ser bênçãos. Se alguém duvidar, tenho minha vida por testemunha. Vim agradecer às três, em especial, porque me deram exatamente aquilo que eu mais precisava: o abraço que abençoa, o movimento de compartilhar a crença de que tudo dá certo no final das contas, quando este tudo está por conta de Deus.
Deus está comigo, e sei que pouco mereço. Mas Ele é persistente. Deus é meio Dona Aranha, também. E quando a chuva – fina ou forte, cada um canta de um jeito – me derruba na subida, Ele estende-me abraços como o de Cláudia, o de Laura, o de Tania.
E eu só queria isso. Mais uma vez, por mais esta vez, obrigada, Senhor!

sábado, 14 de abril de 2012

Fio de bigode

(Temo que o advento da depilação masculina tenha deixado pra trás um valor da minha época de infância: O valor do fio de um bigode.)


Quando minha mãe engravidou pela segunda vez, desejava que fosse de um menino. É por isso que me chamo Karla: eu sou o Carlos Henrique que não nasceu. Minha mãe nunca me privou de conhecer essa verdade, e durante algum tempo ela doeu no meu coração de criança.
Mas eu já deixei de ser criança há uns anos. E desde adolescente assumi, com o peso da lida nas costas, responsabilidades maiores do que eu. Meus pais me educaram para ser gente. E, no meu tempo – eu fui criada como se vivesse no tempo deles – ser gente significava, entre muitos outros valores, ter palavra. Meu pai sempre utilizava a expressão “fio de bigode” para referir-se às situações em que precisamos dar nossa palavra para assegurar alguma coisa. Ou então, quando queria dizer-me que um homem é suficiente para sustentar a si mesmo.
Então, eu passei a “ter bigodes”, embora estivesse longe de ser Carlos Henrique. E cresci, e tornei-me mulher, e usei por muitas vezes a garantia pura e simples do valor do fio do meu bigode para conquistar credibilidades por aí. Trabalhei desde cedo. Meu primeiro emprego depois de formada professora foi em troca do vale-transporte, em vez do salário. E eu não recebia os vales para o mês, não. Recebia o vale-transporte (aquele ticket azul e rosa, quem se lembra?) referente à volta pra casa e à ida no dia seguinte para a escola. A garantia dada à Diretora de que eu estaria lá para trabalhar com meus aluninhos era o fio do meu bigode.
Foi assim também numa época em que ainda não havia cartões de crédito na cidade. Tampouco eu tinha carteira assinada: o fio do meu bigode permitiu-me comprar apetrechos e enfeites em lojas prometendo pagar ao final do mês.
Hoje homens andam se depilando, e eu ando procurando pelos fios de bigode... Hoje vejo homens precisarem de força física, de coação, de companheiros para atingir a objetivos inescrupulosos em suas vidas. O advento da depilação masculina mexeu nos valores. Os fios depilados deixaram alguns homens sem bigodes, sem sustentação, sem caráter.  E isto vem acontecendo com algumas mulheres, também.
O texto de hoje é um desabafo, porque já tomei quantidade de torsilax suficiente para a semana. E o sol lá fora anuncia que o dia promete, sem deixar de me lembrar de que Deus está comigo. Obrigada, Senhor!
Só quis dizer que sou do tempo em que bastava a palavra do meu pai para as coisas acontecerem: o pão era comprado na padaria, a carne no açougue, o jornal na banca, independentemente de haver o dinheiro para tal. Todos sabiam que papai pagaria quando pudesse.
Quis dizer que quando comecei a trabalhar, minhas experiências ficaram sob minha responsabilidade. E que só cabia a mim responder pelas minhas incompetências, a mais ninguém (o trecho ficou parecendo redundante, mas é isto mesmo!): todas as vezes em que não me senti capaz de exercer uma função fui a única a me defender. Não houve pai, mãe, ninguém intercedendo por mim.
Meu pai resolveu todos os problemas de sua vida sozinho. Magro, franzino, sem estudos, pobre, sem compromissos políticos, valia-se do orgulho que carregava visível no rosto: um bigode vasto, que lhe dava o crédito necessário para ser um homem de verdade.
A família ficou sem o Carlos Henrique. Meu pai ainda cultiva o bigode. Os pelos branquinhos de hoje não diminuem o valor do meu pai. Muito pelo contrário! São testemunhas e contam a história de um homem do qual me orgulho de ser filha. Olhando Antônio de perfil, contra a luz, já percebo com alegria uns pelinhos ensaiando o que será um bigode daqui a alguns anos. Fico feliz, aliviada.
Resta-me educar Antônio para ser gente, mesmo que em sua adolescência a moda ainda seja a depilação. Antônio precisa ser informado, desde já, que os pelos deixados no caminho não abaterão a sua dignidade de homem. Dignidade é ser inteiro, sustentar as próprias palavras e ações. Reconhecer falhas, inabilidades e corrigi-las, ao invés de sobrepujar-se com elas.
Por tudo isto, dou Graças a Deus. Pela família de onde nasci, por ter sido uma intenção de Carlos Henrique, pelas experiências profissionais – sofridas e felizes – que me permitem hoje dizer que sou competente.
Competência requer dignidade. Não há como viver, melhor diria sobreviver, sem a comunhão dessas duas virtudes. E eu continuo vivendo meus dias pedindo a Deus que me abençoe, com competência e dignidade em abundância. Porque quero dizer que sou gente, sem ter vergonha desta confissão.

