domingo, 26 de fevereiro de 2012

Você e ele, ele e eu, eu e você

(Antônio tem pai e mãe. Antônio tem família. E é amado por ela!)


Hoje você levou meu filho à praia, deixou-me em casa morrendo de ciúmes.
Eu fiquei aqui, pela metade, como fico todas as vezes em que estou sem ele, sem aquele pequeno que é maior que esta casa onde mora comigo.
Ouço o eco de minhas próprias ações. Abro e fecho a geladeira, como se fosse a hora de alimentá-lo. Vou e volto à sala, procurando pela bagunça que me traz a alegria da certeza de que ele está por perto.
Entristeço egoistamente. Hoje é dia de Antônio ser seu.
Preciso lhe dizer que você é o melhor amigo de Antônio. Todos os dias, quando acordamos ou quando deitamos para dormir, Antônio agradece a Deus por você existir.
Somos responsáveis pelas consequências das escolhas que fazemos pela vida afora. Uma dessas consequências – ou dessas escolhas – fez com que Antônio não experimentasse viver em família, comigo e com você. Mas sempre tive tanto medo de magoá-lo, quis sempre tanto evitar que algo de ruim acontecesse ao meu menino que evitei que ele presenciasse e sofresse a hora do adeus. Se esse adeus aconteceria... Eu não sei.
Mas algo me conforta o coração e me deixa quase convencida de que fiz a coisa certa: Antônio experimenta do que pode, e com amor.
Hoje vocês dois estão juntos – homens da minha vida! – curtindo um dia de sol e pescaria. Meu filho (é tão difícil dizer nosso!) saiu de casa na carona do seu carro, feliz da vida, gritando um “te amo, mãe!” como quem me dissesse para não me preocupar, como quem me garantisse a volta pros meus braços.
A vida de Antônio é dele, mas a missão de torná-la feliz é nossa. Ao menos, por enquanto. Hoje o dia será grandioso pra ele, porque estará com seu pai, seu herói de verdade. Qualquer desenho animado, qualquer DVD inédito, qualquer jogo do computador perde a vez quando você chega e sorri pra ele no portão. Se lhe diz “vamos!”, então... O que lhe resta mais assistir, se o homem que enfrenta todos os perigos por ele está bem à sua frente?
É uma vida um tanto truncada, mas é a que lhe podemos oferecer. Vamos, então, fazer a nossa parte da melhor maneira possível. Antônio sabe que é amado, sabe do respeito que temos um pelo outro, sabe da importância que tenho em sua vida como da que você tem na minha, uma vez que me proporcionou essa oportunidade de passar o resto dos meus dias – porque eu hei de passar, se Deus quiser! – cuidando desse presente divino que ele é.
Tudo o que há de lindo em nosso filho (agora saiu!) é nosso também. Veio da combinação do que há em nós dois: eu aprendi a amar Antônio no momento em que soube dele, mas quando estive com ele nos meus braços foi você quem me ensinou a demonstrar esse afeto. Eu não havia aprendido isto, porque nunca havia experimentado este materializar dos sentimentos. Aprendi com você a dizer “eu te amo”, a fazer carinho nele... Hoje Antônio é um menino extremamente carinhoso e dedicado, devo isto a quem?
Nosso bom-senso-de-humor (essa palavra não existe) invadiu o espírito do nosso menino, e hoje por várias vezes caímos na gargalhada com as suas tiradas sábias e rápidas (isto ele herdou de quem?) diante de uma situação corriqueira. Nossos sorrisos se confundem todos na hora mais abençoada, que é a da brincadeira a três.
Hoje ele está com você, e eu permito, e abençoo este momento, embora com o coração diminuído, coisa de uma mãe de carne e osso. Porque é importante para o crescimento dele esse passar o dia em companhia do pai. Aprender os truques de se tornar um homem de verdade, ainda que isto signifique também observar as meninas bonitas na praia...
Você foi o homem da minha vida quando por você Deus me deu Antônio. Antônio é o homem da minha vida, agora. Com direito, inclusive, à toalha molhada em cima da cama. E eu devo minha vida a grandes homens: a meu pai, a você e a Antônio.
Maravilhosa sensação de ciúmes! Imagino o cenário: você e ele na praia, os pescadores, os barquinhos, as gaivotas afoitas pelo que sobra dos peixes, o sol, o vento, e tudo o que ele está vivendo, criança inocente que é.
Daqui a pouco (acho que ainda vai demorar um bocado) ele me gritará, anunciando a chegada. Estará vermelhinho, a despeito do FPS 60 com que lhe besuntei o corpo.  O corado se revelará por conta da alegria no seu coração, que sentirei palpitante quando apertar contra o meu. E verei você feliz, também, sorridente, todo prosa, lambendo a cria, orgulhoso pela parte que lhe coube no resultado maravilhoso da existência de Antônio.
É a família que podemos dar a ele, certo? Então, que Deus nos abençoe, e que continue nos iluminando nas horas tão difíceis de cumprirmos a tarefa de educá-lo. Que possamos ter discernimento para que o julgamento dele a respeito de nossas atitudes seja preenchido de amor. E que seu amor nos perdoe os erros, as covardias, os temores.
Quero criar meu-nosso filho para amar e perdoar. E sei que tenho conseguido avançar muito, Antônio é um menino espetacular! Dono de um coração que não tem tamanho. Pleno de bondade e generosidade, virtudes tão pouco vistas hoje em dia.
Se nossa história não seguiu um caminho convencional, pouco importa agora. Convém que prossigamos, oferecendo a ele tudo o que uma família pode oferecer de melhor: este amor em abundância que lhe damos, esta sinceridade no olhar cada vez que a conversa é séria, os limites que lhe garantirão saber até onde ir futuramente, a certeza de que estaremos aqui todas as vezes que ele precisar que estejamos. O que passar disto, está nas mãos de Deus. E se foi o próprio Deus quem nos enviou Antônio e nos delegou o dever de fazer dele um grande homem, um homem dEle, Ele não há de nos desamparar quando fraquejarmos. Para isto nos deu, um ao outro. Formou-nos família. Se moramos ou não sob o mesmo teto, isto pode ser somente um detalhe. Façamos nossa parte, pro nosso menino poder ser feliz.

terça-feira, 21 de fevereiro de 2012

O que ainda não se pode comprar

(Uma visão triste nesses dias de carnaval: o desespero de quem não quer envelhecer, tem muito dinheiro, mas não pode comprar o tempo.)



Eu não saí de casa nestes dias de carnaval. O tempo passou, e a festa foi perdendo a graça pra mim. Acho que envelheci, graças a Deus!
Mas não fiquei alheia ao que aconteceu apesar de não querer saber o que aconteceu. E vi algumas coisas tristes cada vez que tentava ler um e-mail ou simplesmente me distrair na Net.
Eu vi o carnaval de alguns anos atrás se repetir em fotos de pessoas nuas. Sim, elas já não se vestem mais, e isto já faz um tempo. Vi o desespero de gente querendo perder a conta dos beijos que deu, mesmo que nesta contagem estivesse valendo beijar o desconhecido, o “qualquer um”. E vi gente que contou poder ir mais além, passar dos beijos – se é que me faço entender – com a mesma condição de isto valer com os desconhecidos.
Eu vi fotos de gente muito rica, muito famosa. E, ainda que esta gente encenasse um maravilhoso sorriso no rosto, tudo o que consegui ver foi tristeza.
As pessoas juntaram tanto dinheiro, e fizeram tanta coisa para tê-lo! E nessa guerra declarada para ficarem ricos esqueceram-se de um detalhezinho importante: o dinheiro não compra o minuto. Daí, o tempo passou, e hoje elas tentam esconder aquilo que de mais glorioso Deus nos deu: as marcas da vida.
No cenário carnavalesco, a exposição do corpo. Hoje é isto o que vale para os famosos em questão: e chega a ser ridículo homens e mulheres abastecendo-se de botox, silicone e purpurina em lugares estratégicos para aproximarem-se, aos quarenta anos, do que é um corpo de dezoito.
Elas sambam nervosamente, num balé desengonçado, sem o menor talento, fabricado nas academias. Um pé pra frente, outro pra trás. O cansaço, disfarçam com o sacudir dos braços. Não chegam nem perto das mulatas dos morros que andam por aí sambando a vida que têm que levar.
Eles fazem o mesmo: repetem a coreografia patética. Para disfarçar o dom que a natureza não lhes deu, usam ternos e calças largos. Ou sacodem um chapéu... Me dá pena ver!
As marcas da vida com que Deus planejou revelar a experiência e a sabedoria do homem têm que ser, obrigatoriamente, removidas. E as pessoas ricas e famosas se submetem aos cortes, aos riscos das cirurgias, na ilusão de que um rosto sem rugas é o tempo de volta.
Gastam o dinheiro que têm tentando comprar minutos.
Não se compram minutos.
A própria mídia que eleva, destrói. Aos quarenta anos, se está velho demais. As novelas “Malhação” e etc. esfregam a juventude na cara de quem já passou dos trinta anos e aguarda atendimento no consultório do cirurgião/milagreiro famoso. É preciso aparentar vinte, ainda que, para isto, todos e todas entrem na mesma fôrma e saiam de suas faixas pós cirúrgicas com a mesma expressão facial. Já se percebeu que todos na TV, depois de certo tempo, têm a mesma cara?
Nas escolas de samba, a ala das baianas é separada da ala mirim. É como se o tempo fosse respeitosamente dividido ali. E há até grande consideração pelas senhoras! Se viver fosse desfilar numa escola de samba, algumas pessoas teriam dificuldade em mudar de ala. Talvez os ricos e famosos arriscassem uma operação para parecerem crianças eternamente (?)... E a ala das baianas tivesse que ser exterminada...
Eu não sei o que será novidade para Antônio no corpo de uma mulher quando chegar a sua hora de interessar-se por isto. Talvez a curiosidade seja a de vê-la vestida. Não sei se quando chegar a vez dele, a medicina terá descoberto novas fórmulas e pílulas que estendam a juventude por mais tempo. Mas por enquanto vou ensaiando instigar nele a percepção do ser humano como Deus criou: em sua inteligência, bondade, caráter. E tento – ratifico, tento! – ensiná-lo a dar valor exatamente ao que ainda não se pode comprar. Porque acho que quando Deus permite ao homem envelhecer está abençoando-lhe. Quando lhe concede as rugas e lhe curva o corpo está presenteando-lhe com a certeza de que está vivo, porque quem não envelheceu morreu jovem, sem conhecer o melhor da vida.

segunda-feira, 20 de fevereiro de 2012

O Super Antônio

(Nestes tempos de "carnaval em casa", a companhia de Antônio tem me inspirado!)