quarta-feira, 4 de abril de 2012

A esperança é de todas as cores

(Corre aqui em Iguaba Grande a boa notícia de que Oscar Magalhães vai renunciar em breve ao cargo de Prefeito da cidade. Eu, decepcionada com sua gestão desde o início, ando muito contente!!! Sim, pois colaborei - e muito! - para sua eleição. Fazer o quê???)


Dia desses aquele bichinho que chamamos esperança entrou em minha casa. E eu fiquei muito feliz: a presença daquele inseto no varal dos fundos anunciava que algo bom estava por acontecer.
Aqui em Iguaba Grande algo bom está por acontecer. Elegemos – eu me incluo na responsabilidade e no arrependimento, também – um governante que nada fez pela cidade.  Alguém que recebeu do povo o que há de mais respeitável: o voto. E que, em pouquíssimo tempo, respondeu àquela atitude de confiança com desprezo, pouco caso e desdém.
Sofremos todos. Os que em Oscar Magalhães votaram, e os que já previam o que aconteceria. Para consolo usamos, nestes três anos e meio, a frase “melhor se arrepender daquilo que se faz do que daquilo que não se faz”. Andamos por aí, nesses dias, falando isto para nós mesmos.
Mas eis que um acontecimento insólito veio justificar a presença verde da esperança no meu varal: Oscar Magalhães deve renunciar, em breve, ao cargo de Prefeito. A notícia corre a cidade como rastilho de pólvora e soa aos meus ouvidos como música de Beethoven! A felicidade dos cidadãos traz a boa nova mais rapidamente. Estamos todos ansiosos, guardando no coração palpitante uma felicidade adolescente. Queremos comentar o assunto, especular acontecimentos, numa vontade de apressar as coisas... Qual o quê!
Deus tem o Seu tempo. Este mistério não nos cabe prever. E aquilo que pensávamos acontecer em 31 de março não aconteceu.
Paralisado, experimentando um tipo diferente de emoção, está o povo de Iguaba Grande. Torcendo, cada um do seu jeito, para que chegue o dia em que finalmente teremos à nossa frente, um governante que siga junto com seus governados, que nos olhe nos olhos, que nos dê a mão.
Está chegando para sentar-se naquela cadeira tão importante, tão valiosa, um homem “da terra”. E, no dia em que este homem receber as chaves da nossa cidade estaremos, todos, recebendo estas chaves, também.
Já faz algum tempo que a esperança esteve por aqui. E eu, equivocadamente, atribuí ao seu verde a renúncia de Oscar Magalhães. Ela deixou minha casa em tempos de chuva forte. E todo o cinza do qual Iguaba Grande se revestiu nos dias de temporal não foi capaz de minimizar a esperança em dias melhores. Depois da chuva, o sol raiou na minha janela e no céu de Iguaba, e era como se aquele amarelo incontestável perpetuasse a certeza de que algo bom vai acontecer.
A mistura dos pingos da chuva que insistia em ficar e do sol que teimava em não deixar o céu trouxe o arco-íris para o céu da nossa cidade. E Deus me disse, num sorriso-arco, que a esperança é de todas as cores.
A nós, cidadãos iguabenses, cidadãos do bem, fica o desejo de ver a semana passar. De ver o pesadelo que tivemos na noite de cinco de outubro de dois mil e oito chegar ao fim. Fica o sonho de ver ser possível viver numa cidade onde podemos ser respeitados, onde o dinheiro destinado ao pagamento dos impostos – tantos! – verdadeiramente signifique obra, saneamento, lazer, educação, saúde, dignidade. Praças são bem-vindas, sim, mas há muito mais prioridades por aqui. Quando o principal é deixado de lado, não há praça que nos faça esquecer do que nos é relevante.
E as cores todas que nos trazem a esperança de mudanças para Iguaba estão lá fora, na cidade, tom sobre tom, pondo por terra a crença de que precisamos da visita do inseto. Não. Para Iguaba ser feliz falta muito pouco tempo. Daqui a alguns dias estaremos livres da opressão, da arrogância, da indiferença. Teremos nome e vez. E seremos, finalmente, respeitados como quem tem, no direito do voto, o poder de decidir mudar tudo outra vez. Ou não.