Antônio é um super-herói. Nada o abate.
Aos seis anos de idade enfrenta todos os problemas que lhe aparecem. Para combater cada um deles, um objeto diferente surge de sua mochila. Nada é o que parece: onde vejo um copo ele vê uma espaçonave, onde vejo uma tampinha ele vê um comunicador da intergaláxia, o que pra mim é uma corda para ele é a teia do Homem-Aranha...
Meus olhos têm quarenta e três anos. Os dele, seis. Aí está a razão pela qual não vemos as mesmas coisas num mesmo objeto.
Se Antônio quer ser o Arqueiro Verde, veste-se desta cor. Se surge vestido de azul é um dos Power Rangers.  Com muita facilidade e tranquilidade se transforma no que lhe for necessário para exterminar o mal, e fazer com que o bem vença, sempre.
Antônio brinca, brinca sem parar. A sala da nossa casa é o seu mundo: televisão ligada e todos os brinquedos espalhados, ele dá conta das duas coisas, sem perder o fio da meada. Sabe exatamente em que parte está o desenho animado e a brincadeira paralela. Ele é todos os personagens, todos os salvadores da Terra. Antônio é um super-herói.
Este super-herói de seis anos não sabe o que espera lá na frente. Eu sei. E tento fazer minha parte, mas sempre acho que faço errado. E, enquanto o observo lutando contra tantos poderes destruidores, fico tentando imaginar como fazer pra dizer a verdade a ele.
Preciso contar a Antônio que o mundo está cheio de gente ruim. E que essas pessoas não tem rostos verdes, nem dentes amarelos afiados, tampouco chifres ou coisas semelhantes para que sejam identificadas. Muito pelo contrário. Aqui “na frente”, onde estou, todo mundo tem o mesmo rosto, e às vezes demoramos muito para discernir entre o rosto do bem e o do mal.
Aqui não se usam armas mirabólicas e possantes para derrubar os outros. Faz-se isto com meias palavras, com atitudes dissimuladas, e até mesmo com belos sorrisos estampados.
Preocupada em proteger Antônio do improtegível, fico tentando prever o que lhe acontecerá pelo caminho, para me preparar para o acalento quando ele precisar de mim. Ele vai sofrer quando descobrir que seu amor pela menina da escola não é correspondido, vai sofrer quando o professor o flagrar colando no dia da prova. Antônio vai chorar quando perceber que foi traído pelo seu melhor amigo, quando ficar em recuperação em Matemática, quando tiver a carteira roubada por algum pivete.
Os super-heróis estão na TV. Vendem brinquedos, camisetas, lancheiras, copos, roupas de banho, material escolar. São tão queridos pelas crianças! Alguns atravessam a adolescência, mas não ensinam aos nossos filhos que viver a realidade é bem diferente. Essa parte fica pra gente que é mãe. E é duro ensinar isto.
Eu ainda não sei como fazer, mas peço a Deus que esteja viva lá na frente. Porque quero receber Antônio nos meus braços quando, do alto de seus quase dois metros de altura – ele vai chegar lá! – ele desabar, chorando um amor perdido. E quero abraçá-lo acolhedoramente nas suas tristezas, para que por alguns instantes ele pense que o mundo sou eu.
Deitado no meu colo como costuma ficar agora, contarei a ele que “a vida é assim”, coisa que muito ouvi, já, dos meus pais. E enxugar-lhe-ei as lágrimas derramadas sem vergonha, porque graças a Deus eu digo a Antônio todos os dias que homem pode chorar. Ali estarei, com meu conforto e consolo, criando meu filho para o mundo que o espera. Direi-lhe palavras que o façam sentir-se forte, sem deixar de reconhecer suas fraquezas. E, depois, o farei sorrir, acrescentando algumas besteiras ao texto – sempre – bobo de mãe.
É assim que imagino criar o homem que se tornará Antônio. Vou guardando na minha memória afetiva alguns dos truques que ele ensaia agora na luta travada entre o bem e o mal, tentando não me esquecer dos detalhes, porque essa luta apenas substitui os adversários à medida que o tempo passa.
Aos poucos ele vai perceber que não tenho laser, nem armas de fogo ou gelo, coisas que hoje ele diz que eu tenho. Vai perceber que sou fraca, e que não sei todas as coisas, apesar de ser professora (ele sempre diz que se eu sou professora tenho que saber de tudo!). E vai concluir que, a despeito de todos os “defeitos” descobertos, me ama além da medida. Como vai concluir que é extraordinariamente amado por mim, apesar de colar na prova ou ficar em recuperação.
Taí a vida, Super Antônio! Importa que estejamos juntos. Vamos ver o que será...

sábado, 18 de fevereiro de 2012

Muito prazer, meu Blog!

(Através de você tento contar sobre o que fui, e melhorar o que sou. Aos amigos - virtuais ou não - que passeiam por aqui porque sentem prazer nisto, dedico este texto.)



Sempre gostei de escrever. Minha vida, eu contei em várias páginas de vários diários que um dia se foram: ação insensata que os adultos praticam quando acham que são maduros o suficiente para viverem sem as lembranças da infância e da adolescência.

Os papéis sempre foram fiéis companheiros. O colchão da cama também. Punha-me de joelhos e escrevia, escrevia, escrevia minhas solidões.
Quando consegui ter um quarto só pra mim consegui, também, chegar ao final dos textos de uma só vez: não havia mais a minha irmã a interromper-me os pensamentos com procuras esbaforidas pelo vestido a usar...
Eu fiz do meu quarto o meu refúgio. Muitos cadernos contando das minhas experiências com a vida: meus amigos, minhas brigas com eles, minhas insatisfações com as regras lá de casa. Jamais meus pais souberam daquilo do qual discordei. Mas meus cadernos sabiam tudo. Muitas manchas de lágrimas. Solidão dói bastante. Cresci optando por escrever minhas coisas enquanto ouvia da janela o barulho dos meninos e meninas da minha idade a desvendar os encantos da noite.
A noite trazia-me inspiração para as poesias. E o som daqueles passos e vozes alegres misturados com o ronco dos carros – que os jovens fazem questão de produzir! – enchia-me de motivação: e eram poemas, versos, sonetos...
Até que ganhei a Remington 22, uma máquina de escrever! Meus dedos, então alucinados, caminhavam pelas teclas das letras, experimentando resultados. (Eis uma prática que ainda tenho: olhar o teclado e imaginar que palavras estão ali, como diria Carlos Drummond de Andrade, “prontas para serem escritas”...)
Eu fiz muita coisa com aquela máquina... Nossa! Lembrar dela agora me arrepia a pele! O estalar dos botões para a retirada da tampa já me fazia pensar no texto que iria escrever. E eu datilografava tão rápido que parecia ter feito o curso. Que nada! A pura emoção de estar ali, querendo logo revelar meus pensamentos...
Lá no meu refúgio tudo concorria para que eu vivesse das coisas que escrevia. Comprei logo um aparelho de som e uma televisão, uma vez que o meu gosto para compartilhar momentos de música e TV com a família era pouquíssimo. E por lá fiquei, anos da minha vida, a escrever, a compor minha história.
Voltei para os cadernos depois que minha companheira Remington 22 se cansou. A máquina para, mas os pensamentos não podem esperar. Quando me apaixonei de verdade (existe isto?) foram tantos os desvarios que enchi meu armário. Relíquia destruída no dia do fim. Um amontoado de papéis rasgados com a fúria de quem se acaba por causa de um amor perdido. Eu estava vivendo – e era só isso! – quando pensava que ia morrer.
Depois foram os ensaios com a minha profissão de professora: muitos “diários de bordo”, registrando sucessos, fracassos, mas, principalmente, minha paixão por lecionar. Taí algo de que me orgulho sobremaneira: do ofício de ser professora! Escrevi muito sobre meus dias, sobre o que pensava, sobre o que imaginava poder fazer diferente... Por muito tempo fui professora, e só isso. Esqueci-me de mim, e trabalhei, trabalhei, trabalhei, carregando nos braços os cadernos dos tantos alunos que passaram pela minha vida. Foram dezesseis anos ininterruptos, uma média de vinte e cinco alunos por turno, o que me faz chegar a uma estimativa de oitocentos seres humanos em formação no convívio comigo. Caramba! Que bênção de Deus! Como Ele confiou em mim!...
Apesar de algumas ausências, de algumas lacunas provocadas por períodos em que muito pouca coisa me inspirava, recomecei o exercício de escrever há alguns anos. Comecei a partilhar meus textos, coisa que dificilmente fazia. E algumas pessoas começaram a gostar de ler o que eu escrevia. Dali a chegar ao Blog, foi rápido. E devo dizer que a experiência tem-me sido extremamente emocionante.
Muito prazer, meu Blog! Vim aqui para contar a você que sou uma pessoa renovada depois que cruzamos nossos caminhos. Tudo o que há escrito em cada página é um pouco do que sou, do que Deus planejou que eu fosse. Sei que cometi muitos erros, mas sei também que Ele não está lá tão decepcionado assim.
Vim dizer-lhe da alegria que é escrever uma coisa que se está sentindo e encontrar do outro lado da tela um alguém que precisa lê-la. Da alegria que é ouvir a crítica, sinal de que posso melhorar. Da alegria que é emocionar um leitor com tão pobres palavras.
Eu fiz amigos através do Blog. Gente que não conheço pessoalmente, mas que me trata com intimidade, respeito e carinho. Gente que reza por mim quando vai dormir.
Deus seja louvado pelas palavras que escrevi sem saber por que, e só descobri quando alguém me revelou tê-las recebido no momento em que precisava. Deus seja louvado pela foto que recebi do sobrado onde morei, depois de postar “Feliz a vida toda”. Por ter acalentado alguns corações quando perdemos Roseléa. Por ter emocionado Marli e Herminia quando lhes prestei as merecidas homenagens. Pela essência de lavanda que recebi de presente depois que publiquei “Faxina: estou pronta!”, por ter recebido tantos testemunhos de amigos que se identificaram comigo através das histórias - tão particulares – que contei sobre meu filho, minha família, minha vida...
Obrigada, meu Deus, por cada reflexão que eu possa ter causado nos corações dos professores. Obrigada por permitir que eu chegasse até aqui. Obrigada por cada palavra que recebo de minha amiga Alda a cada nova mensagem...
Eis o mundo virtual me provando que nem tudo está perdido, apesar da “evolução do nada”...
Se é por aqui que é pra ir, estou indo. E confesso que encontrei um caminho bom demais. Porque o caminho que se faz acompanhado por amigos de verdade – virtuais ou não - só pode ser o certo. Só pode ser de Deus.

quinta-feira, 16 de fevereiro de 2012

O tempo e os sentidos

(Pra quem exercita o uso dos sentidos, o tempo é um Presente!)