domingo, 1 de abril de 2012

Perdoar é para os fortes

(Qual é o mais nobre dos sentimentos, o amor ou o perdão? Diante do que tenho vivido, tenho tido dúvidas em responder a esta pergunta... Ela perdoou enquanto eu, humanamente fraca, julgava.)

Ela não foi feliz em seu primeiro casamento. Ficou um pouco mais de três anos ao lado de um marido que acreditava amar. Viveu sozinha este tempo. Queria ter filhos, ele achava melhor esperar. O casamento acabou – se é que começou algum dia – quando estavam começando a construção da casa nova, tentativa falha de salvar a união.
O motivo, uma vergonha: ele estava roubando toda a família. Calado, tímido, de poucas expressões, morou com os pais dela enquanto a obra acontecia. E, tentado pelas forças do mal, desejou facilitar as coisas usando o dinheiro da sogra, do sogro e da cunhada.
Saiu de casa numa manhã, depois que a armadilha o pegou: dinheiro no bolso da calça pendurada atrás da porta do banheiro, posto propositadamente, como queijo em ratoeira. Não houve como explicar (que diria o rato?). Tomou seu rumo, deixando para trás uma família destruída.
A família se refaria. E ela? Viu ir embora aquele a quem dedicou seus melhores anos, seu rubor da juventude, a quem prometeu amar sob todas as condições. Sentou-se na varanda, um caco de mulher. Olhou pro alto: lá estava a outra metade da casa, esperando o término da obra.
Ela tinha uns trinta anos nesta época. Trabalhava fora para ajudar nas despesas da casa, para ajudar na compra dos tijolos... Apavorada em ver a casa pela metade e o rastro sujo do adeus do seu agora ex-marido olhou o relógio com os olhos ainda marejados. Percebeu que já estava atrasada para o trabalho. Não havia como dizer ao patrão o que realmente ocorrera. E foi-se. Trabalhou naquele dia com afinco. Recebeu hora-extra por isso. E assim seguiu, trabalhando, trabalhando, trabalhando, enquanto o coração cicatrizava e a obra da casa chegava ao fim.
Foi tudo preparado, naquela casa nova: ela chegou aos acabamentos, forte mulher descoberta de onde já não mais se enxergava nada. Pôs os azulejos, louças, cores, móveis, e deixou a casa dos pais para viver só. Fez tudo isto sozinha, fazendo jus à genética que lhe foi atribuída por Deus ao nascer de pais que do pouco que tiveram produziram o muito. Corajosa! Batalhadora!
Experimentou por pouco tempo viver sozinha naquela casa. Conheceu um novo amor, desta vez bem diferente daquele que mais pareceu ilusão, confusão. Casou-se de novo. E encheu seu coração de esperanças novamente. Quis ter filhos. E, treze anos depois do primeiro desejo de ser mãe, Deus a abençoou com um lindo menino!
Pronto. Sua vida agora se resumia numa única palavra: realização. Com a chegada do menino, a decisão de parar de trabalhar para criar o filho.
Durante cinco anos foi isto o que ela fez: criou aquele menino como ninguém. Em pleno século XXI foi dona de casa e mãe, viu os quarenta anos baterem à sua porta e os recebeu de braços abertos. Mas as coisas foram mudando, e ela sequer percebeu.
A ausência do marido, cada vez maior, e sempre justificada pelo excesso de trabalho, trazia-lhe culpa, em vez de desconfiança. Muitas contas para serem pagas ao final do mês por uma única pessoa da família. Este pensamento lhe bastava para compreender e aceitar a solidão que se tornava mais e mais companheira sem que ela se desse conta de que as coisas poderiam não ser bem assim.