Eu tinha dez anos. Já faz algum tempo. E, no entanto, ainda sinto os cheiros das coisas de quando era muito, muito pequena. Cheiro do pão com ovo que levava na pasta da escola para a merenda. Cheiro do plástico com que minha mãe encapava meus cadernos. O plástico xadrez verde, com algumas margaridas. Eu sinto o cheiro da madeira velha sobre a qual dispunha o material da escola quando começava a aula.
Depois as carteiras passaram a ser de fórmica, e eu lembro dos riscos feitos a estilete pelos alunos: seus nomes, suas “colas” para o dia da prova, seus recadinhos de amor, os corações cravados com as iniciais dos nomes dos namorados ou pretendentes...
Se me curvar sobre esta mesa onde estou agora, posso repetir a ação de baixar a cabeça, cruzar os braços e esperar o sinal da saída tocar. E lembro das brincadeirinhas que fazia com os colegas da sala por baixo dos braços dobrados, sem que a professora visse.
Lembro das cores das listras da tampa do meu estojo de madeira. A tampa corrediça listrada em cinza, preto e vermelho. Eu abria tanto aquela tampa!... Nunca soube onde ela ia parar depois que entrava totalmente pelo corpo do estojo...
Eu tinha uns cadernos do MEC. Minha mãe comprava sempre num depósito, saía bem mais barato. Eram uns pacotes com 10. Capas verdes com as iniciais do Ministério da Educação e Cultura.
Meus gostos estão todos aqui comigo, agora: o do Mineirinho da garrafa pequena que eu comprava na cantina da escola quando meu pai podia mandar o dinheiro pra isto. E juro que lembro detalhadamente do gosto do Nescau que bebia na hora do recreio no Jardim de Infância. Ficava meio ruim, porque o chocolate descia e nem sempre eu conseguia misturá-lo direito.
Que tempo é este que passa – tanto e tão rápido! – mas que não nos deixa esquecer sensações, gostos, cheiros...? O tempo é, também, um presente de Deus.
Sinto ainda, como se fosse hoje, os puxões da minha mãe nos meus cabelos quando fazia a “Maria Chiquinha”. E ouço ricamente o bater da lata de Neocid na minha cabeça quando fui tomada pelos piolhos. Há quanto tempo isto aconteceu? Trinta e poucos anos?!
Meu pai um dia chegou em casa fora do horário de rotina. Entrou, abriu a geladeira vermelha, baixou o volume do rádio do qual minha mãe ouvia o programa “Bom dia” com Aroldo de Andrade, tomou um copo d’água e ficou calado, enquanto minha mãe escolhia o arroz do almoço. Ela estranhou a expressão no rosto dele e disse: “Mamãe morreu, né?” Ele balançou afirmativamente a cabeça. Eu estava sentada, ajudando a minha mãe. Eu tinha onze anos. Ela chorou, ainda escolhendo o arroz. Choro solitário, calado, contido, conformado, silencioso. Talvez até hoje eu saiba refazer esta cena quantas vezes seja possível, da mesma forma como ela se deu.
Eu fiz natação com uns oito anos, mais ou menos. E jamais esqueço de duas coisas que me marcaram nesta época: A primeira, as folhas dos castigos em que minha mãe fazia eu e minha irmã escrevermos cinquenta vezes a frase “Não devo quebrar pratos quando lavar a louça.”, quando isto acontecia lá em casa. Eu me recordo das texturas dos muros onde parávamos para pôr a folha e preenchermos algumas linhas do castigo. Lembro - e é como se sentisse agora, na palma das mãos - a aspereza de alguns deles, que quase rasgavam as folhas.
A segunda lembrança da época das aulas de natação é a do professor me atirando na piscina de três metros de altura e afastando as raias de mim, quando eu tentava alcançá-las. Ele quis me ensinar a nadar assim. Eu lembro do azul que via quando abria os olhos, lembro do corpo dele embaixo da água e de ouvir as vozes de uma senhora gritando pra ele me tirar dali.
Tudo isto não se foi quando o tempo passou. Não se foram as dores, como não se foram os amores. Minha mãe ainda chora a morte de minha avó e ainda ama o meu pai.
Deus, em sua perfeição, nos presenteou com nossos sentidos. São eles que eternizam o tempo. É através dos nossos sentidos que entramos em comunhão com Deus.
Hoje tive a experiência de ouvir a voz de uma pessoa, depois de trinta anos. Eu não a vi. Só ouvi. Ela cantava uma canção. Exercitei meus ouvidos. Fechei meus olhos, tomada pela emoção do reencontro. E em menos de três minutos eu tinha novamente treze anos de idade. Eu estava no colégio, estava de jaleco azul, estava brincando de queimada na hora do recreio...
Obrigada, meu Deus! Porque fui feliz por três minutos! Porque tive treze anos por três minutos!
Agora entendo a alegria dos meus pais quando reencontram os amigos do tempo em que eram jovens... Agora entendo a alegria com que alguém experimenta amoras, se eram essas as frutas do quintal de casa quando criança... Agora entendo porque as pessoas se abraçam para matar a saudade... Entendo porque o cheiro do pão com ovo me faz tão bem...
De nada adianta passar a vida sem aguçar os sentidos. Isto é dar valor ao tempo, isto é respeitar a história que se escreve. Um dia tudo isso vai passar. Antônio receberá a notícia da minha morte. Preciso contar pra ele que viver a vida é bom, em todos os seus sentidos!

terça-feira, 14 de fevereiro de 2012

Quem matou a menina?

(Quem matou Eloá? Eu tô sentada no banco dos réus, também.)