Com o tempo, a presença do marido em casa passou a representar mais discórdia. Impaciência, inclusive, com o filho que o solicitava insistentemente, até para compensar a saudade. Dali para as brigas, um passo. Das brigas para a rua, outro. E ela começou a sofrer uma verdade que lhe aparecia diante dos olhos: o casamento estava condenado.
Um dia, ao abrir, sem querer, uma mensagem no celular dele, o desespero: um texto revelava com escrachada intimidade a existência de outra pessoa na vida daquele homem a quem tanto amava! Ainda desnorteada, antes que pudesse devolver o celular a ele, anotou o número remetente.
Aquela noite ela passou acordada. O incômodo dos pensamentos não a deixou pregar os olhos. Não havia mais o que fazer, senão procurar pela verdade daquilo que acontecera. E foi o que fez logo na manhã seguinte, quando seu marido deixou a casa para trabalhar.
Ela procurou um telefone público e discou, com dedos trêmulos, o número remetente da mensagem. E numa conversa difícil, sofrida e solitária, sentiu o chão faltar-lhe aos pés: do outro lado da linha, a “namorada” do seu marido. Sem querer acreditar foi ouvindo, ainda que não pedisse, os detalhes de um namoro “sério”, de quase dois anos. Soube de tudo, inclusive, do filho que tinham, um menino de quase um ano de idade.
Talvez o sol tenha nascido e se posto enquanto ela falava ao telefone. Esta lhe era a sensação. Quem pôs o fone no gancho foi um arremedo de mulher. Um farrapo, um lixo. Daquilo tudo que se espalhara pelo chão quando da conversa desgraçada nada restara. Juntou os cacos com a pouca força que tinha. E preparou-se para dizer adeus àquele homem.
Foi o que fez, quando o dia passou e ele voltou do trabalho. Surpreendou-no ao fazer suas malas e pôr um fim ao casamento.
No dia seguinte, acordou, porque tinha que acordar. Não porque quisesse. E assim viveu algum tempo, porque tinha que viver. Mas Deus não lhe privou a genética e, com o tempo – precioso remédio! – ela foi redescobrindo a força que tinha. E trabalhou, trabalhou, trabalhou para pagar as contas que venciam no final do mês, a despeito do inferno pelo qual passava. Diante de muitas portas fechadas e da dificuldade de conseguir emprego com mais de quarenta anos e com um filho pequeno, optou por vender roupas. Encheu algumas pesadas sacolas e, carregando-as nos braços, bateu de porta em porta até encontrar clientes. Pagou dívidas, se recompôs. Criou seu filho, ficou sozinha. E, em nenhum momento, deixou de amar aquele homem. Fez das dores seu escudo, sua escora. Afastou-se dele. Mas nunca deixou de amá-lo.
O “namoro” responsável pelo fim do casamento não durou muito tempo.
O amor dela por ele permaneceu intacto. Magoado, arranjou um cantinho aconchegante no seu coração para doer. E o tempo passou.
Hoje recebi a notícia de que eles vão viver juntos, novamente. Ela o perdoou.
Perdoar é para os fortes. Descobri que sou fraca, indigna do amor de Deus. Porque estive todo este tempo julgando, enquanto Deus a abençoava com o poder do perdão. Sim, acredito que quando Deus concede o dom de perdoar a alguém, está lhe abençoando de maneira especial. Porque, para além de esquecer, perdoar é lembrar sem mágoa. Perdoar é amar. E quem ama a ponto de perdoar merece, na mesma medida, o amor de Deus.
Eu desejo vida nova ao casal, nestes tempos de Páscoa! E peço a Deus que não se esqueça de mim, deste pedaço de gente ainda não aprendeu a perdoar. Talvez eu tenha mesmo é que aprender a amar, porque só quem conhece o amor de verdade é capaz de entender o valor de um perdão.