O rapaz a sequestra atormentado por um sentimento que julga ser paixão. Num daqueles momentos inerentes à adolescência em que as coisas se confundem e, dentro de um corpo oco, o mal consegue ser mais forte que o bem: o ciúme impera sobre todos os demais sentidos, a solidão dói fisicamente e a solução é apoderar-se daquilo que supõe amar.
Ele sequestra a menina, mas já não sabe o que fazer com ela. Perturbado, ouve vozes: são vários os conselhos que o mal que habita no seu interior lhe dá.
Eles estão de um lado do muro: o rapaz e a menina.
Do outro lado do muro estão os que salvarão a menina do inferno do sequestro... Os profissionais preparados, destemidos, os que num momento como este estão prontos a usar a razão, desprezando qualquer tipo de emoção que queira lhes ocupar o peito. Naquele momento, no peito, somente o colete à prova de balas. Nada mais. Concentração, anos de preparo, racionalidade. Objetivo único: sucesso na operação de resgate.
O país para diante da visão da menina na janela, acenando aterrorizada, sem saber que seria a última vez que a veria viva. A mídia faz seu trabalho informando, alarmando, conjecturando, especulando... E o que eu pensava tratar-se de profissionais preparados aparece-me diante da tela da televisão como um monte de homens atrapalhados que se embolaram numa cena quase ridícula de se assistir, levando ao tiro derradeiro: a menina está morta.
Quem senta no banco dos réus? O rapaz, o tormento em vida. Não importa se antes da infeliz invasão ao apartamento ela estava viva, e ainda com alguma esperança de sobreviver ao inferno. Ele atirou, o moço. Que se sente lá.
Quem matou a professora no ônibus 174? O sequestrador ou a infeliz ação dos profissionais (des)preparados?
Quando um governo não dá escola, não oportuniza emprego.
Um trabalhador que não recebe um salário digno precisa estar mais tempo fora de casa para garantir que o sustento da família dure os trinta dias do mês. Na maioria das vezes, as crianças costumam ficar em casa sozinhas enquanto seus pais dão conta do trabalho.
Quando um governo não dá emprego, não oportuniza a dignidade.
Quando um governo não dá dignidade, não oportuniza a FELICIDADE.
Em meio a dias de triste realidade essas pessoas “abortadas” pelo Estado vão vivendo: duas, três conduções lotadas para chegarem àquilo que chamam de trabalho, marmitas frias, calor, insegurança das ruas. Depois do expediente, o retorno, sob as mesmas condições – aí acrescentado o cansaço extremo! – àquilo que chamam de casa. Voltam, mecanicamente, porque tem que ser assim: chegar, comer o que for possível e dormir para acordar poucas horas depois e começar tudo outra vez. A mecânica da vida triste.
Quantos sentimentos perversos devem rondar a mente de uma pessoa que vive uma rotina dessas? Não é difícil imaginar.
O rapaz que sequestrou a menina esteve, eu não tenho dúvida, durante todo o tempo dentro daquele apartamento tão transtornado quanto ela. Os profissionais do lado de lá do muro é que não. Repórteres sabem lidar com emoções e controlá-las. Policiais também.
Que tipo de transtorno atingiu o sequestrador do 174? O de ter uma vida regrada, normal, uma infância feliz, com direito à decência? Não creio.
Fácil pôr no banco dos réus um ser humano – porque ele é, eles são, todos, diante de Deus – e acusá-lo, e condená-lo pelo assassinato da menina, pelo estupro da senhora, pelo roubo do relógio, pelo sequestro do senhor. Condenados que são, vão para as cadeias que os esperam enquanto o governo inocente inconteste fabrica as próximas figuras dos retratos das manchetes dos jornais com sua oferta de serviço público precário e seu parco interesse numa verdadeira educação de qualidade.
O aborto é ilegal – e devo dizer que dou Graças a Deus por isso! - mas os bebês estão nas latas de lixo, nas esquinas, nos sacos de mercado. Os bebês crescem e ficam pelas ruas, meninos a amedrontar-me com suas giletes nos sinais de trânsito. Os meninos crescem e ficam pelas ruas a planejar o sequestro de suas ex-namoradas, porque elas não podem ser mais uma a abandoná-los também.
Um professor que não ensina e reprova alunos ao final do ano é réplica de um governo que nada oferece, mas trancafia quando cobra.
Se eu ouvisse um pouco da história de cada detento numa prisão, certamente sairia dela revendo muitos dos meus conceitos...
Um professor que não ensina não pode reprovar alunos ao final do ano. Estou lá, também, no banco dos réus, sentada com o rapazinho que entendeu ser amor aquilo que talvez até possa ter sido paixão, mas que, certamente, foi uma tentação dos demônios. Estou lá, e a parte que me cabe nessa culpa é a de ser professor e de não ter feito direito a minha parte. E estou lá sabe por que, também? Porque um dia o rapazinho foi um aluno da minha escola, talvez meu aluno. E como fui um professor que nada ensinei, mas que reprovei, ele repetiu os anos de escolaridade, repetiu, repetiu, mas nada aprendeu. Nem mesmo a ser um homem de verdade. Porque reforcei nele os conceitos enraizados que ele já possuía: o de que nada valia, nada sabia, nada tinha, nem um futuro a vislumbrar...
Enquanto o governo enxergar a escola como superficial produtora de eleitores, e tratar com descaso a situação do desemprego e de sua consequência mais aviltante - a desonra do ser humano - produzirá, em mesma escala, os sequestradores, assaltantes, homicidas e afins. E sairá perdendo, porque estes, se presos, não votam. Ainda.
Mas esta não é uma reflexão só para os nossos governantes. É pra mim, também. Porque cada um que ocupa um dia o banco dos réus é julgado por um erro que também eu cometi, por inocência ou omissão. Porque cada vez que ratifico as intenções do lado sujo da política com minhas atitudes medíocres de cidadão e - ainda pior! - professor, dou minha contribuição às estatísticas: mato mais uma menina num apartamento.

domingo, 12 de fevereiro de 2012

Correr como criança

(Alguém aí já reparou na beleza de uma criança correndo na beira da praia? Pois Antônio sempre me dá este presente.)


Eu levo Antônio à praia sempre que posso. E a melhor parte de quando estamos lá é a hora em que ele me pede pra deixá-lo correr. Eu delimito os espaços: “Você pode ir daqui até lá...” Ele me sorri animado, e sempre percebe que aumentei um pouquinho a distância.
Ver Antônio inspirando, preparando os pulmões para iniciar a corrida, é a coisa mais linda que há! Graças a Deus esse momento existe (talvez seja essa a hora em que Deus aperta a tal da tecla pause do tempo...).
É louca!”, devem pensar as pessoas que me vêem: eu o sigo com um olhar atento, mas invejoso!... Ele corre pela areia, quase some do alcance dos meus olhos. Eu vou vendo aquele corpinho frágil transformar-se – na minha poesia de mãe – num avião a jato, numa motocicleta possante, numa lancha voadeira... Se me permito um pouco mais de ilusão, ele é o “The Flash” com todos os seus poderes de chegar antes mesmo de partir.
Braços e pernas perfeitamente coordenados – a natureza faz por si, dispensa personal trainers. Ele sabe o que faz. Inicia sua trajetória sério, compenetrado, preocupado em chegar lá, no local marcado. Atravessa a correnteza das ondas que tocam a praia, salta os obstáculos que lhe aparecem a frente e, com determinação, chega.
Da chegada, eu sei pelo aceno. Deus me acena pelas mãos de Antônio, quase invisíveis pela distância: eis meu corredor lá, invencível. É hora da volta.
A volta é algo que emociona e aperta qualquer coração de mãe: a corrida agora é menos veloz – o objetivo já fora atingido – e é em minha direção. A cara séria dá lugar ao sorriso que se modifica enquanto as bochechas trêmulas obedecem ao ritmo dos passos. Às vezes acontecem alguns tropeços, mas ele se levanta, sorri e continua.
Ofegante, se aproxima, de braços abertos. E eu tenho que estar lá para receber o abraço mais valioso do mundo! O que nunca termina. O que dura a eternidade de alguns segundos. O que fala por si.
Mas não há cansaço. Ele quer ir de novo. E me pede pra marcar um ponto de chegada ainda mais distante. Eu sou a contadora, dou a partida: um, dois, três e já!!!
Lá vai ele, o meu Antônio, o Antônio da vida que o assiste e o espera ansiosa... Lá vai meu menino, que há tão poucos dias aprendeu a andar sozinho, sem minhas mãos. Lá vai o meu amor...
Dia desses, por convite do rapaz que aluga lanchas por aqui, ele deu uma volta em uma delas. Eu permiti. Colete no corpinho, sumiu diante de mim e das águas acolhedoras. Foi-se, para mais uma aventura em alto-mar. Quando voltou, não havia dado uma voltinha: tinha descoberto o universo que existe pra lá do alcance dos pés! Sentou-se na areia e contou-me tudo, o tudo que havia vivido naqueles – tão breves! – instantes na lancha.
Quisera correr como criança! Lançar-me à aventura de ir até chegar. Ter a alegria de saber que alguém espera o meu retorno com o mesmo abraço valioso!
Nada sou sem Antônio. Ele veio pro meu mundo para eu me lembrar de que existo, para além do trabalho, da rotina do dia-a-dia, porque eu acho que já havia me esquecido disto. Hoje ele já não me deixa esquecer: solicita-me por todo tempo. É meu companheiro, enxuga minhas lágrimas quando choro. Diz-me que “vai passar”...
Antônio sabe o quanto eu preciso vê-lo correr quando vamos à praia, e eu não sei por que é assim, mas ele sabe. Não passa um dia em que não realize este meu desejo. O de ir... e voltar.
Graças a Deus Antônio volta. Graças a Deus é criança. Graças a Deus tem saúde para dar a mim esta alegria. Graças a Deus estou aqui para assistir à cena que, sem sombra de dúvida, guardarei na retina e no meu coração pro resto de minha vida.
O que dizer de um cenário composto por um dia de céu azul, sol, mar, vento no rosto, e uma criança feliz correndo na praia? Na minha pequenez, digo que não mereço este presente. Mas Deus, onipotente e misericordioso, discorda de mim: e recebo o milagre, apesar de todos os meus pecados.

sábado, 11 de fevereiro de 2012

Faxina: Estou pronta!

(Hoje foi dia de faxina aqui em casa. Eu quero uma faxina na minha vida.)


Acabei de fazer uma faxina na minha casa. Daquelas que a gente adia, adia até não poder mais.
Limpei cada cantinho. Lavei as telas das janelas, os vidros, tudo com muito cuidado. Fui e voltei várias vezes, atenta se havia algum vestígio de sujeira insistente.
Joguei cloro e desinfetante nos banheiros, esfregando bem o chão. Depois de enxaguado inspirei devagarinho o aroma de lavanda... Que delícia!
Na cozinha os azulejos mereceram atenção especial: detergente, esponja e muita esfregação (que mais parecia um carinho).
Nos quartos e na sala cuidei dos ventiladores de teto. Nada de poeira! Um pouco de trabalho e o ventinho começou a sair melhor. Óleo de peroba em tudo o que havia de madeira e pronto! Serviço terminado.
Faxina feita, banho – delicioso! – tomado, deitei-me no sofá da sala para descansar. As pernas estão doendo ainda, e uma dorzinha de cabeça anuncia a hora do Torsilax. Espero um pouco. Ajeito-me. Fecho os olhos.
É impressionante como olhar a casa agora me dá mais alegria e orgulho. Está tudo no lugar. O piso do quintal reflete a luz do sol, o vidro da janela me revela a vizinhança, o fogão quase me convida a preparar um jantar. Tudo fica mais bonito. O perfume de lavanda não quer ir embora, e eterniza um pouquinho a lembrança de tudo o que fiz.
Estou pronta para uma faxina dessas em mim mesma, por que não a faço?
Por que será que a limpeza da casa sempre acontece por mais que eu adie e, no entanto, a minha alma fica sempre esperando pelo dia da faxina? Há tanto o que jogar fora, tanto o que polir, tanto o que limpar...
Minhas vidraças tão sujas impedem-me de ver tanta coisa! Tudo o que há de humano em mim impede-me de ver que há vida lá fora: O orgulho me afasta das pessoas que julgo precocemente, fazendo com que eu perca oportunidades de conhecê-las verdadeiramente... A vaidade me afasta das pessoas toda vez que penso ser melhor que elas...
Estou pronta para a faxina. Quero ter vidraças limpas. Quero ter o direito de melhorar. De me cansar, passar um ou vários dias esgotada, mas sentir o aroma da lavanda testemunhando que valeu a pena o esforço.
Eu quero acordar numa manhã de sábado e mudar. Começar limpando cada cantinho do meu coração, principalmente aquele destinado às mágoas, as feridas causadas pelas palavras ásperas que ouvi de quem amei tanto! O cantinho da memória visual que guarda as idas físicas de quem tanto desejei que ficasse... Que guarda as letras naquela carta de adeus que nunca desejei ter recebido... Que guarda as fotos do que sempre pensei que fosse, mas que nunca foi.
Preciso limpar os vidros, ainda que isto me custe várias idas e vindas pra saber se ficaram sem vestígios. Aquelas lembranças de abandono, de solidão, de palavras ouvidas que jamais esqueci.
Algumas coisas só sairão com cloro, mesmo. Será preciso cloro e desinfetante para limpar meu coração das angústias vividas, das dores sentidas, das saudades... Mas, depois, inspirar a lavanda será bom. Me deixará feliz.
Estou pronta. Essa faxina já foi adiada demais, e a ninguém faz bem conviver com sentimentos que perturbam magoando por tanto tempo! Eu mereço livrar-me das poeiras que poluem meu coração e deixá-lo novo e vivo novamente.
Daí poderei sentar-me e olhar em volta de mim mesma, avaliando o resultado: uma Karla nova, modificada, restaurada. Olhar a nova Karla preencher-me-á de igual alegria e orgulho. Estará tudo no lugar. E, limpa e refeita, poderei ter a chance de ser diferente. Nunca mais as mágoas, nunca mais os adeuses, nunca mais a solidão. E refletirei o brilho do Sol, como o piso lavado, desprovida que estarei de ressentimentos.
E minha limpeza estará concluída, revelando a Karla que verdadeiramente existe dentro de mim e que ninguém conhece, tantos foram os anos em que adiei esta faxina.

sábado, 4 de fevereiro de 2012

Espetáculo

(Todos os dias temos um espetáculo para assistir: Deus nos brinda com a presença do Sol. Mas não é todo mundo que vê.)


Somos tão diferentes na rotina do nosso dia-a-dia!
Cada um de nós acorda de um jeito, numa determinada hora, em algum lugar e tem algo para fazer. Seguindo o roteiro de nossas atividades predeterminadas, em algum momento acabamos nos encontrando: pelas ruas, no trânsito da cidade, na padaria, na banca de jornais, na escola, no trabalho... E, preocupados em darmos conta do que teremos para o dia, mal nos observamos. Quando temos sorte, ouvimos um “pra você também” como resposta a um “bom dia!” (quando lembramos de dizê-lo).
Nosso dia começa, e ele está lá: O rei. O Sol!
Que belo presente Deus nos deu quando resolveu que a natureza seria companheira dos indivíduos! Mas Deus demonstrou sua misericórdia com o homem quando lhe ofereceu o Sol.
Nas nossas idas e vindas mal nos damos conta da presença dele. Por muitas vezes até reclamamos quando seu brilho penetra a escuridão do quarto, a despeito das janelas fechadas. “Maldita janela empenada”, reclamamos, quase blasfemando. Ou quando seu calor aquece demais, em tempos em que tudo o que queríamos era um lugar fresco para ficar. Mas a maravilha do nascer e do pôr-do-sol é algo que cala a qualquer um. E se temos uns minutinhos do dia para observarmos isto, havemos de dar Graças a Deus.
Ele nasce e brilha todos os dias. Inclusive naqueles sombrios onde nuvens pesadas insistem em escondê-lo de nós. E nasce pra todo mundo.
E eu não paro de pensar nisto. Não há ricos ou pobres, feios ou bonitos, bons ou maus, escolhidos para assistir ao espetáculo: todo dia tem no céu um Sol acolhedor, que brilha intensamente para qualquer tipo de pessoa. Ele está lá, enquanto trabalhamos, enquanto estudamos, enquanto damos conta da agenda do dia. Está lá, como se fosse o próprio Deus nos abençoando, nos acalentando, nos dizendo que não se esqueceu de nós.
Está lá e não nos pede um centavo pelo show.
Está lá apresentando sua magnitude para os detentos dos presídios que o enxergam num prisma, porque limitado, talvez diferente do nosso. Também eles têm seus momentos (garantidos pelos direitos do homem!) de vê-lo em sua plenitude... Talvez seja essa a hora de suas orações mais sinceras... Sentindo o corpo aquecido, como num abraço... Talvez o Sol seja o perdão dos pecadores que estão lá, arrependidos ou a arrependerem-se. O Sol brilha sobre as cadeias como sobre nossas casas. Acorda detentos nas celas com raios que desrespeitam as janelas, como as do nosso quarto.
O brilho do Sol acorda os bêbados, os mendigos, os que não têm um lar. Acorda os dependentes, que passaram a noite fugindo de suas verdades... E com o mesmo “abraço” os acolhe, como que dizendo: “Eis um novo dia, que tal pensar em mudar?”
Enquanto estamos na praia (ou nas belas piscinas de nossas casas) curtindo o Sol que nos doura o corpo, os doentes em estado terminal aquecem-se e alimentam-se dele. O carinho de seus raios lhe dá motivação, alegria, mais expectativa de vida.
Todos os animais são presenteados com o espetáculo da presença do Sol. Aqueles que largamos às ruas são até privilegiados pois, trancados em suas correntes, os das perigosas e caras raças às vezes o vêem em parte. Deus não faz diferença: o ser humano não vê o Sol melhor que eles. Todos podemos ver o astro: homens, animais e plantas.
Quando vai-se embora deixa esta bela imagem em nossa retina: deitando-se por detrás das montanhas ou no leito do mar, descansa. Finda seu trabalho. E ainda que pensemos que adormece, dá aos nossos companheiros do outro lado do planeta a oportunidade de viverem mais um dia. De recomeçarem.
Agimos errado quando julgamos sermos pessoas diferentes (há quem se julgue até melhor do que os outros!). Para isto, Deus nos dá a maior prova de que é um erro pensar assim: Deus nos dá o Sol.
O espetáculo é saber que o dia nasce. É saber que as oportunidades estarão lá, a nossa espera. É saber que há tempo, talvez vinte e quatro horas, para se fazer alguma coisa de bom. Saber que tanto nós quanto o que pensamos ser as piores criaturas do mundo estão recebendo o presente que nada mais significa do que o perdão de Deus pelos erros de ontem e a chance de mudar, de renascer.
Ninguém abre os olhos numa manhã de Sol sem se lembrar de Deus. Se o faz, está perdendo a chance de um maravilhoso encontro. E não há selecionados. Deus convida a todo mundo para Seu abraço acalorado...
Quando sair de casa, ao passar por alguém deseje-lhe este bom dia: o bom dia de Sol, o bom dia do perdão, o bom dia do recomeço... E veja se também o seu não será diferente...
Inspire o ar aquecido sem reclamar. Inspire fundo. Há quem já não o faça mais. Abençoados somos por sermos acordados por aqueles raios lá no nosso quarto – sinal de que vivemos! Não conserte o empenado das janelas. Conserte-se a si mesmo. Lembre-se de que quem tem tão pouco – ou nada tem – assiste ao espetáculo tanto quanto você. Porque Deus é bom. E ainda não desistiu de nós.
O Sol brilha quando estamos felizes, e quando estamos tristes também. Brilha até quando nos despedimos de alguém que perdemos. Brilha pra nos lembrar que dele somos dignos. Todo mundo é digno. E em meio a todos os que Deus julga merecedores estamos nós, do jeito que somos.
Todo mundo é diferente e, no entanto, todo mundo recebe o presente, porque todo mundo merece. Só não assiste ao espetáculo, quem não quer